quinta-feira, 30 de julho de 2015





A ÁGUA DA VIDA – 03 jul 15
(Conto de fadas de base hinduísta, original de William Lagos)

A ÁGUA DA VIDA I

Bem ao norte da Índia, perto de Shalimar,
vivia Sinabali, uma pobre costureira,
com um filho de colo, por nome Sattiabul
e seu marido oleiro, que por muito trabalhar
construíra uma choupana ao lado da oficina,
em que fazia potes, tal qual a longa sina
de toda a sua família, chegada desde o sul,
que perto descobrira argila de primeira,
moldando terracota que em seu forno queimava,
vendendo facilmente o quanto fabricava.

Um dia, no entretanto, a febre o acometeu
e em questão de semana o carregou consigo;
gastou a viúva com sua cremação
quase todo o dinheiro e um restinho ela deu
ao sacerdote da aldeia para as orações;
mas era habilidosa e da obra de suas mãos
ganhava o suficiente para a alimentação;
fechou a oficina e nela o forno antigo,
para que Sattiabul um dia retomasse
do pai a profissão, consoante a lei determinasse.

Era o costume então seguido na Índia inteira
de que os filhos exercessem o trabalho de seus pais,
seguindo a Lei das Castas, costume secular;
caso fosse menina, seria costureira...
Mas moravam muito longe os parentes do marido;
bastante esforço custaria obter o pretendido
oleiro mestre para a prática ensinar...
E desde então rezava as preces ancestrais
para que os deuses reparassem seu futuro
e mostrassem ao filho o caminho mais seguro.

Porém, quando Sattiabul completou seus quatro anos,
acometido foi pela igual febre malsã
que a seu pai levara depressa para a morte
e grassava entre o povo nesses verões indianos
e milhões carregava das cidades apinhadas...
Sinabali erguia aos céus as preces mais aladas:
que seu pobre filhinho protegessem dessa sorte;
cuidava noite e dia, mas era luta vã
e Sattiabul definhava, da noite para o dia,
não importa o que fizesse, não importa o quão sofria!

A ÁGUA DA VIDA II

Sinabali, em seu mister de costureira,
já trabalhara para um médico estrangeiro,
na outra aldeia, logo após o rio;
prendeu uma cesta ao colo, alvissareira,
e colocou dentro dela o seu menino,
tomou água e provisões e o resto pequenino
do dinheiro que o marido, com esforço e brio,
havia juntado em vida; e com passo bem ligeiro,
tomou sem mais tardar a polvarenta estrada,
a mais vaga esperança sendo melhor que nada!

É bem verdade que a geral superstição
contra a medicina europeia era orientada,
porque era a um deus estrangeiro que serviam
os estrangeiros dessa alheia religião
e ofender aos velhos deuses se temia;
buscavam evitar, tanto quanto se podia,
lidar com os estranhos, que sempre conseguiam
derrotar qualquer tropa, mesmo a melhor armada,
pois decerto eles tinham o apoio dos Asuras
contra os bons Devas de intenções mais puras! (*)
(*) Devas e Asuras são semideuses, primos entre si, mas os Devas, em geral,
são favoráveis aos humanos, ao contrário dos maliciosos Asuras.

Mas Sinabali encheu-se de coragem
e foi do médico visitar o bangalô,
casinha branca, formando dois andares,
em que atendia e até dava hospedagem
a quantos seu conselho ali buscavam;
muitos destes realmente se curavam;
alguns morriam, mas os pobres familiares
davam de ombros: algum deus determinou!
Levando os corpos para um crematório,
sob a égide de Kali em ostensório... (*)
(*) O avatar de Umma (a deusa-mãe) que preside a morte.

O Dr. Johnson tratou bem do garotinho,
que em breve parecia estar curado...
“Tenha cuidado, às vezes a febre volta!
O meu estoque de remédios é mesquinho;
segunda vez não poderei tratá-lo...”
Sinabali se curvou, a pensar como pagá-lo:
“E como estão Dona Anna e a menina?”
“A mesma febre roubou-as de meu lado...
Minha esposa está enterrada no jardim;
nem sei que fim levou minha pobre Eileen!...”

A ÁGUA DA VIDA III

“Como assim..?” Sinabali surpreendeu-se.
“Sumiu daqui, simplesmente, a pobrezinha.
Disse a polícia que teria sido raptada,
mas até o presente coisa alguma descobriu-se
e nem sequer houve pedido de resgate...
Nada posso fazer, exceto dar combate
a essa moléstia por que a região está cercada...
Deve andar por aí minha garotinha,
possivelmente a venderam como escrava;
muitos buscaram, mas ninguém a achava...”

“Quanto lhe devo eu, meu bom doutor?...”
“Posso dizer que não me deve nada,
mas bem sei que seu orgulho ofenderei;
três camisas lhe trarei – tem bom valor
o seu trabalho como boa costureira;
estão rasgadas, porém use a terceira
para remendo das outras e lhe agradecerei.”
Sinabali retirou-se, um tanto consternada,
por saber que da febre perecera também
a boa senhora, que a tratara sempre bem.

Consertou as três camisas com cuidado,
aproveitando as fraldas da terceira,
mas mesmo essa, ainda que curta, devolveu,
deixando o médico muito bem impressionado
com a perfeição do trabalho que fizera
e ainda alguns retalhos lhe trouxera...
Com um sorriso, o doutor lhe agradeceu:
“Guarde os retalhos, boa costureira!
Para outra obra bem poderão servir;
ninguém obra melhor lhe poderia pedir!”

Porém daí a semana, Sattiabul
caiu de febre de novo, gravemente...
Pensou em voltar, mas fora advertida
de que essa peste que subira desde o sul
não teria cura, caso houvesse recaída;
mesmo assim, não se deu ela por vencida
e foi ao templo, suplicar pela acolhida
de um velho saddhu, que atendia a gente. (*)
Mahendra fez preces e chás administrou;
depressa Sattiabul de novo se curou!...
(*) Homem santo, asceta; também faquir.

A ÁGUA DA VIDA IV

Sinabali quis pagar ao sacerdote
e este sorriu: “Pague-me com seu trabalho;
limpe este altar erguido à deusa Umma;
vida e saúde são seu eterno dote;
assim as cinzas do altar ela limpou
e num saquinho para casa as transportou...
Tomada de um impulso ou de ato falho,
misturou-as com água e, na olaria,
um pote fabricou, como o marido antes fazia...

Mas logo viu o retorno da doença
e retornou o sacerdote a consultar,
que abanou a cabeça, tristemente:
“Lamento despojá-la de sua crença,
mas dessa febre a recaída não tem cura;
veio buscar meu filho a deusa impura;
lamento também o seu queira levar...”
E assim Sinabali retornou, desconsolada,
vendo a criança definhando de adoentada...

Porém não desistiu.  Foi em busca de Kalinda,
a velha bruxa, com sua  terrível fama...
E esta lhe disse: “Só com Amrita, a Água da Vida.
Deixe a criança aqui, será bem-vinda;
não morrerá, se retornar dentro de um mês!
Vá empós Lakshmi, que a atenderá por sua vez;
daqui suplicarei e ela será compadecida;
leve esta palha de minha própria cama
e lhe indague como está a minha filhinha;
a febre mesmo de minha casa se avizinha...”

“Siga até o rio e chame a Tartaruga;
explique a ela que fui eu que a mandei,
pois deve-me favores e por certo a levará;
mas como o casco assim ela lhe aluga,
também favor lhe pedirá ao regressar...”
Partiu Sinabali, as palhinhas a trançar,
chamando a Tartaruga que nessas águas há.
“Sem dúvida a Kalinda hoje satisfarei;
monte em minhas costas através do rio;
firme-se bem, que está bastante frio!...”

A ÁGUA DA VIDA V

Realmente, as ondas pareciam geladas
e a pobre Sinabali se encolhia,
mas então seu equilíbrio fraquejava,
tinham as pernas de serem esticadas...
Trazia sempre nos braços sua cestinha,
o pote feito de cinzas e nele até a fraldinha
que com os restos da camisa costurava...
Sempre mais largo o rio lhe parecia:
“Grande Kurma, para onde está nadando?”
“Para Kaumudi, onde Lakshmi está morando...”

“Pensei Kaumudi ser apenas o luar...”
“E onde mais ela morar você queria?
Pelo luar suas seis Gunas distribui,
seis qualidades divinas a nos dar,
deusa da vida, da força e do vigor,
a companheira de qualquer ato de amor,
os Quatro Alvos da Vida ela possui,
para Dharma e para Artha é nossa guia
e sobre Khama preside ela também
e esparge Moksha para o nosso bem...” (*)
(*) Dharma é o dever e a virtude; Artha, a saúde, a carreira, a habilidade;
Khama é o desejo, anseio, esperança; e Moksha o autoconhecimento
que conduz à libertação e emancipação da Sansara.

A pobre mãe de religião não entendia,
queria apenas alcançar a rara cura
para Sattiabul e o tempo se ia passando;
que se esgotasse o mês ela temia...
Mas chegaram até a praia, finalmente
e agradeceu a Kurma, humildemente.
“No seu caminho de mim se vá lembrando
e peça a Lakshmi que me envie bênção pura,
que em seu retorno você me entregará.
Sem falta Kurma por você esperará...”

“Leve uma lasca de meu casco em oferenda,
repasse a Lakshmi meus sinceros cumprimentos....”
Havia um Lobo parado junto à margem.
“Kalinda ordena que você atenda
a esta senhora, que busca a Água da Vida...”
“Pois suba logo, que a planície percorrida
será por mim depressa e sem vadiagem...
Sobre meus lombos encontrará amplos assentos:
firme-se bem, pois bem longa é a distância,
mas a percorro desde os anos de minha infância!”

A ÁGUA DA VIDA VI

Sinabali o envolveu em forte abraço;
partiu o Lobo, correndo velozmente,
saltando as poças e cobrindo os pastiçais,
firmes seus braços como um forte laço,
até chegarem a uma terra pedregosa,
já no planalto, em que aguardava uma Raposa.
“Leve uns fiapos de meus pelos naturais
como oferenda para a deusa tão potente;
por seu retorno aqui aguardarei
e de Lakshmi pela bênção esperarei...”

Montou Sinabali nas costas da Raposa,
que depressa a transportou pelo planalto.
“Firme-se bem, não a deixarei cair,
mas fale bem de mim à Dadivosa,
que me transmita vida em recompensa
por esta boa ação em sua presença...”
O terreno não parava de subir...
Logo a Raposa resfolegava alto,
quando encontraram uma Cabra Montês.
“Siga com ela, que já gastamos meio mês!...”

“Retire de minha cauda um bom chumaço
e o leve a Lakshmi como honesta oferta,
que aqui no aguardo de bênção ficarei...”
Sinabali agradeceu com firme abraço,
os pelos a guardar em sua cestinha,
junto com as outras oferendas que ali tinha.
“Pela falda da montanha a levarei!...”
As costas lhe mostrou a Cabra esperta;
desta montada já tinha mais receio,
pelos abismos que encontrava de permeio...

Chegou, enfim, ao pico da montanha.
Disse-lhe a Cabra: “Aqui esperarei;
leva a Lakshmi uma apara de minhas unhas,
espero a bênção que da deusa só se ganha...”
“Mas como posso chegar à Abençoada...?”
“Virá o Corvo para abrir-lhe a estrada...”
Logo a ave negra rasgou do céu as cunhas:
“Monte em mim, que o caminho indicarei...”
E a boa mãe fez das tripas coração:
como o Corvo cumpriria essa missão?...

A ÁGUA DA VIDA VII

De fato, ela era maior que a montaria!
Notou que o Corvo então as garras cravava
no que lhe parecia pleno ar!
Sequer as asas bater-lhe percebia,
tal e qual se caminhassem por escada!
Sinabali sentiu-se assim maravilhada,
até que o Corvo suspendeu seu avançar
e firmemente sobre o ar pairava!...
“Chegou agora o momento do Pardal...
Desmonte aqui, não sofrerá o menor mal!”

A jovem desmontou, por mais medo que sentisse
e então notou sob seus pés a solidez...
Logo a seguir, apareceu-lhe um Pardalzinho!...
Tão pequenino!  Impossível que subisse
nas costas frágeis da minúscula avezinha!
“Não temas,” disse o Corvo.  “Uma peninha
arranca de minha cauda.  É um presentinho
que levarás para Lakshmi em minha vez.
Caminha agora atrás desse Pardal,
que a escada encontrarás, sem qualquer mal!”

Lembrando apenas de seu grande amor
pelo filho doente, ela ascendeu,
degrau após degrau, pelo invisível...
Logo sentiu a força do calor
que transmitia o prateado do luar;
com mais confiança, continuou a galgar
pelas alturas da escada incompreensível.
E o Pardal finalmente lhe estendeu
um remígio de sua asa direita, (*)
qual outra prenda a Lakshmi sujeita...
(*) Uma das penas longas da ponta das asas.

Mas, e agora?  Solta em pleno espaço,
sem os degraus que lhe indicara o Pardalzinho!
Então à deusa a sua vida encomendou,
descendo um raio de luar em fino traço,
puxado aos poucos por uma Mosquinha!
Ela agarrou-se, então, ao fio de linha
e mais degraus, aos poucos, encontrou
até chegar bem no alto do caminho,
pisando em grossas nuvens de algodão,
quais fios de prata em frágil armação...

A ÁGUA DA VIDA VIII

E lá estava, em seu trono de luar,
a santa Lakshmi, em lótus envolvida,
que lhe acenou, em gesto sorridente...
A pouco e pouco, ela ousou se aproximar,
sentindo a bênção que dela se emanava
nessa voz meiga com que lhe falava:
“Fiel Sinabali, sei teu esforço ingente
e tua prece encontrou em mim guarida;
destarte te enviei meus emissários
e de mim receberás meus dotes vários...”

“Para ti e para quantos te auxiliaram
demonstraste a maior perseverança
e aqui chegaste movida por coragem;
por isso as súplicas mudas me encontraram.
Porém te aguarda uma nova provação,
pois o Amrita não te darei nesta ocasião,
mas a Água da Cura em vassalagem,
pois teu retorno ainda mais te cansa:
não poderás beber gota sequer
e nem falar, que o encanto assim requer.”

“Agora chega até mim, para meu beijo:
colocarei a água santa na tua boca
e assim a levarás todo o caminho!...
Avança agora, pois terás só este ensejo!”
Sinabali ao santo beijo se atreveu,
que o santo liquido sua própria boca encheu.
“Teu filho beijarás com o meu carinho
e desse beijo de esperança louca
ele há de usufruir de longa vida
e também tu, que a dor levaste de vencida!”

Depois Lakshmi chamou a si a Mosquinha
e com um só gesto a transformou em Moscardão,
maior ainda que magnífica cegonha;
seu luar em torno dela se avizinha:
“Terás as bênçãos para os demais ajudadores!
E na cestinha, meus divinais pendores!
Agora monta, sem ter nojo ou vergonha;
se obedeceres, sem qualquer hesitação,
irás cumprir inteiro o teu dever,
muito embora no caminho hás de sofrer!”

A ÁGUA DA VIDA IX

Ela montou no dorso da Mosquinha,
asas azuis batendo com zumbido
e então desceu, em direção à Terra;
quando o Pardal da Mosca se avizinha,
deixou cair sobre ele uma virtude
e fez o mesmo para o Corvo, que o escude
de outros perigos desde o alto dessa serra;
Para a Cabra outro bem foi estendido
e a cada um dos demais ajudadores,
de longa vida e prazer santos penhores!

E sem demora, chegou até a casinha
em que a esperava Kalinda, a feiticeira;
ela entrou sem uma palavra proferir,
dando ao filho essa água que continha
dentro da boca, por tempo interminável;
logo a criança lhe mostrou sorriso amável,
cheia de vida, do líquido ora a se nutrir...
No mesmo instante, qual bênção derradeira,
o Moscardão transformou-se na menina
que à boa Kalinda como bênção se destina!

Saíram dali os quatro de mãos dadas
até o templo em que aguardava o sacerdote
e diante dele o estranho pote ela quebrou,
em vasta nuvem as cinzas espalhadas,
permeio às quais logo se materializou
o próprio filho por quem tanto ele aguardou!
Rendendo graças, o padre a abençoou...
Sinabali carregou o último dote,
para entregá-lo ao doutor, que lhe falasse,
que no túmulo da mãe ele a plantasse!

Reunidos os sete perante a cova da mulher,
uma mandrágora cresceu logo dentro dela (*)
e em breve tempo transformou-se em Eileen,
o médico todo incrédulo sua filha a receber.
“Pai, hoje eu voltei por que chegou-me a hora;
eu não queria que Mamãe se fosse embora!...”
Cumpriu-se assim toda a magia bela:
quatro crianças ao mundo retornaram
que as garras da peste antes roubaram!...
(*) Segundo a lenda, raiz que dá fertilidade ou se transforma em criatura
humana.  Também chamada de ginseng.

EPÍLOGO

Os quatro adultos então se combinaram,
enquanto viam brincarem as crianças.
“Guardo minha filha,” disse a feiticeira.
“Moro afastada e poucos duvidaram
do meu poder.”  Disse o mesmo o sacerdote:
“Noutro mosteiro foi desenvolver seu dote:
minha palavra aceitarão por verdadeira.”
Disse o médico: “Recobrei minhas esperanças,
mas todos sabem que Eileen desapareceu;
contar não posso o que lhe aconteceu...”

“Vou retornar, então, para minha terra;
permissão me darão meus superiores
e o ataúde de minha esposa eu levarei.
Sigo, portanto, de retorno à Inglaterra,
sem revelar o milagre acontecido,
em um lugar assim distante do ocorrido.
Sinabali, caso o aceite, eu a contratarei,
com seu menino, como meus dois servidores...”

Eventualmente, os dois adultos se casaram
e as duas crianças, no final, se enamoraram...

Mas o poder de Lakshmi, a Fada Lua,
até hoje em sua casinha se cultua...





















sexta-feira, 17 de julho de 2015




DEDOS DE VENTO & MAIS
WILLIAM LAGOS      

DEDOS DE VENTO I – 23 JUN 14

Eu gostaria de te amar ainda,
doce boneca, olhos de retrós,
que foste para mim constante algoz:
nunca me amaste, por mais que fosses linda.

Eu que pensava, ao te chamar bem-vinda,
que de algum modo te tornasses foz
do fluxo de amor e andei empós,
de ti, bruxa de pano, emoção finda...

Era tão bom o tempo em que te amava!
Todo inundado em nuvens de esperança:
julgava algo mudasse em meu destino...

E agora que se foi quanto eu julgava
sentir por ti nos tempos de bonança
é que percebo o quanto era pequenino...

DEDOS DE VENTO II

Já ouvi ser dito que quando o amor acaba
é que, de fato, nunca fora amor;
mas eu discordo: o vento de estridor
que a alma enche e sobre nós desaba

vale bem mais que aquilo que se gaba
como sendo permanente em seu vigor,
que amor sempre me foi compensador,
que mais não fosse em proteção de taba

feita de barro em forma de caniço,
que impedisse a chuva que me alaga
e as lágrimas guardasse de meu pranto,

pois todo amor possui algo de viço,
ao menos na emoção com que embriaga
a voz inteira ao tentar abrir-se em canto!

DEDOS DE VENTO III

Olha bem: amor é vento, até o mais forte,
essa invasão da vida por perfume,
esse passeio em nuvens cor de lume,
essa ânsia voraz de algum consorte,

que nos atinge qual ferida, suave morte,
vento que rasga nas pupilas o ciúme,
dentes que gemem antes que se esfume
nas emoções de envaidecido corte;

que amor tem dedos flébeis como o vento, (*)
que nos trespassam num profundo toque,
mas que de fato só na pele nos tangeram,
(*) Frágeis.

porém protegem da flama do lamento
de outros ventos de maior enfoque
a nos soprar a dor dos que sofreram!...

PEDRA DE SAL I – 24 JUL 15

Há tanta gente por aí que risca
meia dúzia de frases que mal servem
para uma crônica, ainda que conservem
bastante espaço em branco, em que não cisca

nem sequer uma galinha; que rabisca
mediocremente essas frases que já fervem
outros milhares, sem versos que reservem
qualquer coisa original no que se arrisca

porém se chamam de poetas, com vaidade
e eu que escrevi tanto, ainda não sei
se sou poeta ou só versejador

e mesmo evito, com sinceridade,
publicar as mil linhas que gerei:
sinto até asco por tamanho despudor!

PEDRA DE SAL II

Eu não perdi o meu espanto de criança
e se meus versos não chovessem sobre a testa
e sobre os ombros, num galão de festa,
os olharia com esgar de desconfiança;

mas os recebo, em nuances de garança, (*)
chuva de prata e ouro que me infesta
e não me posso furtar à força desta
pura abrasão que dentro dalma dança.
(*) Vermelho vivo.

Vaidade disso é coisa que não tenho:
sou apenas os dedos do escritor
que me domina e por quem ora versejo,

pois não são meus os furores com que venho
contaminar o papel qual trovador
com tais relâmpagos que sobre as unhas vejo...

PEDRA DE SAL III

Há milênios disse o velho Salomão
que tudo nesta vida é só vaidade,
pois cada gesto, cada ação da humanidade
dever-se-ia polvilhar, sem dar perdão,

com pedrinhas de sal, branca ilusão,
a dar sabor à mentira e à falsidade
de quem se julga importante de verdade,
sem perceber de onde lhe brota a inspiração;

destarte encaro a mim com ceticismo
e nos milhares de poemas que escrevi
por muito tempo nem sequer apunha o nome;

e até admiro de outrem o otimismo
e o desespero por crédito que assisti:
que os deuses possam lhe aplacar a fome!

CANTO INDECISO XX (A) – 3 abr 07

Por que me preocupar, se essa folia,
o favor que julgo ter, qualquer desprezo
apenas represente, em zombaria,
o casquinar dos deuses, em seu vezo (*)
(*) Riso zombeteiro

de conceder o dom com a mão direita
e escamoteá-lo depressa, com a esquerda...
Bem e mal não mais são que uma imperfeita
moeda, que se ganha ou que se herda...

Ambos compram a vida, o mais precioso
dos dotes multifários dos Perfeitos,
que cordéis emaranham nos seus dedos...

E é por isso que se faz tão perigoso
pedir graças em momentos contrafeitos,
pois toda bênção é envolta em seus enredos...

CANTO INDECISO XX (B) – 25 JUN 15

Os romanos preveniam, realistas:
“Cuidado com o que pedes, pode haver
qualquer deus escutando e conceder
exatamente o que desejas e conquistas.”

Deste modo é o abrir de novas pistas
que aonde levam, não podes saber...
Talvez te encontres muito em breve a recorrer
aos mesmos deuses com renovadas listas...

Pois na verdade, é o teu esforço que te dá
e não a intervenção desses bizarros
ídolos feitos com malícia e perfeição,

representando à sua maneira o que não há,
salvo na argila, em terracota ou barros
ou na prenhez da mente em hesitação.

CANTO INDECISO XX (C)

Há entre nós velho apólogo também:
“Ajuda a ti mesmo e Deus te ajudará.”
Quem nada busca, só o nada alcançará,
vazios os colos das bênçãos que nos vêm.

Há uma anedota que se conta com desdém:
quem loteria não compra, nunca acertará,
pois só quem compra talvez algo ganhará,
mas se ganhar, tirará dos que não têm.

Porém como nisso insistem brasileiros!
E ainda rezam para o Servo Onipotente!
Sem esse prêmio, sempre serve um belo emprego,

mediante o qual deixarão a seus herdeiros
não o fruto do trabalho permanente,
mas o salário tirado ao mudo e ao cego!

CANTO INDECISO XX (D)

Na realidade, só tu fazes teu destino,
mediante séries de ações e de inações,
todo sonho vasta mescla de ilusões:
somente planos podem ter um certo tino.

E se tua busca por um alvo peregrino
for perseguida tão só por orações,
nada terás, senão inquietações:
Papai Noel te abandonou desde menino!

Porque, afinal, os santos a quem rezas,
mesmo tendo no passado sido humanos,
não têm poderes, senão os que lhes dás.

São criados por ti e quanto prezas,
incapazes de milagres soberanos,
senão os mesmos que por ti conquistarás!

CANTO INDECISO XXI (A) – 4 abr 07

E, afinal, somos nós que terminamos
nas armadilhas que nos construímos.
Ou por ganharmos quanto lhes pedimos
ou porque em tais ações nos entregamos,

sem medir resultados, só na busca
do valor imediato.    Vazios, interiormente:
descontentes com nosso bem presente,
voando para a luz que nos ofusca.

A vida és tu que fazes e até escolhes
em que ventre nascer, qual mais te serve,
a usufruir quaisquer das infinitas

emoções e valências em que antolhes (*)
um fragmento, que melhor conserve
o brilho verde e sedutor das malaquitas...
(*) Ocultes
CANTO INDECISO XXI (B) – 26 jun 15

Bem diferentes são os alvos terminais
dos beija-flores dos das mariposas;
uns se alimentam nos botões das rosas,
outras se elançam a tórridos finais!...

Os colibris buscam seus alvos naturais,
suas asas em rodilhas primorosas; (*)
buscam a luz as mariposas, mais ansiosas,
sem se lembrar de defender-se dos pardais!
(*) Revoluteares

Do mesmo modo, a busca vã de ideais
é o apanágio dos estultos e poetas:
não é assim que ganham seu sustento;

enquanto a caça de dotes materiais
pelo trabalho ou propinas mais infectas,
trazem à vida um seguro mantimento...

CANTO INDECISO XXI (C)

Mas não me entendam mal.  Aqui não louvo
os medíocres, os ladrões e os violentos,
nem aqui zombo dos poetas seus relentos,
que serenatas também fazem bem ao povo;

e a cada geração, surge um renovo,
velhos ideais a tirar de esquecimentos;
e que seria de nós sem os lamentos
desses pródigos, a sonhar com mundo novo?

Mas sua quimera deve ter praticidade;
novos prédios constrói cada engenheiro;
alguns artistas alcançam fama e apoio;

alguns filósofos fazem bem à humanidade
e ainda pareço querer sonhos primeiro,
que em rio se torna o que foi somente arroio...,

CANTO INDECISO XXI (D)

Mas neste fluxo, tanto há que prostitui
o seu talento por palmas de vaidade,
o seu ideal por vã mediocridade,
lançando a alma nesse rio que flui

e o próprio ideal, sem mais cuidado, alui,
para viver melhor, é bem verdade,
ao abrir mão de sua antiga liberdade
por segurança que o coração lhe pui.

Todos nós somos fabricantes de armadilhas,
para tombarmos nelas tolamente,
cada um causando a si o próprio esbulho,

julgando ter aberto belas trilhas
com as enxadas de platina de sua mente,
mas finalmente a dormir sob esse entulho...

REGRAS DA VIDA XXVIII – 04 abr 07

a VIDA é semelhante à PROPAGANDA:
metade APENAS de todos nossos ATOS
PARECE refletir-se em outros FATOS,
enquanto a outra METADE, só CIRANDA,

não RESULTA em mais nada do que INFANDA
troca de MAL por BEM em quanto fazes,
por mais que em POLIDEZ gentil a EMBASES,
retorna em GROSSERIA; ou numa BANDA

de ZOMBARIA ou, quem sabe, INDIFERENÇA;
mas CEDO ou TARDE retorna a recompensa
pelo bem que FIZEMOS; ou INGRATIDÃO.

só não SABEMOS de que LADO vem o bem.
portanto, TEMOS de nos PORTAR, também,
qual FOSSE do outro SINCERO o coração.

sal no olhar 1 – 27 jun 15

eu fiz o quanto pude por vivo manter
e ampliar mesmo o amor que então sentia;
bem sei que era pretenso, amor de fantasia,
já que eu amava o amor e amor queria ter.

assim eu me esforcei por tal amor viver
e o esperado retorno não mais era que folia
que espraiar-se em versos me propiciaria,
nessa loucura branda de bênção conceber...

mas foi queimado o tempo nas unhas de meus dedos,
usando tisne e sangue para escrever mais versos,
na exaltação febril do gozo que sentia;

desgastei-me de amor na pompa dos segredos
e agora só contemplo em meus ideais dispersos
meu amor que era grande e se encolheu um dia...

sal no olhar 2

tomei amor nas mãos e soprei-lhe meu desejo,
pensando acalentá-lo e até fortalecê-lo;
dos alvéolos do pulmão partiu o meu desvelo
e o som dos intestinos no ronco de meu pejo.

do músculo cardíaco fluiu-se um vasto adejo,
bem mais forte, por certo, que poderia contê-lo;
a pressão me subiu pelas tensões do zelo
e partiu-o na verdade, em inesperado ensejo.

amor então não veio inteiro a se aquecer:
ainda que tirasse das entranhas o calor,
envolveu-se em tristeza, emurchecida flor

e numa pedra de sal assisti seu converter,
esperando receber uma lágrima do olhar
que a brotar não chega, deixando-o ressecar.

sal no olhar 3

por isso que um amor de coração partido,
ou mais exatamente sendo apenas ressecado,
não é o suficiente para a um olhar magoado
estimular em lágrima ou pranto definido.

as lágrimas correram das faces ao comprido,
em líquido invisível, concreto o seu pecado,
lentamente demais e o sentimento alado
as asas depenou em espasmo malferido.

amor não morre nunca, assim de repentino
e na verdade, não se parte um coração,
mas vai-se abrindo aos poucos em múltiplos farelos,

lascas caindo muito raro de inopino,
em zombaria travestida de emoção,
torrões de sal amontoando-se em castelos!...

VENTOINHA I – 28 JUN 15

Coisas de amor eu soube escreveria um dia,
altissonantes  juras em vã simplicidade,
esquecido de teu rosto, apenas na vontade
de conseguir lembrar qual imagem eu queria.

Esquecidos teus olhos, que de sonho revestia,
olvidados cabelos de brilho e majestade,
transitória a atração por feminilidade,
último amor quiçá que a vida me daria.

Não era amor, decerto, tão somente,
mas desejo ofuscante de minha solidão,
por não me dar tal vida o quanto desejara,

envolvido destarte nessa moção premente
dos que só vivem no guante da paixão,
na qual somente teu semblante recordara.

VENTOINHA II

Porque esse rosto que se amou um dia,
o andejo rosto que na mente se gravou,
esse semblante que minhalma dominou,
de um só momento foi fugaz fisionomia;

porém o rosto se transforma à revelia
desse que ama e do ente que se amou;
os mil esgares que o nojo provocou;
faces que mudam qual chuva serodia...

E a gente se acostuma com mudanças
quando há presença; ou com fotografia
quando a ausência nos impõe o seu poder,

iguais que imagens conservadas em crianças
de casa imensa e que hoje, até vazia,
é tão menor que em seu antigo conceber.

VENTOINHA III

Dizem que amor é cego e certamente
um rosto olha enquanto um outro vê;
enxerga amor no ódio em que não crê;
na indiferença avista ânsia potente

e ao repetir da imagem mais frequente,
ai, que desdouro no rosto que se lê!
A gente muda e, de repente, é como se
quem se contempla tornara-se em outro ente.

Por isso amor é um vesgo permanente:
sob as lembranças da superposição,
qual é o quadro real da galeria?

Traz-nos o vento, em perpassar sobressalente,
a longa imagem de curta duração
e a curta imagem do espanto improducente...

MINIATURVA I – 4 abr 2007

Pois bem: não é assim. Os outros todos
só nos veem de soslaio.  Nunca somos
o centro de suas vidas.  Sempre fomos
uma pequena malha nos seus nodos.

Migalha apenas de seus variados modos...
Poucos escolhem nesta vida os doces pomos
partilhar com os demais, nos quais expomos
nossa alma inteira ao fluir de alheios lodos...

Talvez seja verdade...  Cedo ou tarde
o bem que já fizeste a ti retorna...
O certo é que ninguém mais se conforma

se lhes fazes o mal.  E, às vezes, arde
tão mais profundamente o teu favor,
que até te odeiam por lhes mostrar amor!

MINIATURVA II – 28 JUN 15

Essa imagem que os outros nos revelam
é bem diversa de um verdadeiro ego
e essa miragem que aos outros eu entrego
largas partes de mim sempre cancelam.

Saem miniaturas em tal lacre que selam:
pequenos beijos esparsos no ar cego;
o mais que sou à vista alheia eu nego;
do mais que és teus olhos me congelam.

Mui raramente expõe sua alma alguém
após sofrer suas iniciais feridas:
forma-se a casca para ao mundo expor,

ante o receio de se sofrer novo porém
nas esperanças de início tão nutridas
no esmaecido nutrir de nosso ardor...

MINIATURVA III

Destarte, mesmo a nossa miniatura
que escolhemos ao mundo revelar
é mais reflexo do céu a se mostrar,
a nenúfares mesclado em canelura; (*)
(*) Longas filas paralelas

mesmo querendo mostrar imagem pura,
surge uma brisa, num leve conturbar
ou uma lágrima esquiva a se infiltrar
em cada instante da emoção perjura

e assim a miniatura faz-se turva,
por mais que límpida quiséssemos que fosse,
mais larga a casca e mais estreito o cerne,

que as mais sinceras emoções recurva,
qual amargor num sentimento doce,
nessa imagem tracejada qual por berne!

MINIATURVA IV

E estranhamente, se revela em cada furo
dessa traça que a pouco e pouco rói
a nossa alma e o semblante nos destrói,
só de passagem, um sentimento puro.

Que seja assim nosso destino duro,
que somente pela dor é que nos sói
mostrar saudade que no peito dói,
flagrar a luz permeio ao véu escuro!

Ai, como é turva a imagem que apresentas
perante mim, que tão clara a gostaria
e o quanto é turva a minha própria imagem!

Sombras de vento com que te contentas,
muito mais densas que as luzes que eu queria
entrelaçadas a aguapés sem ancoragem!

REGRAS DA VIDA XXIX – 4 abr 2007

Cada um de nós tem sua zona de conforto,
onde se sente bem, lugar seguro,
que pode controlar – um jeito puro
de não se expor em qualquer estranho porto.

Isso, no entanto, representa o aborto
de mil possíveis escolhas de tua parte...
Quiçá a rejeição casual da arte...?
Quem está mais seguro do que um morto?

Também, porque a zona em que te sentes
tende a encolher, secar, se os seus limites
não tentares expandir de quando em vez...

Porém se apenas ao novo te concites,
um novo mundo que inda mal pressentes
quem sabe hás de criar nesse talvez?...

REMOQUE  1 – 4 abril 2007

A verdade faz Deus e é Deus que a ouve
Quando nós Lhe suplicamos desde a mente.
Não no pôr-se de joelhos mais frequente,
mas do fundo da alma, em que se louve

como infeliz a situação vigente,
ou como súbito encontro que nos houve.
É então que a alma ainda mais se volve
a convocar o brando servo onipotente...

"Cuidado, então!" – já nos diziam os Romanos.
"Que os deuses te escutem é possível
e até mesmo que te façam a vontade..."

E como hás de saber que teus insanos
desejos de um porvir mais aprazível
de algum modo te trarão felicidade?

REMOQUE  2

Tua vida inteira não passa de um novelo
se permitires que simplesmente escorra;
cada infinito que a teu lado morra
foi esquecido por teu simples desmazelo.

Somente um fio, tal qual a escolha fê-lo:
vento na toalha transformado em borra,
capa de asperges que aos farrapos forra, (*)
livro mofado, quase impossível lê-lo!...
(*) Manto eclesiástico mais ou menos luxuoso.

Pois nem ao menos surge, a cada vez,
qualquer página completa do futuro:
uma frase, talvez... Ou só palavra,

na superfície cinza em negra tês,
a que te apegas com teu olhar perjuro,
sem perceber que resulta de tua lavra!...

REMOQUE  3

Giram ao lado mil outros carretéis,
de cor igual ou diversa inteiramente.
O que te obriga a tal girar premente,
ao passivo compromisso com suas leis?

Os militares confinados nos quartéis,
até que a guerra os massacre impunemente.
Às contingências submetendo certa gente
que outros pensam com inveja, serem reis!

Sempre é possível dar saltos nesse escuro
e se prender em qualquer outro novelo,
em nova trama seguindo doravante;

mas quem nos diz se um fado bom ou duro
não cortará nossas mãos, cristais de gelo
entranhados na carne nesse instante?

REMOQUE  4

Já nos disse Shakespeare, no passado,
“para o homem, o que será mais nobre,
submeter-se a um destino que lhe sobre
ou resistir-lhe,” em gesto tresloucado?

Quando é tão fácil se dar um passo errado,
cada uma prece um sino que nos dobre
para outro fado de riqueza ou pobre,
para uma glória que nos torne coroado?

Sempre recordes que a decisão é tua:
não será remoque de qualquer demônio,
nem um impulso que te imponha Deus,

mas decisão da própria mente nua,
que te conduza a prejuízo ou patrimônio
e a resultados que serão só teus!...

ZETÉTICA I – 30 jun 15
[Conjunto de preceitos para resolver problemas ou encontrar novos caminhos.)

Existem sobre a Terra mil portais,
numa malha simétrica, que cobre
o mundo inteiro e que não se descobre
senão depois de darmos os finais

passos de entrada nas vastidões fatais
que abrem para nós um mundo pobre
ou rico de prazeres, que recobre
completamente o plano a que, jamais,

retornaremos.  Às vezes, é o destino
que nos convoca.  Ou então, casualidade
que nos faz atravessá-los, inconscientes.

Ou podemos, em pleno desatino,
sentir seu palpitar de opacidade
e cruzá-los, quando estamos descontentes.

ZETÉTICA II

Eu já senti na vida tais passagens,
que raramente deliberadas foram;
os portais se deslocam. Alguns moram
na própria casa em que tens as tuas menagens;

outros se encontram nos cantos das paisagens;
quando tuas faces em seu cruzar se coram,
empalidecem ou talvez se douram,
na vibração subitânea das mensagens,

a ti sussurram os gênios dos portais...
Se não sabes onde estás, para onde vais,
não terás noção do fato plenamente,

mas cruzarás muitas vezes sem sentir
e algumas outras até nas vascas do dormir:
quando acordares, já diverso é teu presente!

ZETÉTICA III

É mais questão de sondar esses possíveis,
na longa ruma das paixões disformes,
até que ponto nos serão conformes,
até que ponto nos serão imarcescíveis,

alguns de fato, são quase intransponíveis,
outros prontos a engolir-nos, sem informes,
que ao percebermos, já os cruzamos, desconformes,
em abismos balançando inexauríveis.

Para onde vamos após as travessias
dificilmente saberá mesmo o destino,
não mais reais do que lances de xadrez;

de cada peça os movimentos têm suas vias
e só nos resta um arbítrio pequenino,
após ter escolhido o qual se fez!...

ZETÉTICA IV

A escatologia que herdamos dos judeus
só dá margem aos milagres desta forma:
o quanto à mente humana se conforma
Deus já criou nos movimentos seus.

Portanto, é-nos possível erguer véus
e ao cruzar um portal que nos reforma,
ali estaremos em sujeição à nova norma,
superando desta forma a mil incréus!

Porque, de fato, Deus sempre pretendeu
com esse tipo de milagre nos premiar,
embora nossa deva ser a decisão,

pois para Ele tudo já aconteceu,
as nossas vidas decidindo manejar
tais quais seu plano já feito de antemão!

revolta 1 – 01 jul 15

guardei rancor no fundo da gaveta
por todo o mal a que fui submetido;
a mim mesmo fiz mal, por permitido,
em subserviência ou submissão secreta,

que me roubassem a vida mais dileta,
mesmo a saúde que me havia nutrido
um falso orgulho, destarte destituído,
sobremaneira em autodesafeto!...

de fato, a vida a nada me obrigou,
nas circunstâncias mesmo mais perversas,
sempre me coube o poder da decisão;

se em artimanha caí, não me ajudou
minha própria ingenuidade ante as conversas
por que perdi no final toda a ilusão.

revolta 2

por que, então, deveria ter rancor
daqueles que essa vida me roubaram,
se minhas fraquezas é que me lastimaram,
sem resistir à invasão de alheio ardor?

porque evitei combater o alheio amor
pelos desejos que para si buscaram,
se permiti me tomassem o que tomaram,
numa indulgência resultante do candor?

e nesse caso, toda a minha revolta
só poderia lançar contra mim mesmo,
pois deveria ter sido mais feroz

e impedi-los de tomar com rédea solta
os seus próprios interesses, sem a esmo
me dominarem com indiferença atroz!

revolta 3

mas como posso sentir-me rancoroso
para comigo mesmo?  Se eu errei,
novo caminho com esforço tomarei,
que me seja de proveito primoroso.

mas como é árduo o passo corajoso
desse abandono da senda que tomei!
dos desenganos não me queixarei,
pois cabe a mim vencê-los, prestimoso.

mas no entretanto, a revolta permanece;
não seria mais humano se o amargor
não lamentasse as nuances de traição!

por isso, muito embora, remanesce,
pois me fizeram perjurar de meu pudor
para a tais outros conceder satisfação!

TESOURO ANTIGO I – 02 JUL 15

Guardei malícia com o maior carinho
em um bolso do casaco, confortável,
sendo o rangido menos suportável
que esse dote no bolso resguardado.

Guardei silêncio no momento asado,
no vão aguardo de resultado admirável,
que me trouxesse alívio nesse frágil
equilíbrio em que me via atoleimado.

Guardei a calma igual que um patrimônio,
tal qual os outros vão juntar a sua poupança,
a minha língua mordida em mil pedaços,

mas não sei por quais artes do demônio,
depois de um mês, minha alma de criança
lhe permitiu escapar de meus abraços!

TESOURO ANTIGO II

“Quem cala é que consente”, diz ditado antigo,
que assim a outrem se confere impunidade
para que faça o quanto tem vontade:
silêncio e paz na partilha de um abrigo...

Mas a tensão suportar não mais consigo:
silêncio é coisa de grã voracidade
que nos devora o peito – sem maldade –
por não lançar-se assim contra o inimigo.

E foi-me inútil em tal silêncio persistir,
enquanto as vozes ao redor se martelavam,
já que o silêncio só lhes dava permissão;

com tanto esforço sem nada conseguir,
salvo as palavras que dentro em mim se alçavam
e me acabaram por romper o coração!

TESOURO ANTIGO III

Guardei silêncio e recebi tão só injustiça,
fui acusado de dar falso testemunho
nesse silêncio com que até hoje deponho,
a minha moléstia não mais do que preguiça!

Uma “artimanha de covarde” nessa liça,
por minha recusa de cerrar o punho,
de meu recolhimento em triste sonho,
ante um rancor que assim mais forte atiça!

Por não poder ter concreta acusação
que me pudesse ser lançada ao rosto,
quando eu apenas recolhi-me ao leito!...

Guardei silêncio sem ganhar perdão,
tal qual tivera a violência exposto,
bem ao contrário de remoê-la no meu peito!...


William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com