sábado, 9 de março de 2013



OS DOIS VIANDANTES
(Folklore alemão recontado em prosa por Viriato Padilha,
Versão poética de William Lagos, 17 FEV 13)


OS DOIS VIANDANTES I

Por muito tempo, o Reino da Baviera
Experimentara grande prosperidade:
Havia trabalho para todos e até fartura,
Mas veio a guerra, com sua calamidade,
As tropas de Napoleão, em sua loucura,
A matar e a saquear, qual besta-fera.

Havia uma pequena cidade, em que morava
Um hábil e orgulhoso sapateiro,
Que de repente, perdera a freguesia,
Porque o povo fugira, bem ligeiro,
E não sabia mais o que fazia,
Já que trabalho não mais se encontrava.

Havia treinado um jovem aprendiz,
Que em pouco tempo ao mestre superara,
Embora trabalhasse à luz de vela
E suas vistas assim muito estragara,
Porque era o mestre que sentava-se à janela
E ainda explorava ao máximo o infeliz.

Se havia encomenda de maior urgência,
Ele o fazia trabalhar a noite a dentro,
Sem ter sequer o calor de um fogareiro,
Dormia sob a escada, lá no centro
Dos couros velhos, uma sela o travesseiro,
Comendo os restos do patrão em sua indigência.

OS DOIS VIANDANTES II

E o velho, até mesmo sem motivo,
Diariamente lhe dava alguns varaços,
Para que nunca esquecesse o seu lugar;
Foram-se aos poucos lhe amargurando os traços,
Mas como precisasse trabalhar,
Sob seu mestre permanecia cativo...

E quando a obra começou a escassear,
O mestre resolveu mandá-lo embora:
Deu-lhe queijo, carne seca e meio pão,
Mais cinco groschen pelos anos de penhora,
Afirmando que, por ter bom coração,
As ferramentas lhe permitiria levar...

Mas amolgadas estavam as ferramentas
E sua mochila velha e desgastada,
Até as botinas cheias de buracos.
O pobre Adolf perdeu-se pela estrada,
Mas nessa noite voltou e encheu dois sacos
Com pedaços de couro, linha e tentas.

Porém logo acordou-se o sapateiro
E lhe tomou o quanto lhe roubara,
Deu-lhe uma sova para o castigar...
Só então Adolf, de fato, se afastara
Jurando que um dia se haveria de vingar
Do seu patrão e até do mundo inteiro!...


OS DOIS VIANDANTES III

Ora, outro moço em alfaiate se tornara,
Chamado Ludwig e, após o aprendizado,
Tão logo dominara totalmente a profissão,
Viu-se também pelo mestre despachado,
Encontrando-se em idêntica situação
Que o sapateiro – só que não roubara.

Na verdade, ele andava bem vestido,
Porque suas próprias roupas costurara
E carregava uma mochila leve,
Cheia de linhas e agulhas que levara
Mais alimentos para viagem breve,
Porque esperava ser bem sucedido.

Era de gênio alegre e folgazão,
Sabia terem abandonado sua cidade
E que seu mestre não tinha mais trabalho;
Só recebera dois groschen, na verdade,
Mas sua mochila tinha melhor talho
E ganhara um bom farnel de seu patrão.

Desse modo, ao meter o pé na estrada,
Até se achava num excelente humor,
Pois boa fortuna encontraria em Berlim.
Que os francos o Kaiser combatia com ardor
E acreditava lá encontrar assim
Ocupação bastante bem remunerada.


OS DOIS VIANDANTES IV

Ludwig pela estrada ia assobiando,
Seu fardo leve e cheio de esperança,
Bem ao contrário do Adolf ressentido;
Até depois de percorrer uma boa andança
Em paz com o mundo, mesmo tendo sido
Jogado ao léu, em sua sorte acreditando.

E aconteceu que em uma encruzilhada
Se encontraram os dois, um assoviando
E o outro resmungando contra a vida.
Os dois se olharam, meio se avaliando,
Se poderiam levar-se de vencida,
Caso o outro intentasse tratantada...

Mas então se saudaram, com cuidado
E mesmo Adolf estando maltrapilho
E lhe mostrando feia catadura,
Ao perceber que seguiam igual trilho
Ludwig o recebeu com alma pura
E decidiram correr mundo lado a lado...

Logo a seguir, encontraram uma ponte
E desceram até a beira do ribeiro
Para beber; e seus cantis encheram.
Ludwig resolveu comer primeiro
E um ao outro as provisões ofereceram
E se banharam depois, na água da fonte.

OS DOIS VIANDANTES V

Ludwig contou sua história facilmente,
Adolf se mostrou mais reservado,
Mas logo se tornaram bons amigos...
O alfaiate, porém, fora invejado
Pelo outro, mas os olhares inimigos
O sapateiro disfarçou, bem habilmente...

Porém Ludwig, ao saber sua profissão,
Começou a troçar, de bom humor,
Mas meu amigo, seu calçado está rasgado!
Sua mochila esburacada, que é um horror!
Como espera poder ser empregado
Até mesmo por sapateiro remendão...?”

Não falava por mal, era sincero
E demonstrava real preocupação,
Porém Adolf a tomou por zombaria
E de raiva ele se encheu, sem ter razão.
Só não o atacou porque era fraco e cria
Que numa briga seria o outro mais fero.

E depois, havia perigo em andar sozinho,
Devido aos bandos de soldados desertores,
Gente fugida de casa e até esfomeada...
Dois jovens juntos causariam mais temores,
Caso encontrassem inimigos pela estrada;
E vingança é coisa a planejar devagarinho...

OS DOIS VIANDANTES VI

Logo a seguir, entraram numa aldeia
E encontraram uma estalagem frequentada,
Que a guerra não passara por ali;
Havia roupa para ser remendada
E Ludwig logo deu conta de si,
Mas para Adolf fizeram cara feia...

Você não me parece um sapateiro!...”
E era inútil que mostrasse a ferramenta,
Achavam mesmo que a tinha roubado
E quando seu trabalho mostrar tenta,
Não tinha couro que pudesse ser usado...
Mas Ludwig o defendeu, ligeiro...

Chegou o burgomestre e disse, então:
“Vejo bem que você é profissional,
Mas seu amigo está mais para mendigo,
Talvez acabe por fazer-lhe mal...
Deixe que vá e você fica comigo.”
“Perdoe, senhor, porém não tem razão.”

“Não se abandona assim qualquer amigo...”
“Você é que sabe.  Podem pernoitar,
Mas de fato, não precisamos de alfaiate.
Assim que seu trabalho terminar,
Tomem a estrada para alguém que os dois acate.
Só não esqueça de que o alertei para o perigo!”


OS DOIS VIANDANTES VII

No outro dia, o alfaiate completou
Muitos consertos que lhe haviam trazido,
Porém Adolf nada conseguiu...
E após terem um bom almoço consumido,
De novo o par pela estrada partiu
E Adolf o tempo todo se queixou...

Foi sendo assim, ao longo do caminho;
Onde chegavam, o alfaiate, bem depressa
Achava algum serviço; e o sapateiro
Era corrido com ainda maior pressa.
Sempre Ludwig ajudava o companheiro,
Mas sua bondade o feria como espinho...

E assim se deu, durante muitos dias.
Ludwig poderia ficar em qualquer parte,
Porém Adolf só despertava desconfiança
E o enxotavam, no maior descarte,
Mas o amigo animava-lhe a esperança,
E repartia com ele as mercancias...

Chegou até a lhe dar novos sapatos,
Que Adolf só aceitou de má vontade,
Mas precisava deles para a estrada
E o alfaiate até lhe deu oportunidade
De ajudá-lo em encomendas, porém nada
O contentava, quaisquer fossem os fatos.

OS DOIS VIANDANTES VIII

Mesmo que os pontos que dá um sapateiro
São mais grosseiros que os que se dá num pano
E pior, Adolf não enxergava bem...
E ele se enchia de um rancor insano
Da boa visão que esse alfaiate tem
E cada vez odiava mais seu companheiro...

O bom Ludwig nada percebia
E como sempre ganhava bom dinheiro,
Viviam bem e comiam do melhor.
Mas ninguém dava serviço ao sapateiro,
Senão trabalho grosseiro e bem pior
Do que o orgulhoso Adolf aceitaria...

E assim chegaram à Floresta Negra...
Duas estradas conduziam a Berlim;
Um dos caminhos durava uma semana,
Mas o outro era bem curto até o fim.
Sem que encontrassem alimento ou cama,
Levava só dois dias, via de regra...

Ludwig, que sempre era otimista
E não gostava de peso carregar,
Decidiu levar pão para dois dias;
Porém Adolf, sua mochila a transportar,
Comprou pão para mais longas vias,
Mais de semana lhe duraria a pista.

OS DOIS VIANDANTES IX

Foi tudo bem, no começo da viagem,
Mas o caminho escolhido fora o errado...
E Ludwig logo ficou sem provisão.
E então Adolf fez-se de rogado:
“Eu lhe falei para comprar mais pão:
Agora, enfrente a fome com coragem!”

E por mais que Ludwig lhe pedisse,
Depois de tê-lo ajudado e repartido
Por tantas vezes, não se comoveu.
Só seu rancor ele não havia esquecido;
A fome do outro só prazer lhe deu:
“Por que não fez do jeito que eu lhe disse?”

No quarto dia, ouviram cavalhada
E se ocultaram no meio dos pinheiros...
Era uma tropa de francos, bem armados,
Traziam consigo um par de prisioneiros,
Por curtas cordas os dois eram puxados,
Correndo e tropeçando pela estrada...

Por que não pede comida aos granadeiros?”
Cochichou Adolf, enquanto eles passavam.
Mas Ludwig só mirou-o, com tristeza...
No quinto dia, já as forças lhe falhavam
E suplicou-lhe, com muita gentileza:
“Pois não eram, afinal, dois companheiros?”

OS DOIS VIANDANTES X

“Está bem”, disse então o sapateiro.
“Dar-lhe-ei meu pão, para que não mais insista,
Mas não espere que vá lhe dar de graça...
Vai me deixar que lhe fure uma vista!...
O seu dinheiro, na floresta e na desgraça
Não me serve de nada, companheiro!...”

Escolhendo entre a morte e a cegueira,
Ludwig acabou por concordar...
Se eu morrer, não posso ver mais nada!
E deixou seu olho esquerdo perfurar,
Com uma sovela de ponta aguçada,
Que Adolf tirou de dentro da algibeira...

Mesmo chorando, ele matou a fome
E conseguiu mais um dia caminhar,
O sapateiro saboreando sua vingança.
Porém, no sétimo, nem podia mais andar.
“Essa sua insistência já me cansa!
Furo o outro olho e depois você come!”

“Como pode ser cruel dessa maneira?
Quantas vezes, no passado, eu o ajudei?”
“Pois muito bem!  O meu pão eu vou guardar!”
“Se não comer mais nada, morrerei...”
E o alfaiate deixou-se perfurar,
Em troca apenas de refeição ligeira...

OS DOIS VIANDANTES XI

“Mas e agora, como eu seguirei...?”
“Ora, é apenas seguir estrada adiante...
Quebre um galho, que lhe serve de bengala...”
Mas o alfaiate caía a todo o instante...
“Fiquei sem pão e você nunca se cala!
Pois aqui mesmo eu hoje o deixarei!...”

E ao ver Ludwig se arrastando pelo chão,
Já Adolf arquitetou outra maldade...
“Você não mais precisa do seu traje...
Ainda tenho um naco de pão, é bem verdade...
Podia matá-lo, mas assim não se age:
Dê-me sua roupa, dou-lhe o resto do meu pão!”

E mesmo assim, numa espécie de capricho,
Ajudou Ludwig a vestir os seus farrapos,
Vestiu a roupa boa e deu-lhe o pão...
Seguiu a estrada, abandonando os trapos,
Pegou o dinheiro, sem ter compaixão:
“Guarde as agulhas, não preciso desse lixo!”

E o cego Ludwig, esfarrapado,
Comeu o pão embolorado e duro
E se encolheu na beira do caminho...
Mas porque tinha o coração ainda puro,
Seguiu em frente, apoiado num galhinho,
Até cair outra vez, desamparado...

OS DOIS VIANDANTES XII

Como era cego, ele nem percebera
Que aos pés de um patíbulo tombara,
Em que se achavam os dois prisioneiros
Que a maldade dos francos enforcara,
Sem que tivessem sido guerrilheiros,
Mas camponeses que a má sorte recolhera...

E enquanto ele dormia, ouviu falar
Ou então ele sonhou ter escutado
Os infelizes que na força balançavam;
E assim falava então um enforcado,
Que na sua inocência os condenavam,
Para o outro que se achava a lastimar...

Meu irmão, nós morremos inocentes
E logo vêm os anjos nos buscar.
As suas lágrimas já caem, qual sereno
E se nelas algum cego seus olhos banhar,
Logo recobra de novo o olhar pleno
E da floresta sairá sem incidentes...

Ludwig não sabia se sonhava,
Mas escutou um farfalhar de asas
E os enforcados depressa agradecendo.
Foram as vozes então ficando rasas
E o silêncio se foi estabelecendo:
Logo notou que sozinho se encontrava...

OS DOIS VIANDANTES XIII

Abriu os olhos para a sua escuridão,
Pôs-se de joelhos e estendeu os braços,
Encontrou as pernas de um dos enforcados,
Suas mãos umedecidas em tais abraços;
Passou o orvalho nos olhos perfurados
E a luz lhe retornou como um clarão!

Logo se ergueu e viu os infelizes,
Sua mochila atirada pelo chão,
Usando os trapos de seu mau parceiro...
A um enforcado então pediu perdão
E suas roupas retirou-lhe por inteiro,
Vestindo-se então, sem mais deslizes...

Fez uma prece pelos pobres condenados
E saiu depressa de tal lugar aziago;
Mas a fome já o voltara a torturar:
Foi cambaleando até chegar a um lago
E viu um bando de patinhos a nadar;
Deu um salto e pegou dois dos coitados!

Mas a Mãe Pata depressa suplicou:
“Por favor, não me mate meus filhinhos!
Tenha piedade e não se arrependerá!...
Esta água o sustentará em seus caminhos
E logo adiante uma colmeia encontrará...”
Cheio de pena, Ludwig os dois soltou...

OS DOIS VIANDANTES XIV

E dito e feito, logo achou uma colmeia
E se apressou a lhe colher o mel...
A Abelha-Mestra, contudo, lhe falou:
“Tenha pena de nós, há um corcel
Pastando logo adiante, alguém o deixou:
Monte nele e assim complete sua odisseia!...”

“Pois se mostrar que tem por nós piedade
É muito certo que não se arrependerá:
Somos pequenas, mas temos boa memória!”
Depois dos enforcados, quem dirá
Que Ludwig se surpreendesse com essa história
De patas e abelhas com tal loquacidade!...

Logo em seguida, encontrou mesmo um cavalinho,
Com uma corrida, nas suas costas já montou!
Mas o animal logo se pôs a lastimar:
“Desmonte, por favor”, lhe suplicou.
“Sou muito novo e assim vai me aleijar...
Há uma cegonha mais adiante no caminho!...”

“Eu lhe juro que não vai se arrepender,
Se neste dia me mostrar piedade:
Cedo ou mais tarde eu o recompensarei...”
E Ludwig, ainda cheio de bondade,
Desmontou logo, sem estranhar a grei
Que continuava na floresta a conhecer...

OS DOIS VIANDANTES XV

E em breve encontrou a tal cegonha
E a pegou pelo pescoço, sem afago:
“Perdoe, amiga, mas tenho que comer!”
“Meu rapaz, sabe que sou animal sagrado,
Minha carne é dura e não lhe irá valer,
Mas lhe darei um dom com que nem sonha!”

“Vou levá-lo nas costas à cidade,
Que fica agora bem perto daqui
E lá achará comida facilmente...
A bondade de sua alma percebi,
Seja piedoso e ficará contente,
Minha ajuda será de grande validade!”

Pois Ludwig foi levado pelos ares
E deixado bem junto a hospedaria,
Pediu comida em troca de serviço.
E ao verem que a cegonha é que o trazia,
Cujo respeito na Alemanha é bem castiço,
Foi tratado em cortesias singulares...

Ali depressa as forças recobrou
E pagou com trabalho sua estadia.
Ganhou bastante depois e foi embora,
Pois no bolso boa soma ele trazia.
Na diligência, que era o transporte dessa hora,
Uma passagem depressa ele comprou...

OS DOIS VIANDANTES XVI

Bem ligeiro chegou Ludwig até Berlim,
E arranjou emprego numa alfaiataria;
Pouco depois, montou o seu negócio,
Conseguindo muito grande freguesia,
Que não lhe dava um só momento de ócio:
Logo a nobreza o procurava assim...

Foi então levado até o Imperador,
Que lhe encomendou trajo de gala
E com o trabalho ficou muito satisfeito,
Determinando que fizesse a mala,
Pois no palácio seria então aceito
Como Alfaiate Imperial, por seu valor!

Mas transcorrera que, uns meses antes,
Adolf, o sapateiro, também viera
Até a cidade da corte imperial
E como então bem vestido ele estivera
E pudesse comprar couro e material
Logo obteve clientes bem pagantes.

Fora por eles recomendado no castelo
E apresentara na corte o seu trabalho,
Que, realmente, tinha boa qualidade:
Nem salto ou gáspea lhe saía falho,
Lindas botas produzia, em quantidade
E para as damas seu calçado era o mais belo...

OS DOIS VIANDANTES XVII

Ao ver Ludwig, ele ficou pasmado!
Mas como recobrara a sua visão?
Buscou ocultar-se para não ser reconhecido
Mas estava em bem difícil situação...
O alfaiate não poderia ter esquecido
E teve medo de ser denunciado...

E assim, quando as botas foi provar,
Encomendadas pelo rei faceiro,
Foi elogiado...  E comentou, depressa
Que só garantia o que um bom sapateiro
Era capaz de fazer, sem a promessa
Que outras pessoas se atreviam a fazer...

E despertada a imperial curiosidade,
Inventou que o alfaiate recém nomeado
Dissera ser capaz de recobrar
A coroa que num lago havia afundado,
Naquela vez em que o Imperador fora caçar,
Coisa que achava não poderia ser verdade...

Porém o Imperador mandou chamar
Ao alfaiate e indagou a veracidade...
Ludwig não conseguiu responder nada,
Sem entender de onde saíra a novidade.
Mas a seguir, a ordem lhe foi dada
Que a tal coroa fosse ao lago procurar...

OS DOIS VIANDANTES XVIII

Montou a cavalo e foi para a floresta,
Sem ter ideia do que poderia fazer
E surpreendeu-se ao encontrar bando de patos
Que sua expressão procuraram compreender
E quando lhes contou os tristes fatos
Grasnaram juntos, em verdadeira festa!

“Nós sabemos onde está essa coroa!”
E bem depressa no lago mergulhavam,
A Pata Mãe nas costas a carregando,
Doze patinhos a seu redor nadavam,
Para evitar que caísse, a segurando...
E o alfaiate mil louvores lhes entoa!...

E foi depressa levar ao Imperador
Essa coroa que lhe haviam encontrado!
(O sapateiro ficou para morrer...)
O Imperador o recompensou, maravilhado,
Porém louvores nem sequer disse merecer,
Poder servi-lo era recompensa de valor!

E o sapateiro logo inventou uma nova história:
Que o alfaiate de novo se gabava
De ser capaz de construir em miniatura
Todo o castelo em que agora habitava!...
E o Imperador, acreditando com lisura,
Quis a maquete para aumentar sua glória!

OS DOIS VIANDANTES XIX

O alfaiate deixou o salão, desanimado,
Mas logo achou de abelhas um enxame
E a Abelha Mestra disse ser coisa bem fácil...
E em menos tempo que se dizer proclame,
Prepararam miniatura muito grácil,
Mil pormenores, tal qual fora desejado!...

Ludwig a colocou em sua carroça,
Do sol coberta, com o maior recato,
E a conduziu até o Imperador,
Que a recebeu, com grande espalhafato,
Deu-lhe uma casa e cem presentes de valor,
Causando ao sapateiro grande mossa...

Logo que teve outra oportunidade,
O mau Adolf inventou outra mentira,
Na esperança de não ser reconhecido,
Dizendo que, na véspera, ele ouvira
O alfaiate afirmando ter podido
Abrir o poço de que havia necessidade.

Há muito tempo, o Imperador queria fonte
Bem no meio do pátio do castelo
E acabara por nutrir bem grande mágoa,
Pois ninguém conseguira satisfazê-lo,
Por não acharem ali um veio d’água,
Sem haver chafariz que alguém lhe apronte.

OS DOIS VIANDANTES XX

E quando ele escutou essa mentira,
Mandou logo ao alfaiate convocar
E o incumbiu de construir sua fonte,
Que o haveria de muito bem recompensar...
“Mas ouça bem”, disse, “não me desaponte,
Se no favor imperial continuar mira!...”

Mais uma vez, Ludwig foi embora,
Mas deparou com um formoso garanhão,
Que lhe indagou o que o perturbava;
Depois que soube qual era a razão
Que tanto ao pobre alfaiate preocupava,
Levou-o ao castelo, nessa mesma hora!

Pôs-se a girar do pátio ao derredor,
Cheirando o ar, com as patas escarvando
E enfim parou e ali ficou a relinchar
E num instante, já estava água brotando,
Sem que ninguém precisasse até cavar!...
E ainda causou um espanto bem maior,

Que as próprias pedras se foram levantando
E conformando uma fonte bem perfeita,
De cujo centro brotava um chafariz!...
O Imperador se agradou tanto, desta feita,
Que uma escritura lavrar logo ele quis,
Título de conde a Ludwig galardoando!

OS DOIS VIANDANTES XXI

E era de praxe que, durante a honraria,
Todos teriam de Ludwig cumprimentar
E Adolf não mais poderia se esconder!...
Mas nova ideia passou logo a maquinar,
Foi à Rainha, para apoio lhe obter:
Ludwig afirmara que um filho lhe traria!...

Ora, a Rainha e o seu Imperador
Tinham três filhas de grande beleza,
Mas nunca haviam ganhado um só menino.
Ficava assim a sucessão nessa incerteza.
A afirmação era um puro desatino,
Mas a Rainha se encheu de grande ardor.

E foi depressa falar com seu marido,
Que no começo não queria acreditar,
Mas finalmente conseguiu-o convencer.
Mais uma vez o Imperador o mandou chamar
E incumbiu Ludwig desse fatal dever:
Que o cumprisse, senão, seria punido!

E Ludwig subiu ao alto do castelo,
A chorar de desespero, realmente!...
Mas numa chaminé havia um ninho
E lá estava a cegonha, ainda imponente,
Que o trouxera durante parte do caminho
E lhe indagou: “O que é que tens, meu belo?”

OS DOIS VIANDANTES XXII

“Ah, minha amiga, o rei me pede o impossível!
Como vou conseguir, até amanhã
Que a Rainha dê à luz qualquer menino?”
Disse a cegonha:  “Tua preocupação é vã,
Pois não sou eu a trazer cada pequenino?
Vai descansar, que para Deus tudo é possível...”

E no outro dia, entrou pela janela,
Trazendo o mais lindo nenezinho
E o colocou sobre o colo da Rainha!...
Esta o tratou com o maior carinho,
Porém não mais que pelas filhas que já tinha
E se lembrou que a mais velha era donzela!

E convenceu então ao Imperador
Que a mão dela ele desse em casamento
Ao alfaiate, que se tornara um nobre!
E Adolf, no maior ressentimento,
Porque era sapateiro do rei, mas ainda pobre,
Teve as medidas de ir tirar do Grão-Senhor!

Então se apresentou, cheio de medo,
Pois Ludwig pensou que fosse se vingar;
Pôs um capuz, para não ser reconhecido,
Mas por seu nome o alfaiate o foi chamar
E lhe disse ter perdoado o acontecido
E que, portanto, guardaria o seu segredo...

OS DOIS VIANDANTES XXIII

Porém, após celebrado o casamento,
Chegou a Mãe Pata, no dorso do Cavalo
E a Abelha Mestra, montada na Cegonha
E ao malvado foram logo denunciá-lo!...
Horrorizado com essa ação medonha,
O Imperador ordenou seu enforcamento!

Porém Ludwig pediu-lhe que o perdoasse
E o Imperador suspendeu a execução
E em atenção a uma data tão feliz,
Contentou-se somente com a expulsão
E nas suas terras nunca mais o quis,
Para que o reino não mais contaminasse!...

E Adolf, na maior indignidade,
Saiu correndo da cidade, perseguido
Por frutas podres pela população,
Mas nem sequer um pouco arrependido,
Pois se julgava condenado sem razão
E mais vingança buscaria na verdade!...

E aconteceu que, em certa madrugada,
Sem ver bem em que ponto se encontrava,
Foi ao pé daquela forca se deitar...
Sobre um crânio um corvo então pousava
E bem depressa os seus olhos foi picar:
Ficou sua noite para sempre inacabada!...


EPÍLOGO

Que sempre o bem encontra recompensa,
Mas cedo ou tarde castigam-se os malvados.
De Adolf nunca mais se ouviu falar,
Perdeu-se pelas matas e escarpados,
Embora digam escutar um praguejar
Alguns que passam por tal floresta densa...

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