sábado, 15 de dezembro de 2012



         AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA
(Folclore nordestino, recolhido por Sílvio Romero e Monteiro Lobato, provavelmente de origem portuguesa,
   recontado em Terza Rima por William Lagos, 27 OUT 12. As trovinhas já estavam no original.)

AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA I

Um comerciante com três filhas enviuvou;
Após um tempo, por sentir-se solitário,
Novamente o bom homem se casou

Com solteirona de gênio atrabiliário,
Velha demais para alguma gravidez,
Mas mesmo assim fingindo o necessário

Para enganar o marido, em sua dobrez.
Ela pagava uma parteira muito bem
E se encerrava com ela, a cada vez,

Apresentando um cordeirinho, que também
Nascera há pouco e lençóis avermelhados
Com o sangue do bichinho...  Só que tem

Que mentiam ser nenês e eram enterrados
Em caixõezinhos brancos na velha sepultura
Do jazigo da família e ali deixados,

Como se fosse cada um criança pura,
Nascida morta no decorrer do parto,
Que Deus chamara de volta para a altura...

AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA II

Por não ter filhos, era até de se esperar
Que as filhas do marido ela adotasse
E no princípio, chegara até a se esforçar,

Mas nesse ritmo em que o tempo passe,
Foi ficando malvada de amargura,
Ainda que o marido ela enganasse,


Encerrada a gritar, numa loucura,
“Que dor!  “Que dor!” Igual que boa artista,
Como se o parto lhe fosse coisa dura.

Porém o tempo que, aos poucos, nos conquista
Foi passando e a gravidez ainda fingia;
Foram crescendo as três meninas nessa vista.

E curiosas pelo que então acontecia,
À porta vinham, tão só para escutar
E sua conversa com a parteira então se ouvia.

Certo dia, uma bacia a carregar,
As três meninas a parteira descobriu,
Encolhidinhas, com um medo de assustar...


AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA III

Naturalmente, correu com elas a parteira,
Que após trocar a água da bacia,
Veio contar à sua companheira...

Esta chamou as meninas no outro dia
E lhes passou uma forte repreensão,
Que Deus castiga a quem os outros espia!

E desde esse dia, mudou-se-lhe a intenção:
Por qualquer pequena falta lhes batia
E as machucava muita vez, sem compaixão!...

Virou madrasta, igual que se dizia,
Má como boa fora a mãe que elas perderam,
Porque as tivera enquanto ela não podia.

Sob tal ódio as três então cresceram,
Transformadas em não mais que três criadas;
Os negócios do pai sempre o prenderam

E nunca viu suas filhas espancadas;
Chegava tarde de seu armazém
E as encontrava já limpinhas e lavadas...

AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA IV

Durante o dia, só usavam trapos
E trabalhavam feito três escravas,
Limpando a casa, levando mil sopapos.

Mas as meninas eram muito bravas
E resistiam a todos os maus-tratos:
Temiam a raiva da madrasta como travas!

Algumas vezes, as obrigava a comer ratos
E obedeciam, sem pestanejar,
Sem dar motivos para desacatos.

Mas a madrasta só aumentava o seu odiar,
Por falta de motivos de castigo,
Só que a parteira sempre a aconselhava:

“Não vá fazer do patrão seu inimigo!...
Os criados já estão a murmurar,
Manter em linha eu quase não consigo!...”

“São insolentes e não querem trabalhar
E se acaso algum for despedido,
É quase certo que ao patrão irá falar!...”


AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA V

Mas no quintal havia uma figueira
E para ter pretexto de castigo,
Dos belos figos sendo interesseira,

Ela botou as meninas, sem abrigo,
Com chuva e sol, os figos a cuidar,
Recomendando, para seu perigo,


Que se um só pássaro os fosse debicar,
Daria a elas uma grande punição,
Pois não podiam na tarefa descuidar!

Mas a figueira era alta e, sem razão,
Ela as mandava fazer outra tarefa,
Para impedir que prestassem atenção.

E então cumpria a sua má promessa,
A cada vez que um figo era bicado,
Era outra sova a lhes dar, na maior pressa!

Com um aviso sempre aconselhado:
“Não se atrevam a contar para seu pai!
Porque o castigo então será dobrado!...”


AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA VI

E as coitadinhas cercavam a figueira
O tempo todo, sempre que podiam,
Sempre a cantar, em prevenção ligeira:
            “Xô, xô, passarinho,
            Aí não toques o biquinho,
            Vai-te embora pro teu ninho!...”

Mas é claro que os passarinhos viam
Quando a madrasta as fazia trabalhar
E bem depressa pelos galhos já subiam!...

Os figuinhos mais maduros a bicar,
Dando à madrasta pretexto de castigo,
Sem com a mágoa das meninas se importar.

E o pai velho, sem saber que um inimigo
Tinha dentro de casa, perguntava:
“A boa madrasta já te serviu um figo?”

E elas mentiam, como se mandava,
“Ah, sim, papai, comemos já bastante...”
Se por acaso arranhões ele notava,

Elas diziam ter caído... E nesse instante,
Mais cuidado seu pai recomendava,
Sem notar nada o velho comerciante.

AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA VII

Mas morava uma ninfa na figueira,
Velha hamadríade, que em tudo reparava
E percebia da madrasta a má carreira

E como às três meninas maltratava,
Que cuidavam de seus frutos muito bem...
E nas suas folhas, a ninfa suspirava.

Um dia o velho foi viajar, porém,
Em caravana que duraria meses;
Ficou a madrasta cuidando do armazém.

E tratou muito mal os seus fregueses,
A tal ponto que afastou a clientela,
Pois ninguém aprecia quando os leses...

E em frustração, aumentou a raiva dela:
Tirou do estoque um vidro de veneno,
Para livrar-se da indesejada parentela...

Mas a parteira, num gesto mais ameno,
Deu às meninas só poção de adormecer,
Pensando ser um pecado mais pequeno...

AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA VIII

Só que a madrasta as enterrou, ainda assim:
Se estavam vivas, morreriam logo!
Mas seus cabelos cresceram em capim!...

Porque a ninfa da figueira, em desafogo,
Mandou as raízes lhes levarem ar
E a seiva as alimentava, por seu rogo.

Logo as meninas se puseram a cantar,
Mesmo deitadas no fundo da terra,
Para a tarefa ordenada continuar:
            “Xô, xô, passarinho,
            Aí não toques o biquinho,
            Vai-te embora pro teu ninho!...”

E como outra tarefa não as emperra,
Elas cantavam assim o tempo inteiro,
Fazendo aos pássaros uma constante guerra...

Agradecendo pelo ar hospitaleiro
E pela seiva da figueira, que as nutria
E os passarinhos fugiam bem ligeiro...

Quando a madrasta aquele canto ouvia
Pensava ser o vento no capim
E o mandava cortar de noite e dia...

AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA IX

Mas os cabelos cresciam, mesmo assim,
E sempre que embalados por viragem,
O mesmo canto repetiam, outrossim...
            “Xô, xô, passarinho,
            Aí não toques o biquinho,
            Vai-te embora pro teu ninho!...”

Contudo, o pai voltou de sua viagem,
E a cada filha trazia o seu presente...
Mentiu a madrasta, falsa em sua visagem:

“Ai, meu marido, como é triste te apresente
Esta notícia!... Foi varíola, meu amado!
As tuas três filhas morreram de repente!...”

O velho pai ficou desesperado
E quis das filhas ir à sepultura;
Foi a madrasta caminhando do seu lado...

Até o túmulo de parede escura
Que à família fora destinado,
Lamentando uma notícia assim tão dura...

Não obstante, já crescera no gramado
A manta verde do lindo capinzal,
Por mais que fosse a cada dia cortado...

AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA X

E o zéfiro, sussurrando no capim,
Continuava a repetir a melopeia,
Que começava e terminava assim:
            “Xô, xô, passarinho,
            Aí não toques o biquinho,
            Vai-te embora pro teu ninho!...”

E o pai já retornado da epopeia
Imaginava escutar a voz das filhas,
Cantando ao vento, sem outra plateia...

Mas a madrasta dizia que já pilhas
E pilhas cortara desse capim feio,
Senão já se estendera por dez milhas...

Entretanto, lhe brotou certo receio
E então mandou chamar o jardineiro:
De má vontade o empregado veio...

“Você parecer ser inútil capineiro!...”
Já muita vez mandei roçar o capinzal,
Mas no outro dia ele cresce, bem ligeiro!...”

E o jardineiro até respondeu mal:
“Ora, patroa, eu meto a enxada na raiz!
Cheguei a espalhar até uma pá de sal!...”

AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA XI

“Mas não adianta, ele cresce bem ligeiro!
Acho que tenho de cavar mais fundo,
Que tem raízes firmes no terreiro!...”

“Assim vai me deixar o pátio imundo!
Não quero que me faça algum buraco!...”
Disse a madrasta, com temor já mais profundo...

“Quem sabe então a senhora me dá um saco
De mata-erva, que eu possa derramar?
Só nas raízes do capinzal eu taco...”

“Terei cuidado para não prejudicar
Essas raízes mais altas da figueira...
Mas sabe, dona, o que me está a atrapalhar...?”

“É que parece quase uma cachoeira
A cantoria, que agora é diferente:
Até parecem três crianças a cantar!...”
            “Capineiro do meu pai,
            Não me cortes os cabelos!
            Minha mãe me penteava,
Minha madrasta me enterrou,
Pelo figo da figueira,
Que o passarinho bicou!...”

“Vou perguntar ao patrão, que é inteligente...
Já viajou por esse mundo à fora...”
“Não incomode o patrão!  Esse assunto é só da gente!”


AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA XII

“Faça o seguinte: toque fogo na porqueira!...”
“Mas e o patrão, será que vai gostar...?
E se o fogo passar para a figueira...?”

“A sua função aqui é trabalhar!
Toque o fogo duma vez, sem discutir
E não se atreva ao patrão incomodar!...”

O jardineiro passou a noite sem dormir,
O canto das meninas já escutara
E achava estranho esse capim sempre a surgir...

Mas no outro dia, sem a aurora estar bem clara,
Carregou o seu braseiro com tição,
Para fazer o que a madrasta lhe mandara.

E quase lhe parou o coração,
Quando tentou fazer a sua fogueira,
Ao escutar de novo a tal canção:
            “Jardineiro do meu pai,
            Não me queimes os cabelos!
            Minha mãe me penteava,
Minha madrasta me enterrou,
Pelo figo da figueira,
Que o passarinho bicou!...”

E o fogo se apagou, quando a figueira
Moveu os ramos e as brasas espalhou...
Tentou segunda vez e mais terceira...

Mas com medo da patroa, ainda tentou,
Só que a figueira os ramos sacudia
Até que um golpe mais forte o empurrou...

AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA XIII

Pois cada vez que o vento se apagava
Era a velha ninfa que o impedia de acender
E o mesmo canto de novo ele escutava:
“Jardineiro do meu pai,
            Não me queimes os cabelos!
            Minha mãe me penteava,
Minha madrasta me enterrou,
Pelo figo da figueira,
Que o passarinho bicou!...”

E o jardineiro achou melhor desobedecer
E foi falar direto com o patrão,
Que na cozinha já estava a se mover...

E lhe contou a história da canção;
Mas no começo, ele não acreditou,
Com o jardineiro a insistir em sua versão!

E quando o pai à figueira se achegou
A voz das filhas logo reconheceu,
Cujo canto claramente ele escutou:
“Meu jardineiro e meu pai,
            Não me cortem os cabelos!
            Minha mãe me penteava,
Minha madrasta me enterrou,
Pelo figo da figueira,
Que o passarinho bicou!...”

E foi então que o milagre aconteceu:
O jardineiro e o pai desenterraram
As três meninas; e foi assim que sucedeu:

Suas três filhas do chão se levantaram,
Mantidas vivas pela seiva da figueira
E pelo ar da raiz que respiraram!...


AS TRÊS MENINAS E A MADRASTA XIV

Quando a madrasta assistiu, pela janela,
Foi buscar o veneno que guardara
E o esvaziou inteiro pela goela!...

E a parteira, ao ver que estrebuchara,
Tomou o resto do fundo do vidrinho,
Ficou com o corpo em fogo e azul a cara!


Mas foi morrendo bem devagarinho
E confessou toda a maldade ao comerciante,
Que acabou por perdoá-la, por carinho

Das três meninas, que pediram até bastante;
Então a mandou enterrar no cemitério,
Mas à madrasta deu fim mais repugnante:

Jogou-a numa fossa, em despautério,
Que sua carne não matasse os urubus,
Que sempre acham na carniça o refrigério...

Sem lhe marcar a cova com uma cruz,
Pois para o céu certamente não iria,
Por mais que seja bom nosso Jesus!...

EPÍLOGO

Tempos depois, suas três filhas se casavam,
Porque sozinho seu pai não ficaria,
Já que ele e a ninfa longas horas conversavam...

E como a gente antiga nos dizia,
Quem desejar ouvir mais uma história,
Vá bem depressa pedir para a titia!...


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