sábado, 16 de março de 2013



DUENDÁRIO & MAIS
WILLIAM LAGOS

DUENDÁRIO I  (18 FEV 13)

É crença antiga que, ao redor da gente,
existem seres só em parte materiais,
pequenos entes, talvez só elementais,
sejam fadas, gnomos ou quiçá luminescente

ilusão, que só se avista num repente,
pelo canto dos olhos, ou nesses especiais
momentos mais sensíveis que os demais:
criaturas boas ou más ou indiferentes...

Com frequência, Capetinhas são chamados,
os transparentes duendes brincalhões,
que se divertem, por pura travessura,

porém sem serem, de fato, endemoniados,
por malícia não possuir nos corações:
são mais crianças, com um laivo de doçura.


DUENDÁRIO II

Certamente que isto já te aconteceu:
de algo procurares várias horas
e, de repente, cansada já e a desoras,
vires diante de ti o que se perdeu...

Ou então, outro brinquedo sucedeu,
em tuas tarefas te levando a mil demoras,
tudo difícil, “tropicando nas esporas”,
que por tempo bem maior assim se deu.

Mas, de fato, nenhum deles te magoa
e caso sua presença reconheças,
até te ajudam ou suspendem os gracejos,

que os folgãozinhos são todos gente boa;
só te chamam a atenção, que não esqueças
e então te sopram os fantasmas de seus beijos...


DUENDÁRIO III

Nunca sentiste, num adejar bem leve,
um beijo na tua testa ou na tua face?
Sem que vento qualquer se divisasse,
nem um inseto de incômodo mais breve?

Essas leves comichões, que alguém se atreve
a interpretar qual se visita passe
ou que dinheiro em seguida se encontrasse,
pingo sem água ou floco sem ter neve...?

Melhor então que lhes dês a tua atenção,
porque podem se zangar, se ignorados
e então causarem dores, de repente,

um fincão no teu pé ou numa articulação
de qualquer dedo, porém sem machucados...
Quem nunca teve a sensação, seja descrente!

DUENDÁRIO IV

Outros existem com tenção bem diferente,
que podem ser por magia dominados,
se a carapuça ou um anel forem roubados,
quando encontrados mais distraidamente...

Entre nós o Saci é o mais potente,
por muita gente foram vistos e encontrados
esses negrinhos pernetas, malcriados:
sempre que podem, fazem mal à gente...

Mas quando a prenda se guarda com cuidado
eles se tornam excelentes ajudantes,
porque não são, bem de fato, materiais

e desse jeito, a seu modo endiabrado,
prestam serviços bastante interessantes,
sem que nos possam prejudicar jamais...

DUENDÁRIO V

Outros ainda são servos de uma terra
e ajudam as sementes a crescer,
os rebanhos também sabem entreter
a lã de ovelhas desenrolam quando emperra...

Aos invasores sabem fazer guerra:
levam buracos a seus pés aparecer,
embotam facas, toda mira a se perder
e ainda abrem minas nas lapas de uma serra...

Entre nós, o mais amado é o Negrinho
do Pastoreio, que por gente se desvela,
depois que alguém se dispõe a acender vela,

sempre montado no seu cavalinho,
nos traz de volta o desgarrado da tropilha
e não permite ao peão perder sua trilha...

DUENDÁRIO VI

Já existem outros de índole maleva,
como esse Boitatá, que trouxeram lá do norte,
para ao tropeiro afrontar com a pior sorte,
luz esverdeada e maligna na treva...

Ou a Salamanca do Jarau, que leva
muita gente a mau destino e até à morte,
que na fortuna abre, às vezes, fundo corte
e na carne do infeliz então se ceva...

Há muitos outros duendes por aí,
alguns angélicos, outros meio diabretes,
melhor é se cuidar, sem fazer pouco...

Que “não há bruxas, mas existem” por aqui:
com suas poções entopem gasganetes
e quem delas duvidar é um pobre louco!

VÍTIMAS COMPLACENTES I  (19 fev 13)

Eu andava por aí, perdido, à toa,
Inocente, sem destino ou ilusão,
Sinal da cruz marcando pela mão,
Porém descrente da luz que me perdoa.

Pois cada falta era leve, e assim, destoa
Dos mandamentos para que existe punição;
Se mal pequei, para que serve a paixão
De um Redentor que sobre as nuvens voa?

Então eu te encontrei; e a culpa amei,
Desordenado em arrebatamento,
Nesse amor atribulado e tão profundo

Que corpo e alma assim eu te entreguei,
Sem pensar em pecado ou impedimento,
Pois foi em ti que eu encontrei meu mundo!


VÍTIMAS COMPLACENTES II

Destarte, fui empós culpa maior,
Pelo pecado encontrando a redenção,
Elevando para ti meu coração,
No meu calvário, deliberado ardor!

Foi no teu ventre que encarnei a dor
Da alma errante que não tinha imputação.
Como chegar ao Paraíso, na inação?
Indiferentes pertencem ao Malfeitor...

Assim eu te busquei, exanguinei-me,
Crucificado nos teus braços e tuas pernas,
Nessa luz que só existe por contraste,

Com a escuridão robusta a examinar-me,
Que a salvação achada em ti me baste,
Consolação por quaisquer penas eternas!


VÍTIMAS COMPLACENTES III

Que seja a vida o dom do amor carnal,
Que manifeste vigor robusto em natureza;
Na fealdade se encontra mais beleza
Que em indiferença eivada de irreal;

Que na tua carne há salmo triunfal,
No qual eu me perdi, na minha vileza,
Para que houvesse da redenção certeza,
Nessa homilia de sedução total,

O tempo inteiro sendo vitimado,
Mas sabendo que jamais seria o cordeiro
Que granjearia para ti consolação,

Porém sendo inteiramente consolado,
Ao me perder em teu corpo por inteiro,
Na parusia da final revelação!...


VÍTIMAS COMPLACENTES IV

Ah, como eu há tantos por aí!...
Eu, pelo menos, sabia o que fazia
E o fazia na certeza que sentia
O quanto fora predestinado aqui.

E nessa corrupção que mais senti,
No meu buscar em ti da sintonia,
No fulgor negro que só em ti luzia,
A pena máxima a mim mesmo infligi.

Enquanto algures eu vejo descuidados
Fazendo o mesmo e sem saber que o fazem,
Contaminados na faísca da miragem,

Sem sequer se redimirem nos pecados,
Que tais ações também anjos perfazem,
Buscando abismos iluminar com sua coragem.


AYESHTENI I  (20 FEV 13)

Passei a noite procurando amoras
em árvores vazias e sem sentido.
Por todo o tempo que já hei vivido,
ainda busco os frutos dos outroras

que não coalesceram, rijas horas,
malbaratando, em ilusão perdido,
que guarda firmemente no esquecido
essa minha mente eivada de demoras.

Pois busco amoras em galhos caducados,
sem uma folha sequer.  Jabuticabas
seria mais fácil ou então cacau achar,

mas não existem cajueiros implantados
no meu pomar, que apenas menoscabas,
que me atrevi nas nuvens a plantar.

AYESHTENI II

Passei a noite a recolher os meus outroras,
frutos de antanho, que já achei meio bichados,
só por larvas em vida conservados,
mais do que os frescos, frutos das devoras;

meus passados recamados das desoras,
meus porvires nem ao menos trescalados,
meus presentes interiores tresloucados,
no equilíbrio sutil de vãs melhoras

com a pioras que dançam nas balanças,
sem garantias de coletar, sequer,
enquanto a noite ri e a lua alcança

com o sol a sua brevíssima aliança,
entrelaçado nestes meu mister,
nas mesmas flores que colhia Baudelaire!

AYESHTENI III

De onde o termo?  Talvez Renascimento;
Natasha Atlas a palavra difundiu,
mas para mim nunca de fato a definiu
e permaneço escravo desse intento...

Passei a noite em busca do portento,
amoras mortas, amor que já sumiu,
outroras horas que o tempo já sentiu,
auroras sem amora ou sentimento.

Emboras vivas de uma noite morta,
em vão buscando qualquer significado
numa canção que jamais eu escutei,

de uma cantora que não me bate à porta,
auroras mortas sem haver pecado,
num por-do-sol de que não participei.

AYESHTENI IV

E tu, como passaste a noite morta?
Dormiste bem ou dormiste como eu?
Quem foi que nessa noite te acolheu
entre seus braços, toda líquida em retorta?

Sonhaste sonhos de alfanje que te corta
ou foi tua noite negra a do sandeu,
noite sem sonhos de quem em nada creu?
Ou te furtaste ao sonho em que cavorta,

da crua realidade, a solidão
que morde o calcanhar e dói na nuca?
Bem gostaria, talvez, que minhas canções

pudessem reviver-te, ao coração
as ilusões com que a gente nos educa,
nesse berço sutil das falsidões...

BORRASCA I  (21 FEV 13)

A tempestade movimenta os corações,
muito mais forte que no mundo externo:
é bem aqui que encontramos o inferno,
muito mais próximo que exteriores mutações.

Existem neles cem manadas, profusões
que se atropelam nesse palco interno,
bem mais constante o amargo do que o terno,
nesse atropelo de más recordações.

Os bons momentos que se busca recordar,
os bons instantes que se vem a vivenciar,
são esmagados pelo estouro da boiada;

e essas horas de maior humilhação
jorram à tona, em fiel recordação,
nossa alegria pulverizando em nada.

BORRASCA II

Claro que, no instante seguinte, reagimos,
sem nos deixar levar por depressão,
mas os demônios do imo coração
de novo erguem as cabeças, se dormimos;

lá estão eles, nos sonhos que nutrimos,
a transformar em pesadelo a exaltação;
brotam depressa, a cada hesitação,
depressa em depressão, se o permitirmos.

É tão estranho que as memórias excelentes,
os triunfos e os clangores de alegria
não reproduzam, contra a melancolia,

tropilha igual de procissões ingentes,
como se o mal vicejasse em nosso peito,
multiplicando cada chispa do despeito...

BORRASCA III

Como é difícil dominar as propensões
para a mágoa, a angústia e a impotência,
tal qual se a alma apreciasse essa tendência,
para autoflagelar-se, em vagalhões...

Pois tempestades exteriores e vulcões
são temporários, em sua prepotência;
os terremotos, a rasgar em decadência,
nas permanecem no correr das gerações.

Claro que existem outras condições,
como o gelo ou o calor das estações,
que seus ritmos possuem circanuais;

e que há desertos de banquisas ou areais,
em que as tribulações duram demais,
mas só afligem as locais populações.

BORRASCA IV

Contudo, no que tange à espécie humana,
é bem mais fácil enfrentar a adversidade
do que lembrá-la, com maior intensidade,
multiplicada em negror de fria chama.

E é nisso que a alma nos estagna,
com seus gêiseres de feroz voracidade,
das más lembranças, em pugnacidade,
que gélidas esguicham como magma. 

Então é hora de caçar, uma por uma,
cada lembrança de nossas horas tristes
e mantê-las bem seguras e enjauladas.

Caleidoscópicos tornados, negra espuma,
lá do fundo do abismo, a que resistes
com mil cristais de flamas iridiadas.


VOLGA I (22 FEV 13)

Antigamente, quando em busca da jusante,
em certos rios de mais forte correnteza
os remos não bastavam, com certeza,
para os navios subirem, a seu talante.

Bem ao contrário que descer rumo à vazante,
quando ao curso favorecia a natureza,
a gravidade sempre tende a mais baixeza,
que toda água para o mar tende constante.

Chama-se “sirga” às cordas e correias,
nesse sistema que aos barcos vai puxando,
em direção às nascentes, no esforçar

de pobres homens, a estourar suas veias,
e assim à sirga se vai a vida levando,
sem ter desejo de se descer ao mar.

VOLGA II

É do Volga esse exemplo mais comum:
ouve-se “Ei Ukhnia” e se pensa nos barqueiros,
com remos e pontões de marinheiros,
sem excessivo esforço de nenhum...

Porém de fato, puxava, cada um,
com correias na testa, os companheiros
que no barco continuavam mais fagueiros,
um tal esforço sempre matando algum.

Logo na Rússia, que só aboliu a escravatura
dos próprios russos, após a Revolução
dos Socialistas, que ocorreu antes de Outubro.

Trinta milhões a sofrer fome e tortura,
obedecendo a seu dono e patrão,
até verterem todo o sangue rubro.

VOLGA III

Como os rios se que vão perder no Oceano,
a nossa vida corre sempre para a morte,
embora o nosso esforço a dura sorte
de tal destino contrarie, ano após ano.

Em sua luta pela vida, cada humano
se alimenta a buscar tornar-se forte,
combatendo a entropia, com seu corte,
a distropia puxa à sirga o desengano…

E ao invés de nos deixarmos transportar,
segundo a lei da própria gravidade,
insistimos na busca da jusante,

embora bem saibamos, nesse adiar,
que é impossível recobrar a mocidade,
que a correnteza nos impele na vazante.

VOLGA IV

Sempre é possível em qualquer porto ancorar
e a vida ali manter por alguns anos;
há ocasiões em que até se enfunam panos
na direção contrária ao deslizar...

Mas quando a carga já se está a acumular,
não há mais sirga para quaisquer humanos,
contra a força do rio ou contra os danos
de uma estadia demorada em tal lugar.

Ficam os homens da sirga a contemplar,
enquanto o barco desce, lentamente,
e cedo ou tarde, chega até a foz,

para no mar, enfim, se desmanchar,
empós os ossos que já deixou outra gente
e na frente dos que vêm atrás de nós...

CADEIAS I (23 FEV 13)

És meu destino e te entreguei minha vida,
embora, às vezes, ao cabresto me revolte;
não que de fato, alguma vez, me solte,
mas simplesmente porque a rédea me invalida

e preferisse, quando em vez, uma corrida,
sem esse freio de permanente escolte;
mas sempre torno, na espera que me volte
o mesmo amor que então me leva de vencida.

Porque, de fato, tu controlas meu destino
e cedo ou tarde, me curvo a teu desejo,
sem recompensa e sem te pedir nada,

a contentar-me com teu carinho fino,
pois me controlas ao chicote de teu beijo,
movendo os dedos num toque de alvorada!

CADEIAS II

Fico às vezes dando voltas ao potreiro,
nesses momentos livres dos arreios,
maquinando, talvez, achar os meios
de pular essas cercas, parelheiro...

Mas olho esses moirões, junto ao terreiro
e não consigo pular, em meus receios;
mesmo na ânsia por alheios seios,
não sei o que me aguarda em lar esteiro.

Preciso mesmo é de rédeas e de esporas,
na execução de meu adestramento:
só sob a sela atrevo-me a saltar;

e em liberdade, apenas troto longas horas,
sem decidir qual o melhor momento
para essa cerca transparente arrebentar.

CADEIAS III

Se encetasse boa corrida, conseguia,
mas o que encontro fora de minha baia?
Um outro amor na mulher de verde saia
Que a liberdade tão somente acenaria...?

Toda mulher uma outra espora afligiria:
só me acharia correndo em nova raia;
outra arapuca pressinto, em que não caia,
não é mais doce o capim que comeria...

Cá no meu brete, já sei qual a magia
que me controla de guasca o coração
e me conserta a bombacha e o tirador...

Por que correr empós alheia bruxaria,
que só me irá domar a sofreguidão,
provavelmente sem me dar igual amor?

FACETAS CINCO – A ZUMBI  I  (12 JUL 2006)

Cruel qual mulher morta que pensa inda estar viva
e vive no passado... e macula o seu presente
com desgostos de outrora, punindo tanta gente
pelo que outros fizeram, mantendo rediviva

a mágoa dos amores desfeitos, a impaciente
espera sem futuro, a vastidão lasciva
do amor insatisfeito, a gestação esquiva,
o aborto, a prevenção, a cópula infrequente...

Pobre mulher que sofre, até por opção,
que feliz não quer ser, que até sofrer deseja
e quer tornar os outros a seu redor, também,

criaturas sofridas; e quando a chance vem
de finalmente achar o novo amor que enseja,
prefere a angústia antiga à nova exultação!...

A ZUMBI II  (24 fev 13)

Conheço dessas tantas, andando por aí:
pela mágoa permanente têm amor,
pela desdita demonstram mais calor,
não querem ver ninguém feliz aqui...

Que namoravam a tristeza, percebi,
na merencória paixão de seu palor,
nesse cultivo da ausência de vigor,
mas sem querer, afinal, partir daqui...

São faladeiras e cultivam o pessimismo,
só vendo em qualquer outra o lado mau,
a desejar com insistência o seu fracasso...

Ou, ao contrário, se entregam ao mutismo,
a um novo bem jamais transpondo o vau,
na falsidade rígida do abraço...

A ZUMBI III

Pois o que amam é mesmo se queixar:
que desaponto quando não têm motivo!
Então cultivam desaponto redivivo,
qual um bebê natimorto a acalentar...

Se têm marido, só o sabem atormentar,
de suas mil queixas a passá-lo pelo crivo,
a lastimar-se pelo fato de estar vivo
e mesmo ansiando pelo seu enviuvar.

Que muitas vezes, chegam a apressar,
azucrinando o infeliz até a morte,
ou de outro modo lhe apressando o passamento,

na infelicidade podendo triunfar,
para poder queixar-se da má sorte,
em sua ternura pelo envenenamento!...

A ZUMBI IV

São essas tais que massacram os maridos,
sem jamais refrear língua ferina,
mesmo buscando despertar fúria assassina
nos companheiros assim desiludidos...

E quando enfrentam alguns mais atrevidos,
acabam apanhando, em justa sina,
mas esquecendo a sua malícia fina
para queixar-se dos maus tratos recebidos...

E vão felizes demandar a Delegacia
da Mulher, como hoje virou moda,
virando vítimas no sistema judiciário,

que não contempla a provocação que havia,
mas os maridos sempre culpa nessa roda,
com punições de vezo atrabiliário!...

A ZUMBI V

E se têm filhas, pobres criancinhas!
Sujeitas dia e noite à ladainha
das mil tristezas que o passado lhes continha,
até criá-las como novas zumbizinhas...

Prostitutas a tornar-se ou drogadinhas,
descrentes desde a infância, nessa linha
da maldade, que a elas sempre se avizinha,
não dos estranhos, porém de suas mãezinhas!

Ou então se transformam em carolas,
fazendo diariamente confissões,
sem mencionar seus pecados verdadeiros,

e o pobre padre nem sequer sabe onde pô-las,
quais penitências lhes dar nas ocasiões
em que se queixam dos pecados de terceiros!

A ZUMBI  VI

Sem dúvida, as encontraste tu também;
em ti buscaram despertar a simpatia,
deixando esteira de total melancolia,
em seu esforço de apagar o alheio bem.

São as damas queixosas que se veem,
tristeza a derramar em quem as via,
de fato espargem sobre ti antipatia,
abelhas mortas em eterno vaivém!...

Sempre inventando um novo sofrimento,
que, sem dúvida, lhes acaba por surgir,
mesmo sem ter qualquer causa inicial,

porém conseguem te emprenhar o pensamento,
missionárias sua angústia a distribuir,
almas penadas em que a dor é um bem carnal.

COR DO MAR I (25 FEV 13) 

O mar mui raramente é verde-mar;
muita vez é azul ou acinzentado
ou simplesmente de um pálido dourado,
não mais que um refletor da luz solar.

Por tal reflexo faz-se, às vezes, encarnado
ou se reveste de um claro alaranjar;
chamam de negro seu azul a aprofundar
ou de vermelho qualquer tom mais arroxeado.

Fica aos poucos pela areia acastanhado
ou esbranquiçado pela espuma que flutua,
verde-rosado ao esfumar do entardecer;

dizem ser verde o mar pouco povoado
e azul o mar em que ampla vida estua,
ou violeta a refletir meu padecer...


COR DO MAR II

Na verdade, toda água é incolor,
insípida e inodora em descrição;
tem certa cor na palma de tua mão,
em palma alheia uma diversa cor.

Cada nuance exprime um coração,
em cada tom traz a vida em seu vigor,
vermelha a forte expressão de seu calor
pelos estuários que em cada corpo estão.

Sob o sol pleno, se faz azul-berilo,
lápis-lazúli, cobalto ou turmalina,
ao sol poente, em ouro se desdobra,

de noite, traz a prata do sigilo,
em suavidade sutil de naftalina
e até marfim que em pórfiro sossobra.


COR DO MAR III

Mar de mármore, com laivos de amianto,
o mar purpúreo que descreve Homero,
o mar de cálcio de um destino fero,
o mar cremoso de um perpétuo pranto.

A Terra sua em eternal descanto,
sob a chuva especular que tanto espero;
a própria urina que em meu corpo gero
no mar encontra seu refúgio santo.

Mar escarlate das aves de rapina,
o mar de estanho do gelado pago,
o mar de anis desse licor sem fim,

mar carmesim da maresia fina,
mar ambarino do derradeiro afago
do azul-turquesa que trago dentro em mim.

OLHOS DE ABISMO I (26 FEV 13)

Na chama transparente da paixão
o meu próprio destino me consola;
a vida demonstrou-se má escola,
mas conservei amor no coração.

Em cada verso de mágoa em brotação,
minhalma gira e no ar se desenrola;
meu sonho canta no fumo que se evola,
sem nem sequer buscar satisfação.

Olhos de lume meu peito devoraram,
olhos de chispas em mácula insondável,
olhos de luto pela própria morte,

que não busquei, porém me contemplaram,
nessa ânsia em mastigar o inquebrantável,
a quebrantar cada limite de minha sorte.

OLHOS DE ABISMO II

São olhos que me mordem e me comem,
feitos de sombra, em límpida explosão,
olhos de brasa a roer-me o coração,
que me conquistam e, logo após, me somem.

Bem eu quisera que jamais me domem
esses olhos de argila em mutação,
olhos desfeitos em cúpida emoção,
olhos de grude que meu peito gomem.

Todos os olhos que existem são castanhos,
feitos de grânulos de pura melanina,
mas como o mar, são cheios de nuances,

dependentes da luz os seus rebanhos,
são quase negros quando o marrom anima,
tornam-se azuis se em viés a luz alcances.

OLHOS DE ABISMO III

São olhos verdes de castanho diluídos,
ou de pontos de ouro pintalgados,
ou em círculos concêntricos pintados
ou como gatos, em adagas contraídos.

Olhos de cinza em nuvens iludidos
ou violetas nos azuis mais concentrados;
azul-cobalto em raridez mostrados,
olhos de sonho, de arco-íris perseguidos.

Olhos luzentes, amarelos e fatais,
em redemoinho, sempre apaixonados,
em rodopio a me trazer adversidade,

porém todos são castanhos e abismais,
esses olhos de avelã ou vermelhados,
que me chamam para si, sem ter piedade,


ESTALEIRO I  (27 FEV 13)

Há solidão no barco em estaleiro,
quando ficou totalmente abandonado
e se perdeu do passo amarfanhado,
reduplicado por cada marinheiro.

Talvez coberto por vasto formigueiro
de alcatroadores  seu casco maltratado,
de calafates em seu porão afendilhado,
de lustradores da ferrugem por inteiro.

Até as cracas que nele se acumulam,
a redonda e amarujada companhia,
que quase sugam o aço de suas chapas,

são retiradas por operários que pululam
nessa reforma após longa travessia,
que então o pintam de tinta em novas capas.


ESTALEIRO II

Porém não são amigos permanentes
esses que chegam sob a luz dos holofotes,
parafusos removendo ou até lingotes,
a maresia a enxugar, indiferentes.

E embora os barcos deixem transparentes
para novas viagens, longos botes,
para enfrentar a borrasca novos dotes,
eles destroem as lembranças impotentes.

Que do navio a vida está no estrago:
cada ponto de ferrugem, velho dia,
toda salsugem medalha de uma glória;

perde-se mesmo dos fantasmas seu afago,
pois cada corpo que nele se perdia
deixara a alma na franja da memória.

ESTALEIRO III

Também assim é comigo no repouso:
durante o sono, fazem-me limpeza
e retiram cada teia de incerteza,
cada vestígio de esquecido gozo...

Quando me acordo, um novo dia esposo,
renovado nos  confins da natureza,
para enfrentar, em redobrada fortaleza,
as mil procelas ou então o mar formoso.

Mas ficaram para trás as fantasias,
as solitárias visões do devaneio,
até de minha tristeza empobreci;

e no vogar destas velhas travessias,
deixei  retalhos de mim, nesse permeio
e até dos sonhos que tivera me esqueci.



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