sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018




TÁBUAS DE CARNE &+ -- 17-21 NOV 2017
novas séries de william lagos

        (a green torso, óleo de anthony christian)

TÁBUAS DE CARNE -- 17 NOV 2017
MÁS COMPANHIAS -- 18 NOV 2017
ESQUECIMENTO -- 19 NOV 2017
CONFLAGRAÇÃO -- 20 NOV 2017
FLOR DE FEL -- 21 NOV 2017

TÁBUAS DE CARNE I -- 17 NOV 2017

Cada poema é feito de estilhaços
do peito e baixo-ventre, de cordéis
formados pelas veias, de painéis
do coração desfeito em mil pedaços.

Cada soneto uma ausência de regaços,
é o protesto da carne sem farnéis,
é a semente lançada nos papéis,
é a mente buscando abrir espaços.

Em cada verso a carne esfarinhada,
a derme louca, a glândula esmagada,
o hausto derradeiro do pulmão;

em cada linha a alma abandonada,
a esperança à luz desmazelada,
por um qualquer desespero em compaixão!

TÁBUAS DE CARNE II

Não componho meus sonetos de papel;
para esse meio são somente encaminhados,
do coração provindo após fotografados,
firmes gravados com escopro e com cinzel.

Quando tais versos pinto com pincel,
a minha surpresa é que não sejam encarnados:
de rubro sangue deveriam ser marcados,
de minha vesícula surgiram, de meu fel.

Quem sabe sejam em xerox só copiados,
algo da força a se perder nas transcrições,
que a mesma dor sofre empalidecimento

e as imagens de mil pontos digitados,
foram em pixels tornadas notações
e recompostas no capricho do momento.

TÁBUAS DE CARNE III

Antigamente, quando datilografadas
e as teclas pressionadas por meus dedos
o papel lhe absorvia os arremedos,
sem parecerem terem sido digitadas.

Mas no teclado do pecê são desbotadas
por essa burocracia em dez penedos:
são arrecifes tais pixels dos medos,
os sentimentos mais fortes destilados.

Pois quando a escrita em carne foi gravada,
mas precisou ser informatizada,
secou-se ao vento, tal qual carne de sol;

são poemas de charque ressecados
e de teu coração são desviados,
sombra de versos provada num crisol.

TÁBUAS DE CARNE IV

Desta forma, meu poema ensanguentado
embranqueceu-se após a hemorragia;
só o arcabouço ali continuaria,
a carne pouco a pouco gangrenada...

E quando encontras tal ave abandonada
que se olvidou de que modo voaria,
pobre é a mensagem que a ti resultaria:
não tem mais asas a palavra dessecada.

Já que um poema é tão só palavra viva,
palavra morta em sua forma digital
e cabe a ti lhe concederes transfusão,

que à carne seca deixes rediviva
pelo soro de teu sangue espiritual,
sem refletir o que foi, mas tua emoção!

MÁS COMPANHIAS I -- 18 NOV 17

Por aí dizem que "a má companhia
ao bom faz mau e ao mau torna pior."
Doce e macia é a voz do tentador,
embora sendo veraz sua pontaria...

Nos outros busca tão só o que pretendia,
só para si toda a vantagem e o favor;
é de teu próprio interesse o malfeitor
e após seu ganho para outrem seguiria.

Tudo depende de qual seja, na verdade;
más companhias dependem da pessoa
que te apresenta seus próprios interesses;

pode algum crer ter do mal necessidade
e julgar que quanto faz é coisa boa:
um mostra a carne e outro indica preces.

MÁS COMPANHIAS II

Se o convite se destina a algum assalto
ou incitação para buscar vingança,
condenável te pareceria essa mudança
ou há condições recomendando tal ressalto?

Quando um outro te causou dano bem alto
ou maltratou-te desde os tempos de criança,
sua maldade sendo aceita em forma mansa,
talvez apoio te deem nisso que és falto.

E se ao invés, esse fosse um bom conselho,
que resultasse em teu real progresso,
mas contrariando a vontade de teus pais?

Seria tudo então o reverso de um espelho;
para seus planos, talvez um mau ingresso,
mas se te abrisse dez veredas naturais?

MÁS COMPANHIAS III

Hão de dizer que a pior das companhias
é a da mulher que já viveu bastante,
mas que te ensina um proceder interessante
que sem sua orientação não acharias...

De modo igual, possui o amor estranhas vias:
se apaixonada te encontras nesse instante,
deixas de lado tudo e vais avante,
só para estar com o bem que mais querias...

Dizem os pais que te desencaminhou
ou que "emprenhada foste pelo ouvido",
no atoladouro das róseas fantasias;

mas mesmo quando esse amor desapontou,
passado o tempo, preferias ter perdido
o prazer dado por tão más companhias,,,?

ESQUECIMENTO I -- 19 NOV 17

"Amor se esquece se surge um novo amor."
também proclama a sabença popular:
tudo depende do que se quer lembrar
ou se o preferes apagar com extintor!...

Amor se esquece, mas não se esquece a dor,
tudo depende da maneira de acabar:
amor há que a morte veio terminar,
há amor de palha de temporário ardor.

O amor profundo, mas jamais realizado,
isso que o costume denomina de platônico,
embora de fato, fosse bastante diferente

o que o filósofo um dia havia idealizado,
é um tal amor de conteúdo agônico,
que jamais será esquecido totalmente...

ESQUECIMENTO II

Ai, o primeiro amor como jamais se olvida!
Foi de Neruda esta frase lapidar.
Talvez o lembres apenas por odiar,
talvez te marque para toda a vida!...

A mente adolescente, ao ser tingida
por emoção tão comum, mas singular,
jamais consegue de fato se livrar
do bem ou mal por que ficou ferida...

Tábula Rasa sendo então o coração
deixa indelével a marca ali formada,
por mais que se a deseje deletar...

E quando há mais carinho na emoção,
inapagável esta memória conservada,
quantas a venham no porvir a soterrar...

ESQUECIMENTO III

O que um amor pode apagar é o sofrimento,
embalsamado em tal consolação,
enovelada sua lembrança em algodão,
delimitada por razão e julgamento;

sempre no fundo algum ressentimento
pela tristeza sofrida na ocasião;
qualquer motivo que causou separação,
que o espinho sai, mas fica a marca do lamento.

Mas um sincero amor paixão supera,
cuja acendalha te consumiu o antanho,
cujo retorno já não mais se espera...

E quanto amor foi de fato passageiro,
equilibrado por algum de igual tamanho,
ficando o peito só no aguardo de um terceiro!

CONFLAGRAÇÃO I -- 20 NOV 2017

Guardei minha infância até os quarenta e cinco,
empacotada com as coisas de meu tio
e mais as de um avô, fio após fio,
do tempo antigo no qual já não mais brinco.

E embora as conservasse com afinco,
as coleções reunidas por meu brio,
selos e livros, poemas em que esquio,
vi tudo destruído em um só vinco...

Pois minha casa foi queimada num incêndio
e tudo se esfumou num só relance,
tudo quando se reunira lentamente...

Foi-se minha infância, perdeu-se o estipêndio,
sumiu-se o quanto estivera a meu alcance,
sem qualquer explicação até o presente...

CONFLAGRAÇÃO II

Claro está que imaginei haver motivo;
naquela casa poderia ter morrido;
com um pontapé um trinco foi partido,
entrando o ar para deixar-me redivivo;

se me deixasse do sufocar ao crivo,
quanto poema não seria redigido!
Porém do incêndio precisava ser nutrido
meu estro poético, qual me foi já sugerido?

Versos fazia já antes com frequência;
milhares deles, de fato, se queimaram,
provavelmente por razão aleatória;

não foi por isso então essa pendência;
por que então quatro décadas marcharam:
seria preciso dar-me à vida moratória?...

CONFLAGRAÇÃO III

Seria uma forma de obter-me a liberdade?
Perdido assim o peso da bagagem,
para que tudo retomasse com coragem,
vida diversa refazendo em integridade?

Seria um castigo por qualquer maldade,
uma expulsão para melhor paisagem;
despejo apenas da velha estalagem,
quiçá lição apenas de humildade...?

Quase três décadas hoje transcorridas,
não vejo em nada um prêmio ou punição:
só um fogo houve e queimou-me a vida antiga;

tarde ou mais cedo queimarão todas as vidas,
sem  que haja acaso, destino e nem razão,
sem que um motivo se desvendar consiga.

FLOR DE FEL I -- 21 NOV 17

Recordo ainda a doçura do teu beijo
perdido em escaninhos do passado,
o longo beijo, por tanto antegozado
e fruído, afinal, num só ensejo...

O beijo antigo que ainda mais almejo
recuperar pudesse e ter-te ao lado,
redisponível em novo instante revelado,
que de outra vez concretizasse meu desejo.

Mas não parece que haja a menor chance,
nossos caminhos estão desentrelaçados,
cada um de nós localizando seu farnel.

Queria ainda conservar a meu alcance
esses teus lábios que nos meus foram selados,
naquele beijo de que recordo o suave mel.

FLOR DE FEL II

Nada mais doce que o beijo recordado,
ósculo impuro mais fruído integralmente,
depois de espera longa e inconsequente,
porém sem ser de uma só vez reconquistado.

Se fosse o beijo repetido em seu pecado,
talvez se desbotasse o dom premente,
de experimentado se tornasse indiferente,
perdido o zelo, mesmo até abominado...

Isso ocorreu já tanta vez entre os amantes
e mais ainda em longos casamentos;
não é que se despreze o recebido,

mas suas facetas já não são dilacerantes,
em casulos já se envolvem sentimentos,
ao ter certeza de outro beijo garantido.

FLOR DE FEL III

Mas esse beijo que tanto se esperou
e que um vez tão somente foi real,
transitório e fugaz em carnaval,
com serpentina e confete se lançou.

Como esquecer o que, enfim, se confirmou,
ao se mostrar perfeito e natural,
um beijo claro, concreto, dom carnal,
foi mais e menos do que a mente imaginou.

Tantos beijos me chegaram no depois,
bocas amargas e doces, desiguais,
beijos obscuros e orgasmos cintilantes;

mas só aquele foi o beijo de nós dois,
tão transitório nessas horas eternais,
sem nenhum outro aguardar-se como dantes!

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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