quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014




CIÚME DO BEIJO & MAIS
William Lagos

CIÚME DO BEIJO I – 31 JAN 14

Eu quis ser beijo, que não me contentava
a somente nos teus lábios pôr os meus:
logo esquecias que haviam sido teus,
quando a toalha ou guardanapo os esfregava.

Quis projetar-me quando menos esperava
e inserir-me através descuidos seus,
para instalar-me de seus pulmões nos véus,
do hálito a partilhar que respirava...

Porém, ao penetrar, fui aspirado
e aprisionado de maneira imponderável
no céu da boca por seus anzóis pendentes,

igual migalha, ali sempre conservado,
a debater-me, como pássaro notável,
entre as grades formadas por seus dentes...

CIÚME DO BEIJO II

Não quis ser beijo, então, porém deixar
esse meu beijo permanente em ti;
que vida ele alcançasse de per si,
o seu ressaibo constante a refrescar

a tua memória do antigo meu beijar,
que igual eu fosse como um colibri,
que então pousasse unicamente ali
e repelisse qualquer outro a se achegar.

Seria um beijo feroz de rebeldia,
incapaz de aceitar qualquer desvio,
esse meu beijo de potente calafrio,

que na tua boca eterno pousaria,
“Beijo da Guarda” perante um pretendente,
lembrança minha a recordar frequente...

CIÚME DO BEIJO III

E nem um beijo assim permitiria
que não fosse o próprio beijo que deixei;
com esse ósculo de tua boca me apossei,
que a ti em serva minha encantaria.

E qualquer outro que a ti se achegaria,
ao encontrar a sentinela que deixei
desafiado seria, como guarda de algum rei,
que a posse única para mim garantiria.

Sem perceber que o defensor feroz
provavelmente, nem me reconheceria
e acesso negaria aos lábios teus;

que o beijo único seria o meu algoz,
pois nem a mim em tua boca aceitaria,
esquecido de que teus lábios foram meus...
         
O ERRE PERDIDO I [para Neusa Tânia] – 15/7/06

Se meu Erre for peRdido, o que farei?
Reconquistar, Rastrear, Recuperar, Reter?
uma palavRa mais já não posso concebeR
que me indique o caminho; já nem sei

para o que seRve esse Erre doRavante:
Rasgar, Roubar, Recalcitrar, Rugir?
pela falta de um Erre peRquirir
onde ocultou-se esse sinal Rascante...

o Erre Risca o céu, como um coRisco,
Rapidamente Retira a propRiedade,
transfoRma AMO em Ramo sem vaidade...

e, num Relance, peRcebo, com abalo:
o Erre não me Rasga, mas belisco
o céu da boca, a fim de pRonunciá-lo...

O ERRE PERDIDO II – 01 FEV 14
(Em remoer nefelibático.)

Será que errei ao tentar recuperar
o rastro desse erre recessivo?
O raio desse erre reincidivo
na ruindade de seu rude regougar?

Será que regateei ao retornar
ao rasgo de retórica restivo,
ranger rabínico de roto recessivo,
relampejante raio, qual repto a riscar?

Rangendo os dentes por rivalidade,
rompi o meu retábulo rampante,
o reinado em rompante de rugido,

na rampa rotular da realidade,
rito de raiva redonda num rasante
voo em rubor de rútilo rangido...

O ERRE PERDIDO III

Riso em raso e repentino retalhar,
em rigor repulsivo e repugnante,
em renda revelada e repousante,
um repuxo reprimido a requebrar,

em resenha resedá a repulsar,
o requisito do repúdio represante,
o renascer renal remunerante,
o renovo rendido em rendilhar,

rei da renúncia em ringue a repicar
a repisada réplica em recalcitrante
rondó rasgado pela repetição,

na regra régia de reles rezingar,
regurgitando o relativo rejeitante
repipocar de refinada reflexão.

O ERRE PERDIDO IV

Com garra longa de alfabética rasteira,
a mim mesmo em tal rascunho retalhei.
Por que razão no erre rebolquei,
refocilando em resgate de rigueira,

rivalizando na mesma roubalheira,
rijamente rajado eu rastejei,
ralei as rugas como rã e recalquei
as rotas roxas da roda mais rueira,

sem refletir no rigor dessa retórica,
rasguei os dedos em ramos de cristal
arrancados ao ruir da ribanceira,

no ríspido rufar da rocha armórica,
só recobrando um rascante radical
a reluzir contra as raias da ratoeira.

PAROXISMO I – 01 FEV 14

Há certos fatos na vida tão marcantes
que nunca abandonamos seus fantasmas;
eles retornam dia a dia, como asmas,
que nos cortam o pulmão por dois instantes.

Em geral, esses fatos perturbantes
não são momento que em prazer te pasmas,
nem são de medos em que pavor espasmas,
porém as ocasiões mais humilhantes.

Quando menos se espera, essa memória
nos pega de tocaia, desde a infância,
e nos envolve em desgosto o coração.

E como é clara essa visão inglória,
igual que fosse, na sua exuberância,
garra de espinhos que nos rasga a mão.

PAROXISMO II

Não sei por que há tal perversidade,
que nos aflige e remói constantemente,
mas surge a mágoa em festival urgente,
dançando triste sobre a realidade.

É como se um duende de maldade
habitasse na gaiola do inconsciente
e se escapasse da guarda facilmente,
quando o peito relaxasse sua vontade.

Então imagem, perfume ou qualquer som
abrem passagem à má recordação
que por instantes nos controlaria,

sem que qualquer lembrança de bom-tom
tivesse igual poder de persuasão
e somente com esforço afloraria...

PAROXISMO III

É claro que essa atroz pinacoteca
é recolhida de volta à sua prisão,
sem grande esforço, só tem breve duração,
porém lá fica, estéril biblioteca.

E nesse instante em que a censura peca,
já nos volta a leprosa multidão
de lembranças de qualquer desilusão
que, por instantes, toda a alegria resseca.

Acredito que quem sofra depressão
nem consiga tais memórias reprimir
e que elas dancem em caleidoscópio,

num baço arco-íris de plena negação
de qualquer sensação a redimir
os fantasmas que se nutrem de tal ópio.

SONS DE LÍRIOS I – 2 FEV 14
(Para William e Sarita Merrick Thomas)

É tão inútil viver para o passado
que já se coalesceu e nunca muda,
os sons-delírios que a memória estuda,
experiência que se agrega a cada lado.

Nosso presente tampouco é demorado:
só por instantes nossa vida escuda,
fugaz momento em que o futuro se desnuda
e as horas corta, ansiando ser passado.

Mas o porvir ainda nos pertence
e pode ser sorteado, certamente,
que os dados giram ao sabor da mão.

Por mais que a escuridão hoje se adense,
nova rota se toma, incontinente,
a cada volta, giro e toque do timão.

SONS DE LÍRIOS II

Houve um tempo em que os lírios conversavam
não apenas entre si, porém comigo;
em meu jardim, no qual havia dado abrigo
aos lírios roxos que em hastes se espalhavam.

Eram Lírios da Virginia, que espelhavam
a Flor-de-Lis daquele emblema antigo
adotado pela França, que consigo
os meus padrinhos trouxeram e aqui plantaram

as íris púrpura que a si mesmas perfilharam
e conversavam comigo nesse encanto,
que viam em mim, num simbolismo santo;

mas trazidas para cá, elas secaram,
muito embora suas lâminas desnudas
se tenham projetado em muitas mudas...

SONS DE LÍRIOS III

De meu padrinho norte-americano
foi que o nome de William eu herdei;
com o apelido de Bill me acostumei
ou então Billy, em infantil arcano

que ainda me acompanha, por engano,
já que a infância há longo tempo abandonei;
o restante de meu nome desprezei,
sem demonstrar desrespeito soberano.

Luis e Humberto são nomes mais comuns,
que ainda emprego na documentação,
mas já então os lírios me falavam,

assoprando-me aos ouvidos, incomuns,
o velho nome de anglicana tradição
em que seus tons de roxo se espelhavam.

SONS DE LÍRIOS IV

Existem hoje lírios no jardim.
São íris brancas que também se plantam
e em sua frustração gemem e cantam,
pois não têm terra para plantar-se assim.

Secam-se as mudas no empedrado, enfim;
sobre ladrilhos e pedras não transplantam;
têm somente as melodias que descantam,
em vaso grande, a se queixar de mim.

Mas sejam brancas ou íris violetas,
elas conservam suas canções secretas
lírios de vento tangidos no sem-fim,

que apenas eu escuto tal perfim
a alma inteira perfurada em tal brasão
ao transplantarem-se bem fundo ao coração.

CABEÇAS DE PONTE I – 3 FEV 14

O mundo somos nós e o reinventamos
E quanto vemos, só de nós provém;
Existem bases para as coisas que se veem
Ou que se abrigam no que apenas degustamos.

Existem moldes para o que tocamos;
Os sons ouvidos diapasões contêm,
Mas nossas percepções tais bases leem
E as interpretam do modo que as sonhamos.

Sem dúvida, o que eu chamo de paixão
Não é o mesmo que vês exatamente,
Possui arco-íris de vasta gradação

Que suas tésseras agita, em subjacente
Caleidoscópio a tingir cada emoção,
A recriar-se em cada dia diferente...

CABEÇAS DE PONTE II

Forma-se o mundo de um milhar de criaturas,
Não necessariamente de pendores animais
E nem forçosamente vegetais,
Nem poeiras de almas de funções obscuras.

Pois habitamos permeio às formas puras,
Mais realmente por entre elementais,
As estruturas que chamou de universais
Grego filósofo em diálogos e escrituras.

E a tais formas achamo-nos sujeitos,
Porém a nosso modo as interpretamos:
Cada um colore suas próprias abstrações

E as recompõe à luz de seus defeitos
E as qualidades que lhes emprestamos
Nos devaneios que chamamos de ilusões.

CABEÇAS DE PONTE III

Cada qual em si mesmo mergulhado,
A interpretar, até mesmo sem querer,
As sensações que lhe chegam pelo ver,
Pelo ouvido ou pelo tato retalhado.

Não o fazemos a nosso bel-prazer,
Mas nosso eu é ele mesmo interpretado,
Por tais conjuntos de fatos marchetado
Ou pelos nexos de um primevo proceder.

Naturalmente, o que eu chamo de vermelho
É o mesmo segmento do visível,
Denominado desde o tempo velho...

Mas quem te diz que a cor perceptível
É a mesma refletida pelo espelho
De qualquer outro nesse espectro do possível?

CABEÇAS DE PONTE IV

Chamo a relva de verde e assim a chamas;
Chamo o fogo de encarnado e assim o vês;
Ao céu eu chamo azul e assim o crês,
Tons de amarelo nas areias e nas lamas.

Mas esse meu azul que igual proclamas
Pode ser tom bem diverso nessa tês;
Dás-lhe o nome que desde a infância lês,
Mas outras sílfides talvez bailem nessas flamas.

Se assim não fora, por que o daltonismo?
Nessas pessoas de quem dizemos que confundem
O verde e o encarnado e o veem cinzento.

Ou noutros casos de mais grave ilusionismo
Em que só veem o amarelo e assim se iludem
Com tons de cinza do amplo firmamento.,,

CABEÇAS DE PONTE V

Assim as cores de aproximada percepção
Cujos limites percebo interpretados,
Azuis e verdes em dez tons misturados,
Laranja e rosa em mais estranha confusão.

Ocorre o mesmo com os sons que aqui estão
Na dependência de vibrações acostumados
Ou no toque de texturas confirmados
Ou nos sabores e faros de ocasião.

Há quem confunda a dor com o prazer
E quem perceba diversamente o frio
Ou o toque da libélula na pele.

Tudo em função do próprio conceber,
Muitos capazes de discutir, com brio,
Com quem alheia interpretação revele.

CABEÇAS DE PONTE VI

Será que as cores existem, realmente,
Os sons, os toques, os múltiplos sabores?
Será que existem os ódios e os amores
Ou é tudo projeção do subconsciente?

Mas se, de fato, fosse tudo diferente,
Mal poderíamos concordar em tais pendores,
Cada um a debater, com seus vigores,
A sensação que um outro sinta divergente.

Por sorte existem, permeio ao imponderável
Que só se encontra em nossa própria mente,
Essas gestalten de básica estrutura,

A constituir uma ponte mais durável
Entre esse mundo externo e subjacente
E os fantasmas que a percepção conjura!...

TEMOR DOS MONSTROS 1 – 4 FEV 14

Sempre existiram, nas historias infantis,
os mais saudáveis elementos de terror;
não é o mundo esse lugar de amor
dessas sagas disneyanas pueris.

Convém que se recorde aos bons guris
que existem monstros de real vigor,
disfarçados em gente; e que o pavor
é verdadeiro nos anos juvenis.

Foi muito raro que lobos atacassem;
algumas fêmeas até protegem as crianças;
quem mais ataca são os cães domesticados

que em defesa do lar mais se treinassem;
ou os gatinhos, criaturinhas mansas,
por quem tantos bebês são arranhados!...

TEMOR DOS MONSTROS 2

Na verdade, os nossos pesadelos
são atávicos e vêm de priscas eras,
dos ancestrais que já enfrentaram feras,
temor dos mortos nutrindo nos seus zelos,

especialmente nos países em que os gelos
os conservam através longas esperas,
tantos deixados pelas pestes nas esteiras
ou pelas guerras em abandono e desmazelos.

Bem melhor faziam os antigos,
que cadáveres cremavam sem demoras,
até mesmo nas batalhas de suas guerras,

enquanto nós nos expomos a perigos,
decompostos os corpos em mil horas,
pestilência a distribuir por tantas terras.

TEMOR DOS MONSTROS 3

É uma tolice criticar o super-herói
que se demonstra bem mais forte que os humanos;
cada um combate os seres mais insanos,
cuja ameaça se afasta e se destrói.

Antigas crenças o tempo queima e mói:
anjos e santos eram super-humanos;
eram demônios monstros desumanos;
hoje essa fé a moderna vida rói.

Mas certamente há sociopatas demoníacos,
que pretendem ser vampiro ou lobisomem
e vitimam as pessoas mais normais.

Difícil crer em seres paradisíacos;
bem mais fácil aceitar-se um super-homem
ou um policial com dons paranormais. 

TEMOR DOS MONSTROS 4

        Pois preenchem infantil necessidade
da proteção que não lhe dão os pais,
longe de casa, por deveres naturais,
como requer a atual civilidade.

E até o contato com a comunidade
de outras crianças traz toques infernais;
existem grupos que rejeitam as demais,
outras demonstram ter pura maldade.

Existem monstros sim, mesmo na infância,
que outros maltratam em pura covardia:
é falsa essa ilusão de sua inocência;

e um super-herói combate essa arrogância
e fortalece a quem tem menos valia,
de outro modo perdido na impotência.

TEMOR DOS MONSTROS 5

Nos contos de fadas, em seu formato antigo,
há uma série de emblemas concebidos:
três desafios veem-se sempre repetidos,
por cada monstro um ajudador amigo.

E por maior que seja o seu perigo,
sempre os heróis aos monstros têm vencidos;
há três irmãos, os menores oprimidos
pelos mais velhos, mas de pensar, consigo

entender que são apenas três idades,
compartilhadas por uma só criança,
que cresce, vence e então conquista o mundo,

nessas lições de perfeita majestade,
de que sempre pode haver a esperança
da escolha certa conduzindo a um fim jocundo.

TEMOR DOS MONSTROS 6

Ao contrário de provocarem pesadelos,
fortalecem a infantil personalidade;
os pesadelos são descritos, na verdade,
mas são vencidos pelos próprios zelos.

Têm os desenhos de hoje outros desvelos,
adocicados por falsa humanidade,
monstros tolos, quase de incapacidade,
sem grandes lutas a derreter tais gelos.

Isso explica essa atual popularidade
dos videoguêimes de morte simulada
e de ressurreição quase imediata

ou esses filmes de terror da atualidade,
com pesadelos tornados realidade,
sem que de fato na vida se combata.

ABORTO I – 5 FEV 14

Era de noite e nos meus braços tive
bela mulher de ânsia dadivosa.
Igual que dizem, era rosa perfumosa,
perante o cravo totalmente livre.

Era de dia e junto a ela estive
manhã inteira, plena e langorosa,
melhor que desjejum, em capitosa
oração que na memória assim me crive.

Ao meio-dia, ainda desvestidos,
de permeio aos lençóis amarfanhados,
se a devorava, a mim ela comia,

na estranha prece que o desejo permitia,
seus membros por meu corpo demarcados,
meus membros por sua boa deglutidos...

ABORTO II

Era de noite e num sonho esmeraldino,
nos seus olhos mergulhei, inteiramente,
toda a minha turmalina de descrente,
marchetada em crisopraso peregrino.

Era de dia e em suspiro pequenino
ela aceitou ser minha novamente...
Havia marcas no lençol enrubescente,
gemia o colchão sob o esforço matutino.

Ao meio-dia, sob ducha virginal,
seu corpo contra o meu, em carnaval,
sem que o adeus da carne sobreviesse.

E novamente, em melopeia triunfal,
os azulejos renovaram o festival,
pequenos gotas escorrendo numa prece.

ABORTO III

Mas toda noite é noite e dia é dia:
a lucidez que em seu olhar luzia
já me anunciava o fim dessa novena.

Amor perfeito, como é leve a pena,
gota silente que se desprendia,
ai, como a imagem prender mais queria
na bateria de luzes dessa cena!...

Como eu queria reter essa verbena
que se evolava e, aos poucos, se esvaía...
Como essa plácida certeza eu já temia:
arauto duplo que à solidão condena!

E todo dia é dia e noite é noite...
Chegou a tarde e já vestida, como açoite,
ela partiu, em despedida plena...

ANÚNCIOS PISADOS I – 6 FEV 14

VOLTO ÀS CALÇADAS QUE PERCORRI CONSTANTE:
MAL AS PERCEBE QUEM SÓ ANDA DE AUTOMÓVEL
E QUE NÃO ANDA, AFINAL, MAS MARCHA IMÓVEL,
CONTRADIÇÃO DE NATUREZA OBSEDANTE...

MAS EM MEUS PASSOS EU SOU PERSEVERANTE
E O TEMPO QUE SE PASSA EM PASSO MÓVEL
CRIA EM MINHA MENTE UM MARTELAR SOLÚVEL,
NUMÉRICO SEU CRISMAR DE CADA INSTANTE.

E ENQUANTO CONTO OS PASSOS AO DESTINO,
COMO UM ROSÁRIO QUE ME SERVE DE PATIM,
OBSERVO VINTE FIOS QUE ALI ESCORREM,

NÃO NOS MEUS PÉS, MAS NOS OLHOS DE MENINO,
SIMULANDO MEU MARCHAR SOBRE UM JARDIM
DE ANTIGOS REINOS COMO SONHOS QUE NÃO MORREM.

ANÚNCIOS PISADOS II

POUCO A POUCO, ESSAS TÉSSERAS PISADAS
QUE FORMAVAM DESENHOS NAS CALÇADAS,
COM CUIDADO SOBRE ARGILA CALCETEADAS,
POR MEIO-FIO DE GRANITO COMPASSADAS,

DERAM LUGAR ÀS QUADRADAS TIJOLETAS
DE CIMENTO COMPRIMIDO E, POR COMPLETAS,
COLOCADAS DENTRO A UM TANQUE, EM DIRETAS,
PERPENDICULARES FILEIRAS COMO ATLETAS

E SÓ DEPOIS SENDO EXPOSTAS PARA O SOL,
POR COMPLETAR O SEU ENDURECIMENTO:
PRIMEIRO ÁGUA, DEPOIS SOMBRA, ENTÃO A RUA.

AS MAIS LISAS COLORIDAS EM CRISOL
DE ROXO-TERRA E ANILINA, PARA ASSENTO
NOS CORREDORES EM QUE A UMIDADE SUA.

ANÚNCIOS PISADOS III

AINDA HAVIA NESSA ÉPOCA ESCARIOLAS,
BASICAMENTE POR GESSO CONFORMADAS,
ALGUMAS COM DESENHOS ESMALTADAS,
OUTRAS SOMENTE COM MANCHAS E VIROLAS.

MAS ERAM DE PAREDE, SEM QUE ÀS SOLAS
FOSSEM EXPOSTAS DE MARCHAS APRESSADAS,
PELA VISÃO PERIFÉRICA CONTEMPLADAS,
BREVES MOSAICOS LISOS COMO GOLAS,

AMPARADOS NOS TAPETES DE LADRILHOS,
ALGUNS DOS QUAIS COM MOTIVOS CAPRICHOSOS,
INTERCALADOS COMO VESTES DE ARLEQUINS,

OUTROS ROSÁCEAS TERRESTRES OU EM TRILHOS,
ESTRELAS PURAS NOS PISOS PRESTIMOSOS,
COM DOIS OU TRÊS DEGRAUS QUAL ALFENINS.

ANÚNCIOS PISADOS IV

JÁ NAS CALÇADAS, EM SUAS CINZAS ESVERDEADAS,
FORMAS EM GRADE O CIMENTO COMPRIMINDO,
ESSAS RANHURAS O PASSO PERMITINDO,
SEM QUE OS PASSANTES PERDESSEM SUAS PISADAS.

TAMBÉM TINHAM SEUS NOMES: BOLACHINHA,
COM UMA SÉRIE DE QUADRADOS DEFININDO;
OUTRAS EM CURVAS SINGELAS DIFERINDO,
QUE OS FABRICANTES CHAMAVAM DE PEDRINHA.

AINDA A OUTRAS CHAMAVAM DE CATETE,
EM ALUSÃO À CALÇADA PALACIAL
QUE ACESSO DAVA, NO RIO DE JANEIRO,

A ESSE PALÁCIO EM QUE, SOB CONFETE,
DAVAM POSSE À PRESIDÊNCIA NACIONAL,
EM MODESTA IMITAÇÃO DE UM ESTRANGEIRO.

ANÚNCIOS PISADOS v

AQUI E ALI, EM UM LANCE DE CALÇADA,
LEVE TOQUE DE VERDE REFLETIDO NO CINZOR,
SE DESTACAVA UMA PLACA COM VIGOR,
CORES BAÇAS EM SUA LISURA DESCUIDADA.

BOA PARTE DELAS JÁ FOI ARRANCADA,
QUE OS FABRICANTES PERDERAM SEU PENDOR,
LADRILHADOS EM SUAS TUMBAS SEM AMOR,
FIRMAS FECHADAS OU PROFISSÃO ABANDONADA.

MAS AINDA VEJO ALGUNS NOMES CONHECIDOS,
LEMBRANDO ROSTOS DE MINHA ADOLESCÊNCIA,
DE MINHA INFÂNCIA OU INICIAL MATURIDADE.

CARUCCIO E OBERST, QUE CONHECI FALIDOS,
SEGUNDO DEIRO, COM FIRMA DE POTÊNCIA,
DURANTE DÉCADAS FUNCIONANDO NA CIDADE.

ANÚNCIOS PISADOS Vi

“MATERIAIS AGRÍCOLAS E DE CONSTRUÇÕES”,
QUE FACILMENTE ENCAIXEI NESTE SONETO;
ALGUNS MAIS RAROS, DE NOME MAIS SECRETO,
ALGUMAS CHAPAS DE METÁLICAS FUNÇÕES.

“EXGOTTOS”, DIZIAM ALGUMAS, EXCLAMAÇÕES
FUNDIDAS EM ORTOGRÁFICO ABJETO,
POR MUITOS ANOS CRITICADAS POR COMPLETO,
MAS FUNDIR NOVAS TRARIAM INCOMODAÇÕES...

EM OUTRO DIA, TALVEZ OUTRAS MENCIONE;
AGORA BASTA DIZER QUE A PROPAGANDA
TEVE OU NÃO TEVE RESULTADO POSITIVO,

JÁ QUE O OLHAR HUMANO É MAIS EM CONE
QUE SE PROJETA NOS ROSTOS, QUANDO ALTIVO
OU POR SER TÍMIDO, AO HORIZONTE SÓ DEMANDA.

POEMAS DE ÁGUA I – 7 FEV 14

O que dizer, se um dia o amor acaba,
sem que se saiba o porquê do terminar?
Quando a outrem alguém só quer deixar,
nessa inquietude em que tudo se desaba?

O que dizer, quando a obra que se gaba
não se reflete no prazer de um elogiar?
Quando alguém quer simplesmente se afastar,
que não suporta mais a palha de sua taba?

O que dizer, quando esse alguém nem saiba
qual a razão de seu desejo de partir
e nem encontra razão de se queixar,

porém nossa presença nem mais caiba
em seus fantasmas sonolentos do iludir
e nem a si própria consiga se explicar...?

POEMAS DE ÁGUA II

O que fazer, quando nada de concreto
existe a se apontar entre nós dois?
Que o pensamento escuro do depois
sejam só olhos abertos em secreto,

em tal momento de fingir completo,
em que o sono se pretende, dois a dois?
Nesse leve fungar que vem depois
de feito amor sem o orgasmo mais dileto?

O que fazer, se nem sequer o sexo
entre nós dois se tornou satisfatório?
O que fazer, ao ver feitas as malas,

sem ter motivo, sem sequer revelar nexo?
O que fazer, esgotado o repertório,
tudo já dito, sem sobrar nada que calas?

POEMAS DE ÁGUA III

O que fazer, se a solidez derrama
as suas moléculas em aquáticos filetes?
O que fazer das cartas e joguetes
já liquefeitos sobre a nossa cama?

O que fazer, quando amor não mais reclama
e nem protesta de um desgosto que projetes?
O que fazer, ao notar que em nada afetes
o amor de teu parceiro ou de tua dama?

Nada resta a fazer, é bem verdade,
quando as palavras de amor se liquefazem
e outras moléculas ocupam seu lugar,

deixando apenas um resquício de umidade,
da ponta de teus dedos a pingar,
enquanto os prantos lentamente se desfazem...

tempo de sábado I – 8 fev 14

para quem tem afinco no trabalho
o dia sexto é dia de esperança
que se possa usufruir com mais bonança,
sem compromisso, sem medo de ato falho;

por cinco dias sob o estridor do malho,
surge então a manhã dessa esquivança;
o descanso ao meio-dia se embalança
como de velho pescoço em perigalho...

não assim para mim.  fim de semana
sempre trouxe renovado compromisso:
uma parte para a igreja, sem que Deus

fosse de fato respeitado nessa inana,
cujas horas empreguei para o castiço
completar de meus deveres fariseus.

tempo de sábado II

com frequência, as ditas horas de descanso
redundavam em maior ocupação;
sempre havia a visita de ocasião
a requerer de mim o seu balanço.

se para os outros era repouso manso,
para mim era maior expectação;
o sábado esperava em inquietação:
de algum incômodo esperando o ranço.

depois me aposentei, teoricamente,
pois então me dediquei à tradução,
feriado ou dia santo sendo o mesmo

e tudo se inverteu, estranhamente,
já que hoje a igual cansaço de ocasião
atendo facilmente em dia a esmo...

tempo de sábado III

que significado tem o sexto dia?
o sétimo, sem dúvida, deveria
ainda ser e até mesmo o calendário

ainda marca o domingo por primeiro...
caso eu fosse judeu ou adventista,
todo o domingo teria trabalho à vista,
o sábado consagrando por inteiro.

porém afirmam como sendo verdadeiro,
de um por-do-sol a outro, na sua crista,
o verdadeiro sábado em sua lista:
chegando a noite do dia derradeiro

o culto sabatista se cumpria.
mas e o domingo, com seu santo sudário,
todo ao trabalho se consagraria?

tempo de sábado IV

foi o domingo escolhido, cristãmente,
como o dia do descanso e tal trabalho
seria tomado como ofensa e talho
caso os judeus obrassem abertamente.

a explicação que se dá, constantemente,
é que a Ressurreição, um ato falho
da crucifixão romana ergueu o malho
contra o sábado, de forma permanente.

seria então dignificado esse domingo
pela Páscoa do Cordeiro ressurreto
e não o sábado de seu descanso tumular,

durante o qual ressecaria cada pingo
do sangue em coágulos, no túmulo secreto,
no qual o corpo foi posto a descansar.

tempo de sábado V

mas a verdade é que as perseguições
dos romanos aos judeus se dirigiram,
muito mais que aos cristãos que então surgiram
e se espalharam em quaisquer populações.

e muitos mártires das primeiras ocasiões
com os demais judeus se confundiram.
Jesus Cristo era judeu e os que O seguiram
inicialmente, através das conversões

eram todos judeus e o bom Simão
acreditava que a mensagem do Messias
para os judeus tão só se destinava.

mas quando submetidos à escravidão
eram rebeldes os judeus de antigas vias
e era por isso que a punição se originava.

tempo de sábado VI

mas por que deveria transcorrer
o tempo do domingo ao mesmo passo
dos dias de semana e não escasso
esse período de descanso decorrer...?

que cada hora ampliasse o parecer,
lançando sobre outras o seu laço,
muitos minutos roubando em seu abraço
dos dias de trabalho e padecer...

exceto para quem monotonia
encontra num descanso sem prazer
e até ressente a falta de trabalho.

que então pudesse desmembrar o dia
e lançar para a segunda mais viver,
cada hora ampliada nesse esgalho...

AMOR DE SEREIA I – 9 FEV 14

Quando na praia o poeta devaneia,
especialmente no rugir do preamar,
as espumas a quebrar-se em seu flutuar,
surge-lhe o anseio pelo canto da sereia.

Porém a areia, como a concha, o passo peia
e esse canto se confunde ao marulhar...
Será a sereia que se escuta sobre o mar
ou o desamor que no seu peito anseia...?

A multidão que só busca a pele expor
para o assassino e fatídico bronzear
nem sequer pensa em sereias escutar;

só para olhar alheio o seu pendor,
em sua vaidade ou em seu envergonhar,
sob o velho e antigo jugo do sexor...

AMOR DE SEREIA II

Quando na praia a sereia devaneia,
especialmente ao fulgor do entardecer,
a baixamar da areia já a escorrer,
em seus pendores de caprichosa deia,

será que ante o anseio do poeta, devaneia
ou bem recorda a elegia do sofrer
da anderseniana sereia em seu morrer,
ao entregar-se do amor humano à peia?

Quando as sereias sobre o recife assomam
é  porque as luzes da praia já se acendem;
retornaram pescadores à sua aldeia

e os pecadores o seu bailar retomam,
nos bares e boates a que se prendem,
sem escutar qualquer lamento da sereia.

AMOR DE SEREIA III

Quando na praia devaneia a areia,
constante contra as conchas a roçar,
em suas carícias as solas a abraçar,
será que um grão pelo poeta devaneia?

Quando na praia o crepúsculo incendeia,
entre os marulhos das ondas a nadar,
erguem-se os grãos para logo repousar:
será que algum pela sereia anseia?

Cantam as deusas sem pernas sobre o mar,
as barbatanas em constante tremular
e sobre a areia, só o poeta escuta...

Na vasta ânsia de nova e arcana gruta,
em que sereia de areia a descantar
preencha o tímpano de seu perpétuo devanear...

AMOR DE SEREIA IV

Mas o que faz o poeta quando escuta,
sem qualquer dúvida, bem exatamente,
esse canto descrito tão frequente
dessas sereias, em sua perpétua luta?

Cada sereia em sua antiga fome bruta
de caminhar na praia livremente,
mas sem ter pernas, num ódio subjacente
por quem consegue pisar da areia a gruta!

Talvez deseje o poeta se entregar
aos braços da sereia mais faminta,
sem com o próprio afogamento se importar.

Mas o que anseia a sereia, a deslizar,
perante o estrondo das ondas, nessa finta,
sem que ao poeta possa ao menos escutar?


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