sábado, 1 de junho de 2013




ABORTO

O fumo dos sentidos sonambula
nas nuvens secas da seca madrugada.
A noite está deserta e perambula,
em mau destino que não conduz a nada.

Em fumaça, uma idéia sobe e ondula
na esfera úmida da úmida trovoada.
Uma idéia excluída: é mais gandula,
que apenas observa, ensimesmada,

o transcorrer brutal dessa partida.
Como peça de tabuleiro retirada,
mal sabe se é esporte ou se é xadrez.

Esta idéia perseguida e amarelada
pela fumaça amarela e ressequida,
idéia inerme, que em névoa se desfez.

NA RODA DOS CORVOS

Quem não pensa por si, é que não tem certeza
de quem é, do que vale e do que deve:
pensar por si muita gente nem se atreve;
apenas se conforma; e senta à mesa

do banquete comum dos insensatos...
Pensar por si requer muita clareza,
na auto-confiança da simples altiveza
de quem prefere escolher os próprios pratos...

Pensar por si requer ter um assunto
importante o bastante a defender
e imaginar seus próprios argumentos.

Repetir é mais fácil e permite sentar junto
na roda dos medíocres, esses corvos a comer
quem teve um dia seus próprios pensamentos.

CROCHETEIRAS

As mariposas do meu entardecer
se ajuntam negras contra a luz do sol
e ao invés de queimar-se no arrebol
se engordam e alimentam sem comer.

As borboletas do meu amanhecer
se ajuntam róseas contra a luz da lua;
formam-se em cachos como fruta nua,
se dessedentam e refrescam sem beber.

Também no coração, as mariposas
juntam as asas e bebem de minha alma
e as borboletas destilam-me sua calma:

fico assim inundado das esposas
que comeram o sol e até beberam
os fios da lua que em mim entreteceram.

LUNETAS

É meu olhar que é feito de magia:
por isso eu vejo o que ninguém percebe,
que sei nem estar lá.  A vista bebe
a areia morta, que ao deserto pertencia.

São meus ouvidos que editam a elegia
da alheia música, que ninguém mais concebe
nessa freqüência que a cocléia despercebe,
que antes de mim, nem ao menos existia.

Quando a encontrei, já descria ser mulher

por tanto a vida já zombara dela,
que nem mais crer em si própria conseguia.

E a contemplei em bruma rosicler:
por isso eu vi tantos tesouros nela
que nem sequer ela mesma percebia...

LUNETAS

É meu olhar que é feito de magia:
por isso eu vejo o que ninguém percebe,
que sei nem estar lá.  A vista bebe
a areia morta, que ao deserto pertencia.

São meus ouvidos que editam a elegia
da alheia música, que ninguém mais concebe
nessa freqüência que a cocléia despercebe,
que antes de mim, nem ao menos existia.

Quando a encontrei, já descria ser mulher
por tanto a vida já zombara dela,
que nem mais crer em si própria conseguia.

E a contemplei em bruma rosicler:
por isso eu vi tantos tesouros nela
que nem sequer ela mesma percebia...

INQUILINOS

São os mortos que projetam longas lanças
de suas órbitas cegas, que nem vêem,
mas que dardejam a inveja dos que crêem
que algo perderam ao longo das andanças.

São os mortos que murmuram esperanças
aos ouvidos dos vivos, pois não têm
as línguas do conselho; e não sustêm,
com dedos finos, nem sequer lembranças.

Contudo lá estão eles, nas suas cinzas,
lascas de osso e pés pulverulentos:
as migalhas do banquete dos insetos.

Cinzas se alçam em busca dos afetos,
dos dejetos olvidados nessas cinzas,
redemoinhadas de antigos sentimentos.

VORAGEM VII

As numerosas interpretações,
soprada a filosófica trombeta,
tocada a lira da religião secreta,
não satisfazem as inquietações.

Nesse fluir das elocubrações,
a alma humana permanece inquieta,
o alvo nunca acerta qualquer seta
e falham, afinal, as conclusões...

Com exceção de uma: que são todas
retalhos tão somente de ilusão,
limitadores jogos de eloqüência...

E o indivíduo se rebela, nessas bodas
malditas... pela plena rejeição
dessa moral tingida de impotência.

VORAGEM VIII

Todavia, embora assim rejeite
a vacuidade da teoria humana,
permanece o indivíduo nessa insana,
vazia busca por resposta que se aceite.

Na escuridão, que o desacerto ajeite
uma pequena luz, de brilho arcano:
que a inteligência acenda, sem mais dano,
a lamparina de um vital deleite.

Por que razão ainda se procura,
depois de tudo ter visto e reprovado?
Por que motivo não é plena a desistência,

após zombar de tanta voz impura?
Há de haver uma razão do nosso lado
que mantenha ainda viva essa paciência.

VORAGEM IX

Pois eis aí: se o homem fosse barro,
apenas pó da terra, quereria
não mais do que o animal que em torno via,
que se come em churrasco ou puxa o carro.

Mas o constante anelo de expressar-se,
demonstra que nós somos muito mais:
que o ser humano não se reduz jamais
a uma fera querendo alimentar-se.

Nosso ser não é somente material:
existe algo que anima a nossa vida,
algo tão superior, que faz pensar.

Existe em nós também o espiritual,
que se intui e pressente e dá guarida:
que se conhece, sem poder tocar...

VORAGEM X

Na penumbra mental há um ente ignorado,
que articula cada um dos movimentos,
frustrando indagações e pensamentos:
o próprio espírito que nos tem acompanhado.

É esse que nos tem aconselhado,
que nos transmite assim conhecimentos
que não se calam em todos os momentos,
por mais que o material tenha gritado.

É por isso que nas suas decepções
o homem ainda busca transcender
do mundo as trevas, limites e ilusões.

A alma sabe que por trás de suas paixões,
existe algo de sólido a manter,
que permanece através das gerações.

VORAGEM XI

O homem busca atender essa inquietude
por suas próprias luzes e, entretanto,
se perde, embaraçado em puro espanto,
enquanto elas se apagam... e se ilude.

Por mais que essa intenção sua vida mude,
não consegue iluminar com riso ou pranto
a fímbria do horizonte, esse recanto
onde se encontra a razão que mais estude.

Sente que a vida passa sem resposta,
enquanto vê se afastar esse horizonte:
por mais que suba, seu âmbito é maior.

Ele apenas vislumbra a longa costa,
além do mar e acima de outro monte,
onde sabe que se esconde seu valor.

VORAGEM XII

O caminho só lhe põe a descoberto
a orientação que lhe dá a Logosofia,
alevantada a qualquer filosofia
que crie o homem em seu pensar incerto.

Até lá, caminhamos num deserto,
nessa prisão dos costumes sem valia,
sem atendermos à luz, que assim nos guia,
de passo a passo, no destino certo.

Somente após ver a carne superada
e esquecidas as conveniências imediatas
é que encontramos essa real ciência,

que nos há de mostrar escancarada
a porta para estradas mais sensatas,
no despertar interno da consciência. 

FRAGORES

Vou levar meu coração à ferraria,
para que seja forjado em mil esporas:
a espicaçar a humanidade, sem escoras,
nessas centelhas luzentes dançaria...

Sob os golpes do malho, sofreria
impacto menor que o dessas horas
do desejo gelado em mil demoras,
qual noviciado em clausura de abadia.

Assim, meu coração, forjado em luzes,
no metal lamacento das saudades,
se tornará uma nova eucaristia...

Devorado às migalhas, sem que escuses
profanação de tais sacralidades...
pois, na bigorna, meu sangue esguicharia.

QUANDO A REPRESA QUEBRA

Contemplo as gotas rútilas que escorrem
dos rubis insectiformes desse pranto;
teias vermelhas derramam um tal canto
e se acumulam em grumos que decorrem

da mesma sensação de preces mortas,
de vidraças estonteadas pelas marcas
das papilas dos dedos, das menarcas,
da estéril comunhão das linhas tortas...

As gotas rubras pingam no algodão,
que é carne de meus dedos feitos palha:
torno-me estéril quando a vida falha.

Não é meu ventre que cantará canção:
apenas se projeta, em comunhão,
no instante mesmo que o sangue branco espalha!...


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