(Folclore nordestino, recolhido por Sílvio
Romero e Monteiro Lobato, provavelmente de origem portuguesa,
recontado
em Terza
Rima por William Lagos, 27 OUT 12. As trovinhas já estavam no
original.)
AS
TRÊS MENINAS E A MADRASTA I
Um
comerciante com três filhas enviuvou;
Após
um tempo, por sentir-se solitário,
Novamente
o bom homem se casou
Com
solteirona de gênio atrabiliário,
Velha
demais para alguma gravidez,
Mas
mesmo assim fingindo o necessário
Para
enganar o marido, em sua dobrez.
Ela
pagava uma parteira muito bem
E
se encerrava com ela, a cada vez,
Apresentando
um cordeirinho, que também
Nascera
há pouco e lençóis avermelhados
Com
o sangue do bichinho... Só que tem
Que
mentiam ser nenês e eram enterrados
Em
caixõezinhos brancos na velha sepultura
Do
jazigo da família e ali deixados,
Como
se fosse cada um criança pura,
Nascida
morta no decorrer do parto,
Que
Deus chamara de volta para a altura...
AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA II
Por não ter filhos, era até de se esperar
Que as filhas do marido ela adotasse
E no princípio, chegara até a se esforçar,
Mas nesse ritmo em que o tempo passe,
Foi ficando malvada de amargura,
Ainda que o marido ela enganasse,
Encerrada a gritar, numa loucura,
“Que dor! “Que dor!” Igual
que boa artista,
Como se o parto lhe fosse coisa dura.
Porém o tempo que, aos poucos, nos conquista
Foi passando e a gravidez ainda fingia;
Foram crescendo as três meninas nessa vista.
E curiosas pelo que então acontecia,
À porta vinham, tão só para escutar
E sua conversa com a parteira então se ouvia.
Certo dia, uma bacia a carregar,
As três meninas a parteira descobriu,
Encolhidinhas, com um medo de assustar...
AS
TRÊS MENINAS E A MADRASTA III
Naturalmente,
correu com elas a parteira,
Que
após trocar a água da bacia,
Veio
contar à sua companheira...
Esta
chamou as meninas no outro dia
E
lhes passou uma forte repreensão,
Que
Deus castiga a quem os outros espia!
E
desde esse dia, mudou-se-lhe a intenção:
Por
qualquer pequena falta lhes batia
E
as machucava muita vez, sem compaixão!...
Virou
madrasta, igual que se dizia,
Má
como boa fora a mãe que elas perderam,
Porque
as tivera enquanto ela não podia.
Sob
tal ódio as três então cresceram,
Transformadas
em não mais que três criadas;
Os
negócios do pai sempre o prenderam
E
nunca viu suas filhas espancadas;
Chegava
tarde de seu armazém
E
as encontrava já limpinhas e lavadas...
AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA IV
Durante o dia, só usavam trapos
E trabalhavam feito três escravas,
Limpando a casa, levando mil sopapos.
Mas as meninas eram muito bravas
E resistiam a todos os maus-tratos:
Temiam a raiva da madrasta como travas!
Algumas vezes, as obrigava a comer ratos
E obedeciam, sem pestanejar,
Sem dar motivos para desacatos.
Mas a madrasta só aumentava o seu odiar,
Por falta de motivos de castigo,
Só que a parteira sempre a aconselhava:
“Não vá fazer do patrão seu inimigo!...
Os criados já estão a murmurar,
Manter em linha eu quase não consigo!...”
“São insolentes e não querem trabalhar
E se acaso algum for despedido,
É quase certo que ao patrão irá falar!...”
AS
TRÊS MENINAS E A MADRASTA V
Mas
no quintal havia uma figueira
E
para ter pretexto de castigo,
Dos
belos figos sendo interesseira,
Ela
botou as meninas, sem abrigo,
Com
chuva e sol, os figos a cuidar,
Recomendando,
para seu perigo,
Que
se um só pássaro os fosse debicar,
Daria
a elas uma grande punição,
Pois
não podiam na tarefa descuidar!
Mas
a figueira era alta e, sem razão,
Ela
as mandava fazer outra tarefa,
Para
impedir que prestassem atenção.
E
então cumpria a sua má promessa,
A
cada vez que um figo era bicado,
Era
outra sova a lhes dar, na maior pressa!
Com
um aviso sempre aconselhado:
“Não
se atrevam a contar para seu pai!
Porque
o castigo então será dobrado!...”
AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA VI
E as coitadinhas cercavam a figueira
O tempo todo, sempre que podiam,
Sempre a cantar, em prevenção ligeira:
“Xô, xô,
passarinho,
Aí não toques o
biquinho,
Vai-te embora pro
teu ninho!...”
Mas é claro que os passarinhos viam
Quando a madrasta as fazia trabalhar
E bem depressa pelos galhos já subiam!...
Os figuinhos mais maduros a bicar,
Dando à madrasta pretexto de castigo,
Sem com a mágoa das meninas se importar.
E o pai velho, sem saber que um inimigo
Tinha dentro de casa, perguntava:
“A boa madrasta já te serviu um figo?”
E elas mentiam, como se mandava,
“Ah, sim, papai, comemos já bastante...”
Se por acaso arranhões ele notava,
Elas diziam ter caído... E nesse instante,
Mais cuidado seu pai recomendava,
Sem notar nada o velho comerciante.
AS
TRÊS MENINAS E A MADRASTA VII
Mas
morava uma ninfa na figueira,
Velha
hamadríade, que em tudo reparava
E
percebia da madrasta a má carreira
E
como às três meninas maltratava,
Que
cuidavam de seus frutos muito bem...
E
nas suas folhas, a ninfa suspirava.
Um
dia o velho foi viajar, porém,
Em
caravana que duraria meses;
Ficou
a madrasta cuidando do armazém.
E
tratou muito mal os seus fregueses,
A
tal ponto que afastou a clientela,
Pois
ninguém aprecia quando os leses...
E
em frustração, aumentou a raiva dela:
Tirou
do estoque um vidro de veneno,
Para
livrar-se da indesejada parentela...
Mas
a parteira, num gesto mais ameno,
Deu
às meninas só poção de adormecer,
Pensando
ser um pecado mais pequeno...
AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA VIII
Só que a madrasta as enterrou, ainda assim:
Se estavam vivas, morreriam logo!
Mas seus cabelos cresceram em capim!...
Porque a ninfa da figueira, em desafogo,
Mandou as raízes lhes levarem ar
E a seiva as alimentava, por seu rogo.
Logo as meninas se puseram a cantar,
Mesmo deitadas no fundo da terra,
Para a tarefa ordenada continuar:
“Xô, xô,
passarinho,
Aí não toques o
biquinho,
Vai-te embora pro
teu ninho!...”
E como outra tarefa não as emperra,
Elas cantavam assim o tempo inteiro,
Fazendo aos pássaros uma constante guerra...
Agradecendo pelo ar hospitaleiro
E pela seiva da figueira, que as nutria
E os passarinhos fugiam bem ligeiro...
Quando a madrasta aquele canto ouvia
Pensava ser o vento no capim
E o mandava cortar de noite e dia...
AS
TRÊS MENINAS E A MADRASTA IX
Mas
os cabelos cresciam, mesmo assim,
E
sempre que embalados por viragem,
O
mesmo canto repetiam, outrossim...
“Xô, xô, passarinho,
Aí não toques o biquinho,
Vai-te embora pro teu ninho!...”
Contudo,
o pai voltou de sua viagem,
E
a cada filha trazia o seu presente...
Mentiu
a madrasta, falsa em sua visagem:
“Ai,
meu marido, como é triste te apresente
Esta
notícia!... Foi varíola, meu amado!
As
tuas três filhas morreram de repente!...”
O
velho pai ficou desesperado
E
quis das filhas ir à sepultura;
Foi
a madrasta caminhando do seu lado...
Até
o túmulo de parede escura
Que
à família fora destinado,
Lamentando
uma notícia assim tão dura...
Não
obstante, já crescera no gramado
A
manta verde do lindo capinzal,
Por
mais que fosse a cada dia cortado...
AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA X
E o zéfiro, sussurrando no capim,
Continuava a repetir a melopeia,
Que começava e terminava assim:
“Xô, xô,
passarinho,
Aí não toques o
biquinho,
Vai-te embora pro
teu ninho!...”
E o pai já retornado da epopeia
Imaginava escutar a voz das filhas,
Cantando ao vento, sem outra plateia...
Mas a madrasta dizia que já pilhas
E pilhas cortara desse capim feio,
Senão já se estendera por dez milhas...
Entretanto, lhe brotou certo receio
E então mandou chamar o jardineiro:
De má vontade o empregado veio...
“Você parecer ser inútil capineiro!...”
Já muita vez mandei roçar o capinzal,
Mas no outro dia ele cresce, bem ligeiro!...”
E o jardineiro até respondeu mal:
“Ora, patroa, eu meto a enxada na raiz!
Cheguei a espalhar até uma pá de sal!...”
AS
TRÊS MENINAS E A MADRASTA XI
“Mas
não adianta, ele cresce bem ligeiro!
Acho
que tenho de cavar mais fundo,
Que
tem raízes firmes no terreiro!...”
“Assim
vai me deixar o pátio imundo!
Não
quero que me faça algum buraco!...”
Disse
a madrasta, com temor já mais profundo...
“Quem
sabe então a senhora me dá um saco
De
mata-erva, que eu possa derramar?
Só
nas raízes do capinzal eu taco...”
“Terei
cuidado para não prejudicar
Essas
raízes mais altas da figueira...
Mas
sabe, dona, o que me está a atrapalhar...?”
“É
que parece quase uma cachoeira
A
cantoria, que agora é diferente:
Até
parecem três crianças a cantar!...”
“Capineiro do meu pai,
Não me cortes os cabelos!
Minha mãe me penteava,
Minha madrasta me enterrou,
Pelo figo da figueira,
Que o passarinho bicou!...”
“Vou
perguntar ao patrão, que é inteligente...
Já
viajou por esse mundo à fora...”
“Não
incomode o patrão! Esse assunto é só da
gente!”
AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA XII
“Faça o seguinte: toque fogo na porqueira!...”
“Mas e o patrão, será que vai gostar...?
E se o fogo passar para a figueira...?”
“A sua função aqui é trabalhar!
Toque o fogo duma vez, sem discutir
E não se atreva ao patrão incomodar!...”
O jardineiro passou a noite sem dormir,
O canto das meninas já escutara
E achava estranho esse capim sempre a surgir...
Mas no outro dia, sem a aurora estar bem clara,
Carregou o seu braseiro com tição,
Para fazer o que a madrasta lhe mandara.
E quase lhe parou o coração,
Quando tentou fazer a sua fogueira,
Ao escutar de novo a tal canção:
“Jardineiro do meu
pai,
Não me queimes os
cabelos!
Minha mãe me
penteava,
Minha madrasta me enterrou,
Pelo figo da figueira,
Que o passarinho bicou!...”
E o fogo se apagou, quando a figueira
Moveu os ramos e as brasas espalhou...
Tentou segunda vez e mais terceira...
Mas com medo da patroa, ainda tentou,
Só que a figueira os ramos sacudia
Até que um golpe mais forte o empurrou...
AS
TRÊS MENINAS E A MADRASTA XIII
Pois
cada vez que o vento se apagava
Era
a velha ninfa que o impedia de acender
E
o mesmo canto de novo ele escutava:
“Jardineiro do meu pai,
Não me queimes os cabelos!
Minha mãe me penteava,
Minha madrasta me enterrou,
Pelo figo da figueira,
Que o passarinho bicou!...”
E
o jardineiro achou melhor desobedecer
E
foi falar direto com o patrão,
Que
na cozinha já estava a se mover...
E
lhe contou a história da canção;
Mas
no começo, ele não acreditou,
Com
o jardineiro a insistir em sua versão!
E
quando o pai à figueira se achegou
A
voz das filhas logo reconheceu,
Cujo
canto claramente ele escutou:
“Meu jardineiro e meu pai,
Não me cortem os cabelos!
Minha mãe me penteava,
Minha madrasta me enterrou,
Pelo figo da figueira,
Que o passarinho bicou!...”
E
foi então que o milagre aconteceu:
O
jardineiro e o pai desenterraram
As
três meninas; e foi assim que sucedeu:
Suas
três filhas do chão se levantaram,
Mantidas
vivas pela seiva da figueira
E
pelo ar da raiz que respiraram!...
AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA XIV
Quando a madrasta assistiu, pela janela,
Foi buscar o veneno que guardara
E o esvaziou inteiro pela goela!...
E a parteira, ao ver que estrebuchara,
Tomou o resto do fundo do vidrinho,
Ficou com o corpo em fogo e azul a cara!
Mas foi morrendo bem devagarinho
E confessou toda a maldade ao comerciante,
Que acabou por perdoá-la, por carinho
Das três meninas, que pediram até bastante;
Então a mandou enterrar no cemitério,
Mas à madrasta deu fim mais repugnante:
Jogou-a numa fossa, em despautério,
Que sua carne não matasse os urubus,
Que sempre acham na carniça o refrigério...
Sem lhe marcar a cova com uma cruz,
Pois para o céu certamente não iria,
Por mais que seja bom nosso Jesus!...
EPÍLOGO
Tempos depois, suas três filhas se casavam,
Porque sozinho seu pai não ficaria,
Já que ele e a ninfa longas horas conversavam...
E como a gente antiga nos dizia,
Quem desejar ouvir mais uma história,
Vá bem depressa pedir para a titia!...
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