DUENDÁRIO & MAIS
WILLIAM LAGOS
DUENDÁRIO I
(18 FEV 13)
É crença antiga que, ao redor da gente,
existem seres só em parte materiais,
pequenos entes, talvez só elementais,
sejam fadas, gnomos ou quiçá luminescente
ilusão, que só se avista num repente,
pelo canto dos olhos, ou nesses especiais
momentos mais sensíveis que os demais:
criaturas boas ou más ou indiferentes...
Com frequência, Capetinhas são chamados,
os transparentes duendes brincalhões,
que se divertem, por pura travessura,
porém sem serem, de fato, endemoniados,
por malícia não possuir nos corações:
são mais crianças, com um laivo de doçura.
DUENDÁRIO II
Certamente que isto já te aconteceu:
de algo procurares várias horas
e, de repente, cansada já e a desoras,
vires diante de ti o que se perdeu...
Ou então, outro brinquedo sucedeu,
em tuas tarefas te levando a mil demoras,
tudo difícil, “tropicando nas esporas”,
que por tempo bem maior assim se deu.
Mas, de fato, nenhum deles te magoa
e caso sua presença reconheças,
até te ajudam ou suspendem os gracejos,
que os folgãozinhos são todos gente boa;
só te chamam a atenção, que não esqueças
e então te sopram os fantasmas de seus
beijos...
DUENDÁRIO III
Nunca sentiste, num adejar bem leve,
um beijo na tua testa ou na tua face?
Sem que vento qualquer se divisasse,
nem um inseto de incômodo mais breve?
Essas leves comichões, que alguém se atreve
a interpretar qual se visita passe
ou que dinheiro em seguida se encontrasse,
pingo sem água ou floco sem ter neve...?
Melhor então que lhes dês a tua atenção,
porque podem se zangar, se ignorados
e então causarem dores, de repente,
um fincão no teu pé ou numa articulação
de qualquer dedo, porém sem machucados...
Quem nunca teve a sensação, seja descrente!
DUENDÁRIO IV
Outros existem com tenção bem diferente,
que podem ser por magia dominados,
se a carapuça ou um anel forem roubados,
quando encontrados mais distraidamente...
Entre nós o Saci é o mais potente,
por muita gente foram vistos e encontrados
esses negrinhos pernetas, malcriados:
sempre que podem, fazem mal à gente...
Mas quando a prenda se guarda com cuidado
eles se tornam excelentes ajudantes,
porque não são, bem de fato, materiais
e desse jeito, a seu modo endiabrado,
prestam serviços bastante interessantes,
sem que nos possam prejudicar jamais...
DUENDÁRIO V
Outros ainda são servos de uma terra
e ajudam as sementes a crescer,
os rebanhos também sabem entreter
a lã de ovelhas desenrolam quando emperra...
Aos invasores sabem fazer guerra:
levam buracos a seus pés aparecer,
embotam facas, toda mira a se perder
e ainda abrem minas nas lapas de uma serra...
Entre nós, o mais amado é o Negrinho
do Pastoreio, que por gente se desvela,
depois que alguém se dispõe a acender vela,
sempre montado no seu cavalinho,
nos traz de volta o desgarrado da tropilha
e não permite ao peão perder sua trilha...
DUENDÁRIO VI
Já existem outros de índole maleva,
como esse Boitatá, que trouxeram lá do norte,
para ao tropeiro afrontar com a pior sorte,
luz esverdeada e maligna na treva...
Ou a Salamanca do Jarau, que leva
muita gente a mau destino e até à morte,
que na fortuna abre, às vezes, fundo corte
e na carne do infeliz então se ceva...
Há muitos outros duendes por aí,
alguns angélicos, outros meio diabretes,
melhor é se cuidar, sem fazer pouco...
Que “não há bruxas, mas existem” por aqui:
com suas poções entopem gasganetes
e quem delas duvidar é um pobre louco!
VÍTIMAS COMPLACENTES I (19 fev 13)
Eu andava por aí, perdido, à toa,
Inocente, sem destino ou ilusão,
Sinal da cruz marcando pela mão,
Porém descrente da luz que me perdoa.
Pois cada falta era leve, e assim, destoa
Dos mandamentos para que existe punição;
Se mal pequei, para que serve a paixão
De um Redentor que sobre as nuvens voa?
Então eu te encontrei; e a culpa amei,
Desordenado em arrebatamento,
Nesse amor atribulado e tão profundo
Que corpo e alma assim eu te entreguei,
Sem pensar em pecado ou impedimento,
Pois foi em ti que eu encontrei meu mundo!
VÍTIMAS COMPLACENTES II
Destarte, fui empós culpa maior,
Pelo pecado encontrando a redenção,
Elevando para ti meu coração,
No meu calvário, deliberado ardor!
Foi no teu ventre que encarnei a dor
Da alma errante que não tinha imputação.
Como chegar ao Paraíso, na inação?
Indiferentes pertencem ao Malfeitor...
Assim eu te busquei, exanguinei-me,
Crucificado nos teus braços e tuas pernas,
Nessa luz que só existe por contraste,
Com a escuridão robusta a examinar-me,
Que a salvação achada em ti me baste,
Consolação por quaisquer penas eternas!
VÍTIMAS COMPLACENTES III
Que seja a vida o dom do amor carnal,
Que manifeste vigor robusto em natureza;
Na fealdade se encontra mais beleza
Que em indiferença eivada de irreal;
Que na tua carne há salmo triunfal,
No qual eu me perdi, na minha vileza,
Para que houvesse da redenção certeza,
Nessa homilia de sedução total,
O tempo inteiro sendo vitimado,
Mas sabendo que jamais seria o cordeiro
Que granjearia para ti consolação,
Porém sendo inteiramente consolado,
Ao me perder em teu corpo por inteiro,
Na parusia da final revelação!...
VÍTIMAS COMPLACENTES IV
Ah, como eu há tantos por aí!...
Eu, pelo menos, sabia o que fazia
E o fazia na certeza que sentia
O quanto fora predestinado aqui.
E nessa corrupção que mais senti,
No meu buscar em ti da sintonia,
No fulgor negro que só em ti luzia,
A pena máxima a mim mesmo infligi.
Enquanto algures eu vejo descuidados
Fazendo o mesmo e sem saber que o fazem,
Contaminados na faísca da miragem,
Sem sequer se redimirem nos pecados,
Que tais ações também anjos perfazem,
Buscando abismos iluminar com sua coragem.
AYESHTENI I (20 FEV 13)
Passei a noite
procurando amoras
em árvores vazias e
sem sentido.
Por todo o tempo que
já hei vivido,
ainda busco os frutos
dos outroras
que não coalesceram,
rijas horas,
malbaratando, em
ilusão perdido,
que guarda firmemente
no esquecido
essa minha mente
eivada de demoras.
Pois busco amoras em
galhos caducados,
sem uma folha
sequer. Jabuticabas
seria mais fácil ou
então cacau achar,
mas não existem
cajueiros implantados
no meu pomar, que
apenas menoscabas,
que me atrevi nas
nuvens a plantar.
AYESHTENI II
Passei a noite a recolher
os meus outroras,
frutos de antanho, que já
achei meio bichados,
só por larvas em vida
conservados,
mais do que os frescos,
frutos das devoras;
meus passados recamados
das desoras,
meus porvires nem ao menos
trescalados,
meus presentes interiores
tresloucados,
no equilíbrio sutil de vãs
melhoras
com a pioras que dançam
nas balanças,
sem garantias de coletar,
sequer,
enquanto a noite ri e a
lua alcança
com o sol a sua brevíssima
aliança,
entrelaçado nestes meu
mister,
nas mesmas flores que
colhia Baudelaire!
AYESHTENI III
De onde o termo? Talvez Renascimento;
Natasha Atlas a palavra
difundiu,
mas para mim nunca de fato
a definiu
e permaneço escravo desse
intento...
Passei a noite em busca do
portento,
amoras mortas, amor que já
sumiu,
outroras horas que o tempo
já sentiu,
auroras sem amora ou
sentimento.
Emboras vivas de uma noite
morta,
em vão buscando qualquer
significado
numa canção que jamais eu
escutei,
de uma cantora que não me
bate à porta,
auroras mortas sem haver
pecado,
num por-do-sol de que não
participei.
AYESHTENI IV
E tu, como passaste a
noite morta?
Dormiste bem ou
dormiste como eu?
Quem foi que nessa
noite te acolheu
entre seus braços,
toda líquida em retorta?
Sonhaste sonhos de
alfanje que te corta
ou foi tua noite negra
a do sandeu,
noite sem sonhos de
quem em nada creu?
Ou te furtaste ao
sonho em que cavorta,
da crua realidade, a
solidão
que morde o calcanhar
e dói na nuca?
Bem gostaria, talvez,
que minhas canções
pudessem reviver-te,
ao coração
as ilusões com que a
gente nos educa,
nesse berço sutil das
falsidões...
BORRASCA I (21 FEV 13)
A tempestade movimenta
os corações,
muito mais forte que
no mundo externo:
é bem aqui que
encontramos o inferno,
muito mais próximo que
exteriores mutações.
Existem neles cem
manadas, profusões
que se atropelam nesse
palco interno,
bem mais constante o
amargo do que o terno,
nesse atropelo de más
recordações.
Os bons momentos que
se busca recordar,
os bons instantes que
se vem a vivenciar,
são esmagados pelo
estouro da boiada;
e essas horas de maior
humilhação
jorram à tona, em fiel
recordação,
nossa alegria
pulverizando em nada.
BORRASCA II
Claro que, no instante
seguinte, reagimos,
sem nos deixar levar
por depressão,
mas os demônios do imo
coração
de novo erguem as
cabeças, se dormimos;
lá estão eles, nos
sonhos que nutrimos,
a transformar em
pesadelo a exaltação;
brotam depressa, a
cada hesitação,
depressa em depressão,
se o permitirmos.
É tão estranho que as
memórias excelentes,
os triunfos e os
clangores de alegria
não reproduzam, contra
a melancolia,
tropilha igual de
procissões ingentes,
como se o mal
vicejasse em nosso peito,
multiplicando cada
chispa do despeito...
BORRASCA III
Como é difícil dominar
as propensões
para a mágoa, a
angústia e a impotência,
tal qual se a alma
apreciasse essa tendência,
para autoflagelar-se,
em vagalhões...
Pois tempestades
exteriores e vulcões
são temporários, em
sua prepotência;
os terremotos, a
rasgar em decadência,
nas permanecem no
correr das gerações.
Claro que existem
outras condições,
como o gelo ou o calor
das estações,
que seus ritmos
possuem circanuais;
e que há desertos de
banquisas ou areais,
em que as tribulações
duram demais,
mas só afligem as
locais populações.
BORRASCA IV
Contudo, no que tange
à espécie humana,
é bem mais fácil
enfrentar a adversidade
do que lembrá-la, com
maior intensidade,
multiplicada em negror
de fria chama.
E é nisso que a alma
nos estagna,
com seus gêiseres de
feroz voracidade,
das más lembranças, em
pugnacidade,
que gélidas esguicham
como magma.
Então é hora de caçar,
uma por uma,
cada lembrança de
nossas horas tristes
e mantê-las bem
seguras e enjauladas.
Caleidoscópicos
tornados, negra espuma,
lá do fundo do abismo,
a que resistes
com mil cristais de
flamas iridiadas.
VOLGA I (22 FEV 13)
Antigamente, quando em
busca da jusante,
em certos rios de mais
forte correnteza
os remos não bastavam,
com certeza,
para os navios
subirem, a seu talante.
Bem ao contrário que
descer rumo à vazante,
quando ao curso
favorecia a natureza,
a gravidade sempre
tende a mais baixeza,
que toda água para o
mar tende constante.
Chama-se “sirga” às
cordas e correias,
nesse sistema que aos
barcos vai puxando,
em direção às
nascentes, no esforçar
de pobres homens, a
estourar suas veias,
e assim à sirga se vai
a vida levando,
sem ter desejo de se
descer ao mar.
VOLGA II
É do Volga esse
exemplo mais comum:
ouve-se “Ei Ukhnia” e se pensa nos barqueiros,
com remos e pontões de
marinheiros,
sem excessivo esforço
de nenhum...
Porém de fato, puxava,
cada um,
com correias na testa,
os companheiros
que no barco
continuavam mais fagueiros,
um tal esforço sempre
matando algum.
Logo na Rússia, que só
aboliu a escravatura
dos próprios russos,
após a Revolução
dos Socialistas, que
ocorreu antes de Outubro.
Trinta milhões a
sofrer fome e tortura,
obedecendo a seu dono
e patrão,
até verterem todo o
sangue rubro.
VOLGA III
Como os rios se que
vão perder no Oceano,
a nossa vida corre
sempre para a morte,
embora o nosso esforço
a dura sorte
de tal destino
contrarie, ano após ano.
Em sua luta pela vida,
cada humano
se alimenta a buscar
tornar-se forte,
combatendo a entropia,
com seu corte,
a distropia puxa à
sirga o desengano…
E ao invés de nos
deixarmos transportar,
segundo a lei da
própria gravidade,
insistimos na busca da
jusante,
embora bem saibamos,
nesse adiar,
que é impossível
recobrar a mocidade,
que a correnteza nos
impele na vazante.
VOLGA IV
Sempre é possível em
qualquer porto ancorar
e a vida ali manter
por alguns anos;
há ocasiões em que até
se enfunam panos
na direção contrária
ao deslizar...
Mas quando a carga já
se está a acumular,
não há mais sirga para
quaisquer humanos,
contra a força do rio
ou contra os danos
de uma estadia
demorada em tal lugar.
Ficam os homens da
sirga a contemplar,
enquanto o barco
desce, lentamente,
e cedo ou tarde, chega
até a foz,
para no mar, enfim, se
desmanchar,
empós os ossos que já
deixou outra gente
e na frente dos que
vêm atrás de nós...
CADEIAS I (23 FEV 13)
És meu destino e te entreguei minha vida,
embora, às vezes, ao cabresto me revolte;
não que de fato, alguma vez, me solte,
mas simplesmente porque a rédea me invalida
e preferisse, quando em vez, uma corrida,
sem esse freio de permanente escolte;
mas sempre torno, na espera que me volte
o mesmo amor que então me leva de vencida.
Porque, de fato, tu controlas meu destino
e cedo ou tarde, me curvo a teu desejo,
sem recompensa e sem te pedir nada,
a contentar-me com teu carinho fino,
pois me controlas ao chicote de teu beijo,
movendo os dedos num toque de alvorada!
CADEIAS II
Fico às vezes dando voltas ao potreiro,
nesses momentos livres dos arreios,
maquinando, talvez, achar os meios
de pular essas cercas, parelheiro...
Mas olho esses moirões, junto ao terreiro
e não consigo pular, em meus receios;
mesmo na ânsia por alheios seios,
não sei o que me aguarda em lar esteiro.
Preciso mesmo é de rédeas e de esporas,
na execução de meu adestramento:
só sob a sela atrevo-me a saltar;
e em liberdade, apenas troto longas horas,
sem decidir qual o melhor momento
para essa cerca transparente arrebentar.
CADEIAS III
Se encetasse boa corrida, conseguia,
mas o que encontro fora de minha baia?
Um outro amor na mulher de verde saia
Que a liberdade tão somente acenaria...?
Toda mulher uma outra espora afligiria:
só me acharia correndo em nova raia;
outra arapuca pressinto, em que não caia,
não é mais doce o capim que comeria...
Cá no meu brete, já sei qual a magia
que me controla de guasca o coração
e me conserta a bombacha e o tirador...
Por que correr empós alheia bruxaria,
que só me irá domar a sofreguidão,
provavelmente sem me dar igual amor?
FACETAS CINCO – A
ZUMBI I
(12 JUL 2006)
Cruel qual mulher
morta que pensa inda estar viva
e vive no
passado... e macula o seu presente
com desgostos de
outrora, punindo tanta gente
pelo que outros
fizeram, mantendo rediviva
a mágoa dos amores
desfeitos, a impaciente
espera sem futuro,
a vastidão lasciva
do amor
insatisfeito, a gestação esquiva,
o aborto, a
prevenção, a cópula infrequente...
Pobre mulher que
sofre, até por opção,
que feliz não quer
ser, que até sofrer deseja
e quer tornar os
outros a seu redor, também,
criaturas sofridas;
e quando a chance vem
de finalmente achar
o novo amor que enseja,
prefere a angústia
antiga à nova exultação!...
A ZUMBI II (24 fev 13)
Conheço dessas
tantas, andando por aí:
pela mágoa
permanente têm amor,
pela desdita
demonstram mais calor,
não querem ver
ninguém feliz aqui...
Que namoravam a
tristeza, percebi,
na merencória
paixão de seu palor,
nesse cultivo
da ausência de vigor,
mas sem querer,
afinal, partir daqui...
São faladeiras
e cultivam o pessimismo,
só vendo em
qualquer outra o lado mau,
a desejar com
insistência o seu fracasso...
Ou, ao
contrário, se entregam ao mutismo,
a um novo bem
jamais transpondo o vau,
na falsidade
rígida do abraço...
A ZUMBI III
Pois o que amam
é mesmo se queixar:
que desaponto
quando não têm motivo!
Então cultivam
desaponto redivivo,
qual um bebê
natimorto a acalentar...
Se têm marido,
só o sabem atormentar,
de suas mil
queixas a passá-lo pelo crivo,
a lastimar-se
pelo fato de estar vivo
e mesmo
ansiando pelo seu enviuvar.
Que muitas
vezes, chegam a apressar,
azucrinando o
infeliz até a morte,
ou de outro
modo lhe apressando o passamento,
na infelicidade
podendo triunfar,
para poder
queixar-se da má sorte,
em sua ternura
pelo envenenamento!...
A ZUMBI IV
São essas tais
que massacram os maridos,
sem jamais
refrear língua ferina,
mesmo buscando
despertar fúria assassina
nos
companheiros assim desiludidos...
E quando
enfrentam alguns mais atrevidos,
acabam
apanhando, em justa sina,
mas esquecendo
a sua malícia fina
para queixar-se
dos maus tratos recebidos...
E vão felizes
demandar a Delegacia
da Mulher, como
hoje virou moda,
virando vítimas
no sistema judiciário,
que não
contempla a provocação que havia,
mas os maridos
sempre culpa nessa roda,
com punições de
vezo atrabiliário!...
A ZUMBI V
E se têm
filhas, pobres criancinhas!
Sujeitas dia e
noite à ladainha
das mil
tristezas que o passado lhes continha,
até criá-las
como novas zumbizinhas...
Prostitutas a
tornar-se ou drogadinhas,
descrentes
desde a infância, nessa linha
da maldade, que
a elas sempre se avizinha,
não dos
estranhos, porém de suas mãezinhas!
Ou então se
transformam em carolas,
fazendo
diariamente confissões,
sem mencionar
seus pecados verdadeiros,
e o pobre padre
nem sequer sabe onde pô-las,
quais
penitências lhes dar nas ocasiões
em que se
queixam dos pecados de terceiros!
A ZUMBI VI
Sem dúvida, as
encontraste tu também;
em ti buscaram
despertar a simpatia,
deixando esteira de
total melancolia,
em seu esforço de
apagar o alheio bem.
São as damas
queixosas que se veem,
tristeza a derramar
em quem as via,
de fato espargem
sobre ti antipatia,
abelhas mortas em
eterno vaivém!...
Sempre inventando
um novo sofrimento,
que, sem dúvida,
lhes acaba por surgir,
mesmo sem ter
qualquer causa inicial,
porém conseguem te
emprenhar o pensamento,
missionárias sua
angústia a distribuir,
almas penadas em
que a dor é um bem carnal.
COR DO MAR I (25 FEV
13)
O mar mui raramente é
verde-mar;
muita vez é azul ou
acinzentado
ou simplesmente de um
pálido dourado,
não mais que um
refletor da luz solar.
Por tal reflexo
faz-se, às vezes, encarnado
ou se reveste de um
claro alaranjar;
chamam de negro seu
azul a aprofundar
ou de vermelho
qualquer tom mais arroxeado.
Fica aos poucos pela
areia acastanhado
ou esbranquiçado pela
espuma que flutua,
verde-rosado ao
esfumar do entardecer;
dizem ser verde o mar
pouco povoado
e azul o mar em que
ampla vida estua,
ou violeta a refletir
meu padecer...
COR DO MAR II
Na verdade, toda água
é incolor,
insípida e inodora em
descrição;
tem certa cor na palma
de tua mão,
em palma alheia uma
diversa cor.
Cada nuance exprime um
coração,
em cada tom traz a
vida em seu vigor,
vermelha a forte
expressão de seu calor
pelos estuários que em
cada corpo estão.
Sob o sol pleno, se
faz azul-berilo,
lápis-lazúli, cobalto
ou turmalina,
ao sol poente, em ouro
se desdobra,
de noite, traz a prata
do sigilo,
em suavidade sutil de
naftalina
e até marfim que em
pórfiro sossobra.
COR DO MAR III
Mar de mármore, com
laivos de amianto,
o mar purpúreo que
descreve Homero,
o mar de cálcio de um
destino fero,
o mar cremoso de um
perpétuo pranto.
A Terra sua em eternal
descanto,
sob a chuva especular
que tanto espero;
a própria urina que em
meu corpo gero
no mar encontra seu
refúgio santo.
Mar escarlate das aves
de rapina,
o mar de estanho do
gelado pago,
o mar de anis desse
licor sem fim,
mar carmesim da
maresia fina,
mar ambarino do derradeiro
afago
do azul-turquesa que
trago dentro em mim.
OLHOS DE ABISMO I (26
FEV 13)
Na chama transparente
da paixão
o meu próprio destino
me consola;
a vida demonstrou-se
má escola,
mas conservei amor no
coração.
Em cada verso de mágoa
em brotação,
minhalma gira e no ar
se desenrola;
meu sonho canta no
fumo que se evola,
sem nem sequer buscar
satisfação.
Olhos de lume meu
peito devoraram,
olhos de chispas em
mácula insondável,
olhos de luto pela
própria morte,
que não busquei, porém
me contemplaram,
nessa ânsia em
mastigar o inquebrantável,
a quebrantar cada
limite de minha sorte.
OLHOS DE ABISMO II
São olhos que me mordem
e me comem,
feitos de sombra, em
límpida explosão,
olhos de brasa a
roer-me o coração,
que me conquistam e,
logo após, me somem.
Bem eu quisera que
jamais me domem
esses olhos de argila
em mutação,
olhos desfeitos em
cúpida emoção,
olhos de grude que meu
peito gomem.
Todos os olhos que
existem são castanhos,
feitos de grânulos de
pura melanina,
mas como o mar, são
cheios de nuances,
dependentes da luz os
seus rebanhos,
são quase negros quando
o marrom anima,
tornam-se azuis se em
viés a luz alcances.
OLHOS DE ABISMO III
São olhos verdes de
castanho diluídos,
ou de pontos de ouro
pintalgados,
ou em círculos
concêntricos pintados
ou como gatos, em
adagas contraídos.
Olhos de cinza em
nuvens iludidos
ou violetas nos azuis
mais concentrados;
azul-cobalto em
raridez mostrados,
olhos de sonho, de
arco-íris perseguidos.
Olhos luzentes,
amarelos e fatais,
em redemoinho, sempre
apaixonados,
em rodopio a me trazer
adversidade,
porém todos são
castanhos e abismais,
esses olhos de avelã
ou vermelhados,
que me chamam para si,
sem ter piedade,
ESTALEIRO I (27 FEV 13)
Há solidão no barco em
estaleiro,
quando ficou
totalmente abandonado
e se perdeu do passo
amarfanhado,
reduplicado por cada
marinheiro.
Talvez coberto por
vasto formigueiro
de alcatroadores seu casco maltratado,
de calafates em seu
porão afendilhado,
de lustradores da
ferrugem por inteiro.
Até as cracas que nele
se acumulam,
a redonda e amarujada
companhia,
que quase sugam o aço
de suas chapas,
são retiradas por
operários que pululam
nessa reforma após
longa travessia,
que então o pintam de
tinta em novas capas.
ESTALEIRO II
Porém não são amigos
permanentes
esses que chegam sob a
luz dos holofotes,
parafusos removendo ou
até lingotes,
a maresia a enxugar,
indiferentes.
E embora os barcos
deixem transparentes
para novas viagens,
longos botes,
para enfrentar a
borrasca novos dotes,
eles destroem as
lembranças impotentes.
Que do navio a vida
está no estrago:
cada ponto de
ferrugem, velho dia,
toda salsugem medalha
de uma glória;
perde-se mesmo dos
fantasmas seu afago,
pois cada corpo que
nele se perdia
deixara a alma na
franja da memória.
ESTALEIRO III
Também assim é comigo
no repouso:
durante o sono,
fazem-me limpeza
e retiram cada teia de
incerteza,
cada vestígio de
esquecido gozo...
Quando me acordo, um
novo dia esposo,
renovado nos confins da natureza,
para enfrentar, em
redobrada fortaleza,
as mil procelas ou então
o mar formoso.
Mas ficaram para trás
as fantasias,
as solitárias visões
do devaneio,
até de minha tristeza
empobreci;
e no vogar destas
velhas travessias,
deixei retalhos de mim, nesse permeio
e até dos sonhos que
tivera me esqueci.
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