TÁBUAS DE CARNE
&+ -- 17-21 NOV 2017
novas séries de
william lagos
(a green torso, óleo de anthony christian)
TÁBUAS
DE CARNE -- 17 NOV 2017
MÁS
COMPANHIAS -- 18 NOV 2017
ESQUECIMENTO
-- 19 NOV 2017
CONFLAGRAÇÃO
-- 20 NOV 2017
FLOR
DE FEL -- 21 NOV 2017
TÁBUAS DE CARNE
I -- 17 NOV 2017
Cada poema é
feito de estilhaços
do peito e
baixo-ventre, de cordéis
formados pelas
veias, de painéis
do coração
desfeito em mil pedaços.
Cada soneto uma
ausência de regaços,
é o protesto da
carne sem farnéis,
é a semente
lançada nos papéis,
é a mente
buscando abrir espaços.
Em cada verso a
carne esfarinhada,
a derme louca,
a glândula esmagada,
o hausto
derradeiro do pulmão;
em cada linha a
alma abandonada,
a esperança à
luz desmazelada,
por um qualquer
desespero em compaixão!
TÁBUAS DE CARNE
II
Não componho
meus sonetos de papel;
para esse meio
são somente encaminhados,
do coração
provindo após fotografados,
firmes gravados
com escopro e com cinzel.
Quando tais
versos pinto com pincel,
a minha
surpresa é que não sejam encarnados:
de rubro sangue
deveriam ser marcados,
de minha
vesícula surgiram, de meu fel.
Quem sabe sejam
em xerox só copiados,
algo da força a
se perder nas transcrições,
que a mesma dor
sofre empalidecimento
e as imagens de
mil pontos digitados,
foram em pixels
tornadas notações
e recompostas
no capricho do momento.
TÁBUAS DE CARNE
III
Antigamente,
quando datilografadas
e as teclas
pressionadas por meus dedos
o papel lhe
absorvia os arremedos,
sem parecerem
terem sido digitadas.
Mas no teclado
do pecê são desbotadas
por essa burocracia
em dez penedos:
são arrecifes
tais pixels dos medos,
os sentimentos
mais fortes destilados.
Pois quando a
escrita em carne foi gravada,
mas precisou
ser informatizada,
secou-se ao
vento, tal qual carne de sol;
são poemas de
charque ressecados
e de teu
coração são desviados,
sombra de
versos provada num crisol.
TÁBUAS DE CARNE
IV
Desta forma,
meu poema ensanguentado
embranqueceu-se
após a hemorragia;
só o arcabouço
ali continuaria,
a carne pouco a
pouco gangrenada...
E quando
encontras tal ave abandonada
que se olvidou
de que modo voaria,
pobre é a
mensagem que a ti resultaria:
não tem mais
asas a palavra dessecada.
Já que um poema
é tão só palavra viva,
palavra morta
em sua forma digital
e cabe a ti lhe
concederes transfusão,
que à carne seca
deixes rediviva
pelo soro de
teu sangue espiritual,
sem refletir o
que foi, mas tua emoção!
MÁS COMPANHIAS
I -- 18 NOV 17
Por aí dizem
que "a má companhia
ao bom faz mau
e ao mau torna pior."
Doce e macia é
a voz do tentador,
embora sendo
veraz sua pontaria...
Nos outros
busca tão só o que pretendia,
só para si toda
a vantagem e o favor;
é de teu
próprio interesse o malfeitor
e após seu
ganho para outrem seguiria.
Tudo depende de
qual seja, na verdade;
más companhias
dependem da pessoa
que te apresenta
seus próprios interesses;
pode algum crer
ter do mal necessidade
e julgar que
quanto faz é coisa boa:
um mostra a
carne e outro indica preces.
MÁS COMPANHIAS
II
Se o convite se
destina a algum assalto
ou incitação
para buscar vingança,
condenável te
pareceria essa mudança
ou há condições
recomendando tal ressalto?
Quando um outro
te causou dano bem alto
ou maltratou-te
desde os tempos de criança,
sua maldade
sendo aceita em forma mansa,
talvez apoio te
deem nisso que és falto.
E se ao invés,
esse fosse um bom conselho,
que resultasse
em teu real progresso,
mas
contrariando a vontade de teus pais?
Seria tudo
então o reverso de um espelho;
para seus
planos, talvez um mau ingresso,
mas se te
abrisse dez veredas naturais?
MÁS COMPANHIAS
III
Hão de dizer
que a pior das companhias
é a da mulher
que já viveu bastante,
mas que te
ensina um proceder interessante
que sem sua
orientação não acharias...
De modo igual,
possui o amor estranhas vias:
se apaixonada
te encontras nesse instante,
deixas de lado tudo
e vais avante,
só para estar
com o bem que mais querias...
Dizem os pais
que te desencaminhou
ou que
"emprenhada foste pelo ouvido",
no atoladouro
das róseas fantasias;
mas mesmo
quando esse amor desapontou,
passado o
tempo, preferias ter perdido
o prazer dado
por tão más companhias,,,?
ESQUECIMENTO I
-- 19 NOV 17
"Amor se
esquece se surge um novo amor."
também proclama
a sabença popular:
tudo depende do
que se quer lembrar
ou se o
preferes apagar com extintor!...
Amor se
esquece, mas não se esquece a dor,
tudo depende da
maneira de acabar:
amor há que a
morte veio terminar,
há amor de
palha de temporário ardor.
O amor
profundo, mas jamais realizado,
isso que o
costume denomina de platônico,
embora de fato,
fosse bastante diferente
o que o filósofo
um dia havia idealizado,
é um tal amor
de conteúdo agônico,
que jamais será
esquecido totalmente...
ESQUECIMENTO II
Ai, o primeiro amor como jamais se olvida!
Foi de Neruda
esta frase lapidar.
Talvez o
lembres apenas por odiar,
talvez te
marque para toda a vida!...
A mente
adolescente, ao ser tingida
por emoção tão
comum, mas singular,
jamais consegue
de fato se livrar
do bem ou mal
por que ficou ferida...
Tábula Rasa sendo então o coração
deixa indelével
a marca ali formada,
por mais que se
a deseje deletar...
E quando há
mais carinho na emoção,
inapagável esta
memória conservada,
quantas a
venham no porvir a soterrar...
ESQUECIMENTO
III
O que um amor
pode apagar é o sofrimento,
embalsamado em
tal consolação,
enovelada sua
lembrança em algodão,
delimitada por
razão e julgamento;
sempre no fundo
algum ressentimento
pela tristeza
sofrida na ocasião;
qualquer motivo
que causou separação,
que o espinho
sai, mas fica a marca do lamento.
Mas um sincero
amor paixão supera,
cuja acendalha
te consumiu o antanho,
cujo retorno já
não mais se espera...
E quanto amor
foi de fato passageiro,
equilibrado por
algum de igual tamanho,
ficando o peito
só no aguardo de um terceiro!
CONFLAGRAÇÃO I
-- 20 NOV 2017
Guardei minha
infância até os quarenta e cinco,
empacotada com
as coisas de meu tio
e mais as de um
avô, fio após fio,
do tempo antigo
no qual já não mais brinco.
E embora as
conservasse com afinco,
as coleções
reunidas por meu brio,
selos e livros,
poemas em que esquio,
vi tudo
destruído em um só vinco...
Pois minha casa
foi queimada num incêndio
e tudo se
esfumou num só relance,
tudo quando se
reunira lentamente...
Foi-se minha
infância, perdeu-se o estipêndio,
sumiu-se o
quanto estivera a meu alcance,
sem qualquer
explicação até o presente...
CONFLAGRAÇÃO II
Claro está que
imaginei haver motivo;
naquela casa
poderia ter morrido;
com um pontapé
um trinco foi partido,
entrando o ar
para deixar-me redivivo;
se me deixasse
do sufocar ao crivo,
quanto poema
não seria redigido!
Porém do
incêndio precisava ser nutrido
meu estro
poético, qual me foi já sugerido?
Versos fazia já
antes com frequência;
milhares deles,
de fato, se queimaram,
provavelmente
por razão aleatória;
não foi por
isso então essa pendência;
por que então
quatro décadas marcharam:
seria preciso
dar-me à vida moratória?...
CONFLAGRAÇÃO
III
Seria uma forma
de obter-me a liberdade?
Perdido assim o
peso da bagagem,
para que tudo
retomasse com coragem,
vida diversa
refazendo em integridade?
Seria um
castigo por qualquer maldade,
uma expulsão
para melhor paisagem;
despejo apenas
da velha estalagem,
quiçá lição
apenas de humildade...?
Quase três
décadas hoje transcorridas,
não vejo em
nada um prêmio ou punição:
só um fogo
houve e queimou-me a vida antiga;
tarde ou mais
cedo queimarão todas as vidas,
sem que haja acaso, destino e nem razão,
sem que um
motivo se desvendar consiga.
FLOR DE FEL I
-- 21 NOV 17
Recordo ainda a
doçura do teu beijo
perdido em
escaninhos do passado,
o longo beijo,
por tanto antegozado
e fruído,
afinal, num só ensejo...
O beijo antigo
que ainda mais almejo
recuperar
pudesse e ter-te ao lado,
redisponível em
novo instante revelado,
que de outra
vez concretizasse meu desejo.
Mas não parece
que haja a menor chance,
nossos caminhos
estão desentrelaçados,
cada um de nós
localizando seu farnel.
Queria ainda
conservar a meu alcance
esses teus
lábios que nos meus foram selados,
naquele beijo
de que recordo o suave mel.
FLOR DE FEL II
Nada mais doce
que o beijo recordado,
ósculo impuro
mais fruído integralmente,
depois de
espera longa e inconsequente,
porém sem ser
de uma só vez reconquistado.
Se fosse o
beijo repetido em seu pecado,
talvez se
desbotasse o dom premente,
de
experimentado se tornasse indiferente,
perdido o zelo,
mesmo até abominado...
Isso ocorreu já
tanta vez entre os amantes
e mais ainda em
longos casamentos;
não é que se
despreze o recebido,
mas suas
facetas já não são dilacerantes,
em casulos já
se envolvem sentimentos,
ao ter certeza
de outro beijo garantido.
FLOR DE FEL III
Mas esse beijo que
tanto se esperou
e que um vez
tão somente foi real,
transitório e
fugaz em carnaval,
com serpentina
e confete se lançou.
Como esquecer o
que, enfim, se confirmou,
ao se mostrar
perfeito e natural,
um beijo claro,
concreto, dom carnal,
foi mais e
menos do que a mente imaginou.
Tantos beijos
me chegaram no depois,
bocas amargas e
doces, desiguais,
beijos obscuros
e orgasmos cintilantes;
mas só aquele
foi o beijo de nós dois,
tão transitório
nessas horas eternais,
sem nenhum
outro aguardar-se como dantes!
Recanto das Letras
> Autores > William Lagos
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