quarta-feira, 19 de junho de 2013





AS TRÊS FIANDEIRAS
(Folclore português, recolhido por Viriato Padilha,
versão poética de William Lagos, 22 MAR 13).

AS TRÊS FIANDEIRAS I
Não havia fábricas nos tempos antigos,
todo o trabalho era feito manualmente.
Todos conhecem a Bela Adormecida,
que o dedo perfurou, em ato imprudente,
no fuso de uma roca, a fiar lã...
Depois a linha num tear era tecida
e sendo a obra cuidadosa e chã,
surgiam casacos, cobertores e abrigos...

Toda fazenda teciam os tecelões,
igual que hoje se faz em malharia,
ou no campo se trabalha com lã crua.
Mas não era só de lã que se fazia:
havia fios de algodão, outros de linho,
em longas plantações à luz da Lua...
Capulhos se colhiam com carinho,
para depois os trabalharem os artesãos.

Também o linho era uma planta e se colhia,
para depois se deixar secar ao sol;
uma espécie de palha de formava,
que depois se recolhia num paiol;
de lá tiravam as ramas, uma a uma
e numa roca parecida se fiava,
até que a última haste se consuma
de quanto a plantação lhes produzia.

A nossa história se passa em Portugal,
muitas centenas de anos para trás;
antes que houvesse na Europa o algodão,
vinha do Egito o linho mais capaz,
até que o aprenderam a plantar
nas terras europeias, em profusão,
roupas mais leves que as de lã a fabricar,
que combatiam do calor melhor o mal.

AS TRÊS FIANDEIRAS II
Não obstante, era um trabalho bem difícil,
porque o linho era mais duro do que a lã,
até que fosse trabalhado no tear,
cortando dedos e mãos da tecelã,
que precisava, além disso, de lamber
constantemente o fio para amolgar
ou, pelo menos, em tigela umedecer,
para levá-lo ao fuso bem mais físsil...

Em Lisboa então morava boa mulher,
ganhando a vida como lavadeira,
até que o marido se dispôs a cultivar
mil pés de linho, em plantação rasteira.
Fiada a palha, poderiam-na tecer
e com a venda bem suplementar
a escassa renda para o seu viver,
vestindo estopa e couro em seu mister.

Porque o linho era muito trabalhoso
e o resultado era ótimo tecido
que só os ricos conseguiam comprar.
O povo andava sempre mal vestido,
com lã grossa ou fibra de estamenha,
pano grosseiro que tinham para usar.
Fiando o linho, Dona Rita assim se empenha,
torcendo o fio mais cuidado e mais formoso.

Contudo, ela o vendia aos tecelões,
que o linho transformavam em fazenda
e aos alfaiates com lucro bem maior
o revendiam; porém lucrava com essa renda
o suficiente para a alimentação.
Trazia o marido dos pomares o melhor
e as hortaliças de sua plantação,
vendendo o resto na feira, às multidões.

AS TRÊS FIANDEIRAS III
Assim que a filha mais velha lhe cresceu,
Dona Rita a ensinou a fiar o linho,
porem Rosália nem sequer queria saber:
cortava as palmas pior que fosse espinho!
Logo a seguir, tornou-se bem bonita
e só queria se enfeitar e espairecer...
Não que fosse preguiçosa, mas na dita
de fiandeira ela sempre padeceu...

E se dispunha a ajudar na plantação,
também na horta, a colher frutos do pomar
e seus irmãos menores a cuidar,
mas sem da roca sequer se aproximar...
Odiava a palha que lhe cortava as mãos!
Mas quando a mãe pegava roupas a lavar,
era obrigada a passar tais provações,
só que ia adiando ao máximo a ocasião...

Porém tampouco era boa lavadeira:
tinha de coarar, passar e até engomar
e o serviço não ficava bem direito...
Assim, lavava a mãe... E ela a fiar
ficava, na maior das más vontades,
deixando torto o torçal e bem malfeito;
dava prejuízos sem necessidades,
causando lástima na velha fiandeira.

Um dia, veio a mãe ver-lhe o trabalho:
além de pouco, tão mal feito estava
que começou a lhe bater bem forte
com a palha mesmo que a filha estragava,
a qual, em gritos bem altos, lastimava,
a se queixar de sua tão triste sorte,
que da rua, facilmente, se escutava,
qual se batessem na bigorna o malho.

AS TRÊS FIANDEIRAS IV
Ora, ocorreu passar ali a Rainha,
que gostava de saber como vivia
o seu povo, pelo menos em Lisboa...
E tão logo ela escutou a gritaria,
fez parar bem depressa a sua carruagem
e entrou na casa, sua cara nada boa,
muito surpresa ao enxergar a imagem
dessa mulher a bater em garotinha...

Tão logo entrou, as duas se curvavam,
cheias de medo de Sua Majestade...
E a Rainha indagou, com voz altiva:
“Por que está fazendo esta maldade?”
Dona Rita de contar se envergonhou
que a filha ela mantinha em roda viva
e a mentira bem depressa lhe brotou,
enquanto as outras crianças se calavam.

“Eu sou pobre, me perdoe, Majestade,
mas não lhe posso tirar o fuso da mão,
ela só quer fiar o tempo todo!...
Terminou o linho de nossa plantação!
Não posso lhe comprar palha que chegue!
Precisaria de ter dinheiro a rodo!...”
E olhando firme, para que a filha não o negue,
continuou a mentir, com habilidade...

A Rainha olhou bem firme para Rosália:
bem de pé, viu não ser qualquer criança...
“Quantos anos você tem, minha menina?”
“Dezesseis,” ela falou, sem esquivança.
“Você é bonita, mesmo maltratada...
Dê-me sua filha para a minha oficina!
Lá existe linho para mantê-la ocupada:
meus três paióis estão cheios de palha!...”

AS TRÊS FIANDEIRAS V
Dona Rita foi obrigada a concordar;
Rosália se abraçou com ela, chorando...
Pegou suas roupas, beijou seus irmãos
e na carruagem da Rainha foi entrando...
Disse a Rainha: “De você eu já gostei.
Caso me prove ter mesmo condições,
todo o bem a meu alcance lhe farei...
Meu filho precisa mesmo se casar!...”

“E não quero nenhuma dessas preguiçosas
que vivem na corte e não querem fazer nada,
senão usar roupa bonita e namorar!...
Eu sou viúva e já fiquei cansada,
É mais que tempo que ele seja coroado!
Se você sabe mesmo trabalhar,
mulher assim é que precisa o meu amado
e ainda percebo que tens faces bem formosas!”

“Meu filho se cansou dessas donzelas...
Se demonstrares ser bem trabalhadora,
tenho certeza que de ti irá gostar!...”
Rosália, a pobre, só dizia: “Sim, senhora...”
Não é que fosse uma jovem preguiçosa,
estava mesmo acostumada a trabalhar;
só dessas palhas tinha raiva fervorosa
e lhe dariam a fiar um monte delas!...

Porém, ao chegarem ao castelo,
a Rainha lhe mostrou os três paióis,
entulhados de linho até os tetos!
Se trabalhasse até de sóis em sóis,
mesmo em cem ou quiçá duzentos anos
os seus esforços ficariam incompletos...
Daquele linho nunca sairiam panos,
nem sequer se adormecesse em sonho belo...

AS TRÊS FIANDEIRAS VI

Parecia tão grande o seu serviço
que no primeiro dia nem iniciou:
disse à Rainha estar varrendo e organizando;
no segundo, a roca e o fuso consertou
e no terceiro, disse ter dos pais saudade...
Mas a Rainha foi então determinando:
“Amanhã começarás a atividade,
minha amizade já está a perder viço!”

Porém Rosália não conseguia se animar
a dizer para a Rainha o impossível
de uma pessoa só tal realizar...
E muito menos acreditava nessa incrível
promessa de que então se casaria
com o príncipe após tudo terminar,
pois nem sequer a ele conhecia!...
Por que motivo a quereria desposar...?

Mas a seguir, começou a trabalhar
e logo, logo ficou com as mãos cortadas,
secando o sangue na barra do vestido,
porém as palhas ficavam já manchadas...
Foi ela então até a bacia da janela
e escutou uma voz: “Olá, minha bela!
Por que você está aí a chorar...?”

Rosália se inclinou e falou, baixinho:
“É que tenho de fiar os três paióis
e em tal tarefa muitos anos levarei,
senhoras minhas, a lidar de sóis a sóis!”
As três disseram: “Nós somos fiandeiras.
E ajudaremos para casares com teu rei,
desde que digas sermos primas terceiras
e nos convides para as bodas com carinho...”

AS TRÊS FIANDEIRAS VII

Rosália de imediato concordou
e elas subiram por uma porta lateral;
somente quando chegaram no salão
é que ela teve uma surpresa: é natural!
Tinha a primeira um pé muito comprido,
a segunda, um tremendo de um dedão,
a terceira, beiço grosso e bem nutrido,
como jamais na vida outro encontrou!

“Então, menina, de nós terás vergonha?”
Ela engoliu em seco, mas logo garantia
que se as outras a ajudassem, a promessa
que havia feito, por certo a cumpriria.
E logo as três começaram a trabalhar:
com aquele pé que quase enchia meia peça
punha a primeira o pedal a balançar,
e o fio girava mais depressa que ela sonha!

A do beiço se agachou e só lambia,
de tal modo a deixar o fio macio;
e a terceira prendia com seu dedo
e assim a palha retorcia em belo fio.
E a primeira ia os carretéis enchendo
na maior pressa, que era o seu segredo.
Rosália sempre mais linho ia trazendo
e os carretéis cheios a uma pilha conduzia.

Esconderijo, porém, haviam deixado
e sempre que pressentiam movimento,
iam as três esconder-se no cantinho
enquanto Rosália ocupava o seu assento.
Quando a Rainha aparecia, reclamava:
“Majestade, mais canudos para o linho!”
Um criado os torçais prontos retirava
e logo vinha o mais que fora encomendado!

AS TRÊS FIANDEIRAS VIII

A Rainha se mostrou maravilhada
e toda a gente da corte se espantou
com a rapidez do trabalho de Rosália.
Ela mostrou onde os dedos se cortou;
a Rainha tinha pena, mas dizia:
“Ninguém morreu por um talho de palha!”
E o linho pronto se levava e se trazia
mais carretéis para a obra inacabada!

Até o príncipe decidiu ver o trabalho
e se encantou com a beleza da mocinha
que, além disso, era tão trabalhadeira!
Mas depois de conversar um segundinho,
ela dizia: “Senhor príncipe, perdoe,
mas está atrapalhando a fiandeira!...
Não leve a mal que o dito assim lhe soe:
tenho muito a fazer e não foi ralho!...

Saía o príncipe de novo, sorridente
e as fiandeiras a trabalhar voltavam...
Logo acabaram o primeiro salão:
cada uma se esforçando, não paravam
um só instante, sequer para dormir.
“O ruído da roca me acalma a solidão,”
dizia a Rainha, seu favor a garantir;
também o Príncipe parecia bem contente...

E tão logo esvaziaram os três paióis,
foi Rosália perguntar para a Rainha:
“Já acabou todo o linho do castelo?”
E lhe disse a Rainha: “Jovenzinha,
nunca na vida vi alguém obrar assim!
Vamos preparar um casamento belo,
igual lhe prometi!... Chegou ao fim
a sua tarefa de tantos arrebóis!...”

AS TRÊS FIANDEIRAS IX

“Mas a senhora irá me permitir
convidar minha família ao casamento...?”
“Claro que sim, seus pais e seus irmãos,
Vou mandar roupas adequadas ao momento.”
“Também tenho três primas, Majestade,
que desejo convidar a vir também...”
“Ora, será a maior fraternidade,
a sua família inteira pode vir!...”

E da verdade ninguém desconfiava,
porque traziam fiambre as fiandeiras,
vinha comida tão só para Rosália,
ninguém pensou em outras rocandeiras
que no trabalho viessem ajudá-la
e ela dormia ali mesmo, na palha,
o próprio som da roca a embalá-la,
porém de fora a peça silenciava...

Como não havia mais palha a fiar,
Rosália outros trabalhos já pedia,
mas o tempo do noivado foi passando,
em que o Príncipe só namoro pretendia...
Provou vestidos, fez seu enxoval
e o casamento a Rainha foi marcando,
com grande pompa para o dia final,
a corte inteira reunida a festejar.

Os pais de Rosália e seus irmãos
foram trazidos para o casamento,
bem vestidos e dentro de carruagem...
Mas na chegada do final momento,
chegou outra caleça bem luxuosa,
com cocheiro e lacaios na equipagem,
quatro cavalos com rédea prestimosa,
estacionando em frente dos portões.

AS TRÊS FIANDEIRAS X

Dela desceram as Três Fiandeiras,
ricamente vestidas, bem penteadas,
uma mostrando aquele imenso pé
e as outras duas com figuras semelhantes,
a segunda sacudindo o seu dedão
a outra o beiço imenso, de dar fé!...
Porém Rosália as recebeu com gratidão
e proclamou: “São minhas três primas terceiras!”

A mãe e o pai ficaram confundidos,
sem se atreverem, porém, a contestar
e o casamento foi em pompa celebrado,
para depois um banquete se aprestar.
Bebeu o Príncipe mais do que devia
e indagou, sem ser bem educado,
a que deformação se atribuiria
o pé, o beiço e o dedo ali trazidos...

Disse a primeira: “Foi de tanto trabalhar,
sempre movendo da roca o seu pedal...”
Disse a segunda: “Foi de lamber o fio...”
Disse a terceira: “Eu fiquei, foi de apertar
palha de linho, para caber na roca...”
Pensou o Príncipe: Se o trabalho faz tal mal,
não vou deixar que se deforme a boca
ou o dedo ou o pé de minha noiva se estragar!

E deste modo, nunca mais quis permitir
que Rosália numa roca trabalhasse
e nem sequer que segurasse um fuso,
mas que a seus filhos tão só se dedicasse...
Pois eram as Três Parcas as fiandeiras
que a vida medem para um novo uso
e de Rosália foram amigas verdadeiras
para à sua frente futuro alegre abrir...

EPÍLOGO

O novo rei convocou pais e irmãos
para novas funções em seu castelo.
Dona Rita se encarregou das fiandeiras,
seu pai deixou o pomar ainda mais belo
e seus irmãos foram guardas e soldados.
E as Três Irmãs...?  Sumiram bem ligeiras,
seus paradeiros nunca foram desvendados,
em que o futuro ainda tecem com suas mãos. 



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