A PRINCESA DO MAR
(Conto de fadas
russo, recontado por William Lagos, 2/7/11.)
Era uma vez, há muito
tempo atrás, quando a capital da Rússia ainda era Kiev e Moscou não passava de
uma aldeia fortificada, havia uma cidade no noroeste do país, chamada Novgorod,
que significa simplesmente “cidade nova”.
Séculos depois, seu nome foi trocado para Nijni-Novgorod, depois para
Gorki e, finalmente, permanece até os dias de hoje como Novgorod, fazendo parte
da República de Belarus, ou Rússia Branca.
A cidade fora construída às margens do lago Ilmen, que não tinha saída
para o mar e era alimentado pelo degelo das neves no verão.
Contudo, sua localização
era privilegiada, porque as rotas de comércio entre a Rússia e a Ásia Central,
de um lado e a Escandinávia e a Europa do outro, passavam justamente por ali e
Novgorod sediava anualmente uma grande feira, para a qual vinham comerciantes e
mercadores desde o norte da Carélia e da Finlândia até a Crimeia, no Mar Negro,
que por algum tempo fez parte do Império Turco.
Muitos destes comerciantes adquiriam bastante lucros e acabavam por se
estabelecer em Novgorod, que foi ficando próspera e rica, embora os mais ricos
fossem mesmo os comerciantes estrangeiros.
A cidade tinha um porto no lago, que servia aos pescadores, ao comércio
e aos viajantes que demandavam as outras margens do lago. Havia outro porto do lado norte, conduzindo
até o lago Ladoga que, este sim, se comunicava com o mar Báltico, através do
rio Neva. No inverno, rios e lagos se
congelavam e a camada de gelo era tão espessa que configuravam estradas
naturais.
Havia na cidade um
menestrel, um cantor e compositor muito talentoso, chamado Sadko, porém muito
pobre, que vivia do dinheiro que ganhava com a música. Ele era um guslar, um tocador de gusli,
um instrumento de cordas mais conhecido pelo seu nome finlandês de kantele. Era um herói para a gente pobre, mas
conseguia deles somente alguns kopieki,
umas moedinhas de cobre; quando tocava nos banquetes dos ricos, aí sim, poderia
esperar receber alguns rublos de prata em troca de seu trabalho, mas dependendo
da casa, só lhe serviam vinho e o deixavam comer os restos do banquete, uma
parte dos quais ele embrulhava em pano e colocava em seu surrão, um saco de
couro, que levava para sua esposa Lyubova, a quem amava ternamente.
Mas os banquetes não
ocorriam todos os dias e muitas vezes, os dois passavam fome, especialmente nos
dias gélidos do rigoroso inverno russo.
Quando não havia outro recurso, Lyubova ia empenhar a aliança de
casamento, seu único bem. Isto
significava receber algum dinheiro com a aliança como garantia, muito menos do
que de fato valia, tendo de pagar o empréstimo mais tarde, com altos juros,
caso contrário perderia a aliança para o prestamista, que era o homem que
emprestava dinheiro em troca de bens empenhados. Por sorte, das diversas vezes em que isto
acontecera, Sadko conseguira ganhar o suficiente para pagar o empréstimo antes
de findar o prazo depois do qual perderia o direito ao anel. Claro que sempre pagava muito mais do que recebera
e o resultado era que o casal se empobrecia cada vez mais.
Mas enquanto eles ficavam
cada vez mais pobres, a cidade ia ficando cada vez mais rica... Os mercadores
que se haviam estabelecido nela mandaram construir armazéns e casas de
comércio, com o que davam emprego para muita gente; e compravam muitos artigos
para uso pessoal, dando serviço aos carpinteiros, tecelões, sapateiros e outros
artesãos; para seus banquetes adquiriam carne de gado, de ovelha, de aves, de
porcos e grande quantidade de frutas e verduras, cereais e farinha, pão com
fartura, cerveja e vinho em abundância, alem do vodka fabricado a partir de
nabos e rabanetes (só depois da descoberta da América, muitos séculos depois, é
que o vodka, cujo nome significa “aguazinha”, um apelido carinhoso, passou a
ser destilado a partir da batata). Isto
significava também um mercado garantido para os camponeses, agricultores e
pecuaristas...
Mas não era só isso, os
pescadores traziam grande quantidade de peixes lacustres e as caravanas do
norte traziam também crustáceos e peixes do mar, carne salgada de rena e
chifres, que eram usados para muitos fins, como artesanato, cabos de facas,
maçanetas de portas ou molduras para quadros; do sul vinham comboios de cevada
e trigo, aveia e centeio, mais artigos do Extremo Oriente, particularmente a
seda, que era muito apreciada por ser leve e bela; embora Novgorod fosse fria a
maior parte do ano, os meses de verão eram bem quentes. Vinham também pérolas do oriente e âmbar do
ocidente... A região produzia madeira e carvão em abundância e da Grécia e da
Itália traziam azeite e vinho. Tudo isso
e muito mais era vendido nas feiras e nos mercados de Novgorod.
Na época das feiras, Sadko
prosperava, porque tocava para os visitantes e conseguia reunir dinheiro suficiente
para compensar a penúria de outras épocas, embora houvesse muita competição,
outros cantores e músicos, malabaristas, saltimbancos, atores de toda a
espécie, mágicos e ilusionistas. Mas um
dia, entre os visitantes, chegou também um afamado cantor e instrumentista de gusli, chamado Nazhata, que obtivera
grande sucesso em sua terra natal, Kiev, mas era aventureiro e queria tentar a
sorte em novos horizontes. E sorte
teve... porque logo se tornou o cantor e guslar
mais apreciado pelos mercadores, muito embora, para falar a verdade, não fosse
tão bom quanto Sadko... Mas se vestia ricamente, com trajos de cetim e de seda,
usava botas de camurça, jaquetas e coletes bordados, anéis nos dedos e
correntes de ouro no pescoço, além de um turbante na cabeça, formado por um
pano vermelho de seda, com sete metros de comprimento, que valia uma fortuna,
mas que lhe fora presenteado na corte do Sultão em troca de seus serviços ou,
pelo menos, era o que ele dizia. Na
verdade, Nazhata ganhara o turbante em um jogo de dados e o mais perto que
estivera da Turquia era a própria Kiev, no centro da atual Ucrânia.
Mas o esplendor e as
mentiras agradavam e se tornou o favorito das grandes casas, de tal modo que
ninguém mais convidava Sadko para tocar nos banquetes de inverno. E o pobre guslar
era forçado a se exibir nas tavernas e estalagens, praticamente a troco de
comida; de dia, ia tocar e cantar no cais do porto, sendo muito louvado pelos
estivadores e marinheiros, artesãos e camponeses, mas sem receber quase nada em
troca de seu esforço. Enquanto isso,
Nazhata compunha canções em louvor da cidade e dos seus ricos patronos, que se
sentiam lisonjeados com seus louvores.
Chegou uma noite em que um
dos mercadores se cansou de ouvir sempre as mesmas coisas e lembrou-se de Sadko
e de suas antigas canções. O menestrel
foi chamado e chegou com seu instrumento velho e suas roupas esfarrapadas, num
tremendo contraste com o gusli envernizado
e com incrustações de madrepérola de Nazhata e suas roupas suntuosas. Mesmo assim, Nazhata ficou enciumado e
começou a dizer piadas enquanto Sadko afinava o instrumento, entre as risadas
de seus partidários. Sadko começou a
tocar e a cantar e ficou claro, no mesmo momento, que era um instrumentista e
cantor pelo menos igual, senão superior ao estrangeiro. Nazhata o desafiou para um desafio de
canções, para ver qual dos dois era o melhor e, longe de se intimidar, Sadko
passou a cantar ainda melhor. Ele
entoava velhas canções russas e poloneses, bálticas e tchecas, que falavam de
guerras e derrotas, de amor e de tristeza, cantava sobre os bosques verdes de
verão e sobre a neve cobrindo até a metade os troncos desnudos durante o
inverno.
Nazhata sentiu seu
prestígio ameaçado e começou a fazer troça cada vez mais alto de seu rival,
acompanhado pelas gargalhadas dos seus partidários. Um deles, já meio bêbado, pôs-se a dançar e
a acertar Sadko com os pés, pedindo desculpas de cada vez, como se fosse por
acidente. Isto se repetiu por várias
vezes, sem que o menestrel desafinasse ou errasse uma só nota. O dono da casa mandou tirar o pretenso
dançarino, mas alguns de seus convidados queriam assistir o espetáculo e troçar
do pobre Sadko, até que se armou uma forte discussão, alta o bastante para
abafar a voz do cantor e o som suave de seu instrumento... o que era justamente
o que Nazhata pretendia. Fingindo
amizade, serviu vários copos de vinho a Sadko, para lhe descansar a voz,
segundo dizia, até que o barulho terminasse.
Mas o clima tinha sido
quebrado. Encerrada a disputa e as
gracinhas do falso dançarino, os mercadores passaram a conversar em altas
vozes, sem darem mais a menor atenção a Sadko, enquanto um coro dos amigos de Nazhata
começou a chamar por seu nome para que voltasse a cantar... Sadko perdeu a paciência e improvisou uma nova
e bela canção, mas cuja letra se referia ao fato de que Novgorod era uma cidade
fechada no meio das terras, com apenas alguns córregos desaguando no lago Ilmen
e como a cidade se tornaria muito mais próspera caso tivesse acesso ao mar,
quando cem barcos lhe trariam riquezas dos quatro cantos da Terra, com muito
mais rapidez e dando muito mais lucro que as lentas caravanas.
De repente, os mercadores
começaram a prestar atenção no que ele dizia e não gostaram. Que direito tinha aquele cantorzinho de criticar
a sua habilidade como comerciantes? O
que ele entendia de barcos ou de caravanas?
Nazhata ficou encantado e recomeçou a alimentar a vaidade dos mercadores
com elogios e brincadeiras sobre a figura e a canção de Sadko. Começaram a dizer que Sadko estava ofendendo
a todos ao falar mal de sua cidade e acabaram exigindo que ele fosse expulso do
salão. O dono da casa não se atreveu a
contrariar seus convidados e dois ou três criados levantaram Sadko à força,
levaram-no até a porta e o jogaram no meio da rua.
Assim, Sadko foi expulso
sem receber um kopieki em troca de
seu trabalho e sem ao menos comer alguma coisa.
Ergueu-se do meio do caminho, suas roupas ainda mais rasgadas do que
antes. Por sorte, seu instrumento não se
quebrara. Mas ao escutar a voz de
Nazhata de dentro do salão, mais uma vez o primeiro cantor da cidade, abanou a
cabeça e foi arrastando os pés pela neve até chegar à praia. Seu futuro era bem triste, nada tinha para
levar a Lyubova e até mesmo se envergonhava de chegar de mãos vazias até
ela. Assim, sentou-se na areia da praia,
onde a neve não se acumulava, afinou o instrumento e começou a cantar de novo
sua última composição, mudando um acorde aqui, melhorando a letra mais
adiante. Estava sozinho e ninguém o
podia criticar.
Mas enquanto ele cantava,
aproximaram-se sete donzelas de irreal beleza e se assentaram ao redor dele em
semicírculo, aplaudindo com prazer a cada pausa que ele fazia. Depois
que ele cantou bastante, a mais linda das sete lhe falou: “Eu sou Volkhova, a
filha de uma estrela com o Rei do Mar, no mais sincero amor... E agora também
eu estou por ti apaixonada... Cantaste muito bem sobre o Oceano, canta-me agora
da terra e sobre o amor!...”
Feliz com a nova
audiência, Sadko começou a cantar uma balada após a outra, até perceber que
seis das donzelas se haviam retirado.
Parou de repente, surpreso, e Volkhova soltou uma gargalhada tão
melodiosa que parecia que sete campainhas de prata estavam tocando. Sentou-se no seu colo e o abraçou e beijou
ardentemente. De madrugada, quando já rompia a aurora, a princesa se ergueu e
lhe disse que doravante iria transformar a sua sorte, desde que ele acreditasse
inteiramente nela e seguisse fielmente suas instruções: “Pescarás amanhã três peixes de ouro e, se souberes aproveitar a oportunidade,
irás fazer pelo mar longa viagem
e novamente, se agires com coragem
e comerciares com grande habilidade,
a Novgorod trarás grande tesouro...
Três anos em viagem gastarás e terás sempre minha proteção, mas à minha mãe terás de conquistar e a meu pai a cada dia louvar. Assim, alcançarás satisfação e longa vida em meus braços gozarás. Porém agora, eu tenho de partir.
Lembra de tudo o que te aconselhei!...
Então Volkhova se ergueu e mergulhou nas águas do lago. Sadko olhou as ondas que iam serenando e
voltou a se deitar, adormecendo de imediato, julgando que tudo não passara de
um lindo sonho. Mas Lyubova, sua esposa,
soubera do que acontecera no banquete e o procurava ansiosa. Quando o encontrou, despertou-o com um beijo,
levou-o para casa, preparou-lhe um banho e serviu-lhe uma refeição. Sadko percebeu que ela mesma não comia nada e
seu coração se apertou de remorso.
Disse-lhe então que ia ao cais do porto ver se conseguia ganhar alguma
coisa e lhe prometeu que voltaria para casa em breve.
Quando chegou ao cais, viu Nazhata
empoleirado no alto da tábua que dava acesso ao tombadilho de um dos barcos,
tocando e cantando e todos os aplaudiam.
Agora ele queria lhe tirar até o amor dos pobres! Todos estavam atentos à canção e foi Nazhata
o primeiro que o notou. Parou de cantar
e lhe dirigiu a palavra com ar de troça, perguntando se tinha vindo pescar no
lago. Sadko outra vez se deixou tomar
pela cólera e, sem pensar, declarou que nessa manhã ia pescar, sim, mas só
pescaria peixes de ouro!... Foi uma gargalhada geral, mas ele insistiu que o
faria, mas somente se lhe comprassem os peixes quando os trouxesse.
Nazhata caiu na risada e indagou o que
ele queria em troca. Sadko exigiu dez
mil rublos de cada mercador. Entre
assobios e assuadas, um dos mercadores lhe falou, em tom de brincadeira: “Será uma aposta, então, não é mesmo? Se trouxeres os peixes de ouro, nós te
pagaremos por eles... Mas se perderes, o que nos darás? És um miserável, não
tens nada de teu...” Sadko declarou,
corajosamente, que empenhava a sua cabeça.
Foi espanto geral e os mercadores já se iam, abanando as cabeças, quando
Nazhata insistiu com eles... “Esperem, boa gente! Por que não aceitam a aposta? Sadko é um homem vigoroso, dará um excelente
escravo... Ou, se preferirem, todos ouviram o que ele disse... Cortem-lhe a
cabeça e a ponham em uma estaca ou mandem empalhar para colocar no salão da
guilda dos mercadores... O que vocês têm a perder?” O tempo todo ele sorria para Sadko, como se
estivesse procurando ajudá-lo, mas era um homem falso e rancoroso e queria ver
mesmo o rival morto ou escravizado.
Tanto falou Nazhata que dez dos
mercadores aceitaram a aposta. Chamaram o
velho Isador, presidente da associação comercial e cada um deles depositou dez
mil rublos em suas mãos. Sadko reafirmou
que daria sua cabeça, caso perdesse a aposta e os mercadores continuaram com o
jogo, discutindo se iam cortar-lhe a cabeça em dez pedaços ou se a jogariam nos
dados... Sadko não desanimou, pediu a um
de seus amigos pescadores que lhe emprestasse a rede; o amigo disse que ele
mesmo e seus ajudantes remariam o bote até o ponto que ele escolhesse, embora
estivessem muito tristes, porque gostavam dele e achavam que havia cometido uma
insensatez com aquela aposta. Sadko
deixou seu gusli nas mãos dos
presidente da guilda, que era um cidadão de Novgorod, um homem muito honrado
que o conhecia desde menino e embarcou.
O bote entrou lago a dentro e, sem
saber por que, Sadko declarou que o lugar era aquele. Ainda
estavam à vista da praia e o povo não parava de fazer troça e rir das piadas de
Nazhata. Porém Sadko lançou a rede e
prontamente sentiu o peso. Os pescadores o ajudaram a puxar e certamente,
maravilha das maravilhas! Não eram
peixes dourados, mas realmente três peixes de ouro maciço que, apesar de seu
peso, haviam flutuado nas águas do lago.
Os pescadores soltaram vivas de alegria e remaram de volta até a
doca. Sadko saiu do bote, triunfante, os
três peixes de ouro segurando entre os braços, com uma certa dificuldade, devido
a seu peso. Nazhata mordeu os lábios de
raiva e todos o aclamaram como um herói.
Isador, o presidente da guilda sopesou os três enormes peixes e disse
que, realmente, eles valiam cem mil rublos e até mais. “Senhores, a aposta está ganha!...”
Os mercadores não se iriam arruinar com
o prejuízo e poderiam mesmo fundir os três peixes, mas começaram a resmungar
que um mercador precisa se esforçar muito para ganhar seu dinheiro e que Sadko
só tivera sorte ou então fora ajudado por algum gênio ou alguma feiticeira...
Que era vergonhoso enriquecer daquela forma.
Olharam com raiva para Nazhata, por cuja insistência haviam sido levados
à aposta e este, percebendo que as coisas estavam mal paradas para seu lado,
teve uma inspiração e começou a cantar sobre um rouxinol que se transformara em
mercador. A alusão ficou clara para
todos e Sadko declarou: “Pois ninguém poderá acusar este rouxinol de ser
desonesto. Também eu serei um mercador. Não quero os cem mil rublos de vocês! Só vou tomar mil rublos de cada um como um
empréstimo. Nenhum me poderá negar, pois estou abrindo mão da maior parte do
que já conquistei!...”
Todo o povo assentiu e até os
mercadores se sentiram aliviados, pois seu prejuízo fora reduzido à décima
parte, ainda com a possibilidade remota de receberem seu dinheiro de volta com
juros. Sadko então falou: “Vou montar
uma grande expedição comercial! Quando
eu retornar, estarei muito mais rico que todos vocês juntos! Quem está disposto a viajar comigo?” Houve um silêncio, depois três marinheiros se
apresentaram. Um era Viking, outro
Veneziano e o terceiro um Hindu, que viera das plagas do Industão.
“Não tenho emprego, portanto, irei
contigo,” falou o Viking, que se chamava Olaf.
“Tenho muita saudade do mar e de minha terra. Já estou preso aqui há muitos meses.” “Eu te acompanho, por ser teu amigo,” disse
Giácomo, o Veneziano, “mas gostarei mesmo de voltar a Veneza, porque este país
é muito frio...” “Eu te seguirei, porque
me manda o coração,” disse o Hindu Mohandas. “Conheço bem os caminhos do mar e
os portos da Índia, em que poderemos comerciar com as maiores vantagens.” Assim, cada um deles falou com a maior
sinceridade e Sadko lhes agradeceu e pediu que cada um segurasse um dos três
peixes.
Pediu então ao presidente da guilda dos
comerciantes que lhe desse nove rublos dos cem mil e que entregasse outros mil
à sua esposa Lyubova. Recomendou-lhe
ainda que cuidasse bem dela na sua ausência, ao que o digno cavalheiro
concordou. Disse então que usaria os
nove mil rublos para pagar seus marinheiros e para as despesas de viagem,
prometendo de novo pagar com juros quando retornasse e solicitou ao presidente
da associação comercial que devolvesse nove mil rublos a cada um dos
apostadores. Um deles, mais ambicioso,
disse que queria os peixes como garantia do empréstimo. Sadko deu uma risada e foi pegando os três
peixes, um a um, dos braços de seus amigos e os jogou no lago, para espanto de
todos.
Mas o espanto se transformou em
assombro quando cada um deles se transformou em um veleiro de três mastros,
totalmente equipado! Mais ainda, começaram
a surgir fardos das águas do lago e golfinhos os empurraram para o tombadilho
dos navios. Os fardos foram descendo até
o porão como se estivessem sendo empurrados ou carregados e lá se empilharam na
mais perfeita ordem. Depois de verem
tudo isso, os marinheiros e estivadores do porto começaram a se empurrar ao
redor de Sadko, todos querendo velejar com ele.
Sadko nomeou Olaf, Giácomo e Mohandas como capitães e eles se
encarregaram de selecionar as tripulações.
Mas Nazhata se recuperou da visão de
todo aquele milagre e fez nova zombaria.
“Mas o que vais fazer com toda essa mercadoria? Tu mesmo disseste que o lago não tem saída
para o mar... Vais abrir um canal para o Ladoga?” Desta vez, ninguém riu, mesmo porque os três
barcos enfunaram as velas e subiram até a margem ocidental do lago, de onde
começaram a velejar sobre a terra seca!
Sadko despediu-se de Lyubova, o povo inteiro disse que a protegeria em
sua ausência. O menestrel pegou de volta
o seu gusli, pediu um cavalo
emprestado e cavalgou até o primeiro navio, subindo pela escada de cordas até o
convés. As quilhas não sofreram qualquer
dano e os cascos permaneceram em perfeitas condições durante a longa viagem até
o mar Báltico, quando então, muito simplesmente, desceram pela praia e entraram
de novo na água, navegando sem a menor dificuldade. Uma multidão espantadíssima seguiu atrás
deles até a praia, pois haviam causado o maior assombro por onde quer que
haviam passado.
Seguindo a sugestão de Giácomo,
bordejaram toda a Europa, sendo muito bem recebidos e comerciando por toda
parte, até chegarem a Veneza, onde tiveram muito lucro. Giácomo visitou os parentes, mas não quis
ficar. Tomaram então o rumo da Índia,
com os barcos mágicos atravessando a seco o deserto do Sinai até o mar
Vermelho. Mohandas igualmente visitou
seus parentes e indicou a Sadko os melhores pontos de comércio até que
alcançaram um lucro inestimável; depois retornaram à Europa pelo mesmo caminho,
cruzando o Mediterrâneo e chegando ao Atlântico pelo estreito de Gibraltar,
depois o canal da Mancha e o mar do Norte até a Noruega, onde Olaf reencontrou
sua família, mas retomou o comando de seu veleiro. Durante todo o tempo, ao contrário do que era
costumeiro, Sadko pagava os marinheiros antes de descerem em cada porto e
separava uma percentagem do lucro para os três capitães.
Mas em toda essa aventura, Sadko
esqueceu-se de quem era responsável por toda a sua prosperidade e, embora
lembrasse de Volkhova de vez em quando, não se recordou de agradecer à estrela
sua mãe, que os guiava e muito menos de louvar ao Tzar, o Rei do Mar, que os
protegera tanto. Assim, ao entrarem no mar Báltico, subitamente
cessou o vento e os barcos foram retidos por uma calmaria que durou três
semanas. Tentaram remar, mas remos e navios estavam presos por um emaranhado de
algas marinhas. O tempo foi passando e
toda a água a bordo dos três barcos terminou. Ora, nem calmarias acontecem, nem
as algas se acumulam assim ao redor das embarcações no mar Báltico. Para tornar pior a situação, um imenso
nevoeiro começou a cair, a um ponto que de um barco não se avistavam os outros
dois.
Tardiamente, Sadko lembrou de sua
promessa e começou a fazer preces à Estrela-Guia e ao Rei do Oceano, invocando
Volkhova e pedindo sua ajuda... mas em vão.
Os marinheiros começaram a lançar oferendas ao mar, alimentos, fardos de
mercadorias, jóias valiosas... mas de nada adiantou. Finalmente, quando a sede já apertava,
lançaram kevels, os dados, para ver
quem era o culpado de sua desgraça; a sorte apontou para o barco de Giácomo, em
que viajava Sadko; depois liberou os marinheiros e apontou os oficiais; lançada
uma terceira vez, a sorte saiu contrária a Sadko. Ele confessou então o seu crime: que
prometera agradecer diariamente à Estrela-Guia e ao Rei do Mar e descuidara de
sua promessa. Que então o jogassem ao
mar e tudo seria resolvido.
Nem os três capitães, nem os
marinheiros queriam atendê-lo, porque o amavam muito. Haviam feito uma viagem
excelente, sempre bem alimentados, sempre bem pagos e, principalmente, nenhum
deles morrera durante esses três anos, o que era uma coisa realmente incomum
nesses tempos perigosos. Mas Sadko
insistiu. Queriam dar-lhe um bote, ele
somente aceitou uma tábua. Jogada a tábua
ao mar, Sadko saltou atrás dela e se agarrou.
Mas as águas se abriram e o engoliram, deixando a tábua a flutuar. Imediatamente
o nevoeiro se dissipou, as algas desapareceram e o vento começou a soprar,
levando os três barcos ao porto mais próximo.
*** *** ***
Quando Sadko se acordou, estava deitado
no meio de um imenso salão verde e azul, cercado de guardas e cortesãos, com
aparência humana, mas também com os traços e atributos de todos os seres
marinhos. Sentados em dois tronos,
estavam o Tzar do Mar e a Estrela-Guia. Firmando
a vista, Sadko avistou Volkhova, em um canto do salão, sentada diante de um
tear, fiando algas do mar, usando uma túnica simples de algodão branco. Ela lhe lançou de relance um olhar triste e
depois baixou a cabeça, concentrando-se em sua árdua tarefa.
“Fizeste mal em me desafiar!” o
poderoso rei então lhe disse. Após uma
pausa, continuou: “Não sei o que minha filha viu em ti!... És um homem comum e
sem valor... Fala agora por que me
desprezaste e nunca em tua viagem me louvaste, depois de te mostrar tanto
favor, pois os caminhos do mar todos te abri!”
E ao ver que Sadko olhava para a princesa, acrescentou: “Minha filha
está ali, cumprindo o seu castigo. Vamos
ver qual será o teu...”
Nesse momento, a rainha lhe falou ao pé
do ouvido. O rei anuiu e falou
novamente: “Porém vejo que trouxeste o instrumento... Toca e canta para nós,
talvez eu entenda porque Volkhova tolice tão tremenda cometeu, contra meu
próprio julgamento... Depois decido o que fazer contigo...” Então, Sadko afinou seu instrumento e cantou
da forma mais encantadora. Toda a corte
o escutou, embevecida e até a rainha mostrou-se comovida, murmurando uma frase
redentora aos ouvidos do rei nesse momento...
Então o Tzar do Mar mostrou-se um pouco mais bondoso: “Cantas e tocas
bem, sem a menor dúvida, especialmente esse poema sobre o bem que o mar traz à
terra... Minha amada esposa intercedeu por ti e te darei minha filha em
casamento. Mas terás de comprovar teu
sentimento, para mostrar que lhe serás um bom esposo. Eu reconheci minha esposa entre sete mil
estrelas... Terás de reconhecer minha filha no meio de cem donzelas!...”
O rei bateu palmas e Volkhova ergueu-se
do tear, movendo-se para trás de um reposteiro, enquanto cem jovens cobriam-se
com véus e corriam alegremente de um lado para o outro. Sadko não conseguiu perceber em que momento
Volkhova se misturara a elas... Mas ao se levantar, erguera uma nuvem de plumas
feitas de lã de algas e estas se espalharam pelo ambiente. Então uma última pluma subiu, flutuou e veio
cair aos pés de Sadko.
As cem donzelas formaram uma longa
fila, todas cobertas de véus, todas com as roupas mais belas, nenhuma parecida
com a túnica simples de algodão que Sadko vira Volkhova usando. Sadko percorreu a fila inteira e disse
depois, sem hesitar: A minha princesa é a última da fila!...” “Tens certeza?”
indagou o rei. “Tenho,” respondeu o
menestrel. “Tens certeza?” inquiriu o
rei de novo. “Tenho, Majestade!”
asseverou Sadko. “Tens mesmo certeza?”,
perguntou o rei uma terceira vez.
“Majestade,” disse Sadko, “todas as donzelas são formosas, mesmo embaixo
de seus véus, mas das cem, a Princesa Volkhova é a mais bela!...” Sem hesitar, levantou o véu da última da fila
e efetivamente era Volkhova, como a pluma o havia informado em segredo.
O Rei do Mar se deu por satisfeito e
mandou celebrar o casamento. Acabada a
cerimônia, quando Sadko beijou a noiva, sentiu uma vertigem e o palácio inteiro
se dissolveu em espuma. Mas Sadko e
Volkhova subiram à tona em uma grande concha de madrepérola, que se ergueu nos
ares e só foi parar na praia junto ao lago Ilmen. Sadko dormiu sobre a areia, embriagado com
tanta beleza, mas a princesa o ficou a contemplar. Então, escutou passos sobre a areia: era
Lyubova, chamando por seu marido, que achava ter perdido para sempre. O coração de Volkhova se partiu, pois no
mesmo instante percebeu que Sadko já era casado! Já se sentia traída, quando recordou que
Sadko nunca lhe mentira e que ela mesma nunca lhe indagara!... Não lhe passara
pela cabeça que ele pudesse estar casado...
Sendo uma fada, percebeu a profundidade
do amor de Lyubova e sua cegueira desfez-se, lembrando-se de que Sadko sequer
lhe dissera que a amava! Sondou-lhe o
coração e viu que seu amor era todo para Lyubova. Deu-lhe então um beijo triste e se lançou ao
lago, a fim de lhe dar a última prova de seu amor. Assim que chegou à margem norte, desfez-se em
lágrimas, uma torrente tão forte que escavou um longo canal até chegar ao lago
Ladoga. Desde modo, transformou-se no
rio Volkhov, que até hoje liga o Ilmen ao Ladoga, chegando depois até o mar Báltico
pelo rio Neva.
O coração de Lyubova quase explodiu de
alegria ao ver Sadko deitado na praia, ao lado de seu instrumento. Abraçou-o e o beijou, enquanto o marido lhe
correspondia carinhosamente. Então,
Sadko lhe disse: “Tive esta noite o sonho mais estranho... Pesquei peixes de
ouro, saí pelo mar em três veleiros, percorri o mundo todo e acabei no palácio
do rei do mar!... Que belo sonho! Vou
ter de escrever uma canção e esta será a mais linda que jamais farei...” Mas Lyubova lhe disse que não era um sonho,
que estivera ausente por três anos.
Sadko não se queria convencer, mas ela lhe mostrou as ricas roupas que
estava usando em lugar de seus antigos farrapos. Disse-lhe mais, que seus três navios estavam
ancorados no porto, carregados de riquezas e mercadorias raras e que seus três
fiéis capitães estavam indagando por ele e contando uma história muito estranha
sobre terem navegado desde o Ladoga por um novo rio antes desconhecido que o
ligava ao Ilmen.
De braço dado com a esposa, Sadko
caminhou até o porto, sendo aplaudido por uma enorme multidão e recebido na
maior alegria pelos seus marinheiros e oficiais. Repetiram-lhe a história do novo canal e ele
disse com simplicidade: “Seu nome é Volkhov.”
Ninguém contestou o que dissera, depois de tantas maravilhas. Foi
procurar Isidor, o velho presidente da guilda dos mercadores e lhe entregou a
importância referente ao empréstimo de dez mil rublos com juros, além de um
rico presente por sua atenção e bondade para com Lyubova durante sua
ausência. Acertou as contas com Olaf,
Giácomo e Mohandas e distribuiu generosos salários a todos os marinheiros que o
haviam acompanhado. Dependendo de sua
natureza, uns compraram propriedades, outros desperdiçaram todo o dinheiro e
outros ainda entregaram o recebido a suas famílias, apresentando-se para novas
viagens. Quanto a Nazhata, retirou-se envergonhado e nunca se soube de seu
verdadeiro destino.
Mas Sadko não quis mais viajar. Equipou numerosas expedições sob o comando de
seus capitães, todas com excelentes resultados e se tornou o homem mais rico de
Novgorod, vendo crescer seus filhos e netos e os netos de seus netos. Teve em
Lyubova uma esposa que o amava de verdade, mas em seu íntimo sempre soube que
um amor muito maior havia perdido.
Escreveu realmente a sua canção, a mais bela que já fora ouvida. Administrou bem sua fortuna e seus negócios e
só se ausentava de Novgorod para se banhar no mágico rio Volkhov, que só ele
sabia como havia surgido e o que de fato era.
Foram as lágrimas de Volkhova que lhe trouxeram tanta saúde e
longevidade.
Mas nunca mais viu
seus olhos que luziam,
com muito mais amor
que o dos humanos...
Parabéns Bill, seu trabalho está ótimo!
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