ABORTO
O fumo dos sentidos sonambula
nas nuvens secas da seca madrugada.
A noite está deserta e perambula,
em mau destino que não conduz a nada.
Em fumaça, uma idéia sobe e ondula
na esfera úmida da úmida trovoada.
Uma idéia excluída: é mais gandula,
que apenas observa, ensimesmada,
o transcorrer brutal dessa partida.
Como peça de tabuleiro retirada,
mal sabe se é esporte ou se é xadrez.
Esta idéia perseguida e amarelada
pela fumaça amarela e ressequida,
idéia inerme, que em névoa se desfez.
NA RODA DOS CORVOS
Quem não pensa por
si, é que não tem certeza
de quem é, do que
vale e do que deve:
pensar por si
muita gente nem se atreve;
apenas se
conforma; e senta à mesa
do banquete comum
dos insensatos...
Pensar por si
requer muita clareza,
na auto-confiança
da simples altiveza
de quem prefere
escolher os próprios pratos...
Pensar por si
requer ter um assunto
importante o
bastante a defender
e imaginar seus
próprios argumentos.
Repetir é mais
fácil e permite sentar junto
na roda dos
medíocres, esses corvos a comer
quem teve um dia
seus próprios pensamentos.
CROCHETEIRAS
As mariposas do meu entardecer
se ajuntam negras contra a luz do sol
e ao invés de queimar-se no arrebol
se engordam e alimentam sem comer.
As borboletas do meu amanhecer
se ajuntam róseas contra a luz da lua;
formam-se em cachos como fruta nua,
se dessedentam e refrescam sem beber.
Também no coração, as mariposas
juntam as asas e bebem de minha alma
e as borboletas destilam-me sua
calma:
fico assim inundado das esposas
que comeram o sol e até beberam
os fios da lua que em mim entreteceram.
LUNETAS
É meu olhar que é feito
de magia:
por isso eu vejo o que
ninguém percebe,
que sei nem estar
lá. A vista bebe
a areia morta, que ao
deserto pertencia.
São meus ouvidos que editam
a elegia
da alheia música, que
ninguém mais concebe
nessa freqüência que a
cocléia despercebe,
que antes de mim, nem ao
menos existia.
Quando a encontrei, já descria ser mulher
por tanto a vida já
zombara dela,
que nem mais crer em si
própria conseguia.
E a contemplei em bruma
rosicler:
por isso eu vi tantos
tesouros nela
que
nem sequer ela mesma percebia...
LUNETAS
É meu olhar que é feito de magia:
por isso eu vejo o que ninguém percebe,
que sei nem estar lá. A vista bebe
a areia morta, que ao deserto pertencia.
São meus ouvidos que editam a elegia
da alheia música, que ninguém mais concebe
nessa freqüência que a cocléia despercebe,
que antes de mim, nem ao menos existia.
Quando a encontrei, já descria ser mulher
por tanto a vida já zombara dela,
que nem mais crer em si própria conseguia.
E a contemplei em bruma rosicler:
por isso eu vi tantos tesouros nela
que nem sequer ela mesma percebia...
INQUILINOS
São os mortos que projetam
longas lanças
de suas órbitas cegas, que
nem vêem,
mas que dardejam a inveja
dos que crêem
que algo perderam ao longo
das andanças.
São os mortos que murmuram
esperanças
aos ouvidos dos vivos, pois
não têm
as línguas do conselho; e
não sustêm,
com dedos finos, nem sequer
lembranças.
Contudo lá estão eles, nas
suas cinzas,
lascas de osso e pés
pulverulentos:
as migalhas do banquete dos
insetos.
Cinzas se alçam em busca dos
afetos,
dos dejetos olvidados nessas
cinzas,
redemoinhadas de antigos
sentimentos.
VORAGEM VII
As numerosas interpretações,
soprada a filosófica trombeta,
tocada a lira da religião secreta,
não satisfazem as inquietações.
Nesse fluir das elocubrações,
a alma humana permanece inquieta,
o alvo nunca acerta qualquer seta
e falham, afinal, as conclusões...
Com exceção de uma: que são todas
retalhos tão somente de ilusão,
limitadores jogos de eloqüência...
E o indivíduo se rebela, nessas bodas
malditas... pela plena rejeição
dessa moral tingida de impotência.
VORAGEM VIII
Todavia, embora assim rejeite
a vacuidade da teoria humana,
permanece o indivíduo nessa insana,
vazia busca por resposta que se aceite.
Na escuridão, que o desacerto ajeite
uma pequena luz, de brilho arcano:
que a inteligência acenda, sem mais
dano,
a lamparina de um vital deleite.
Por que razão ainda se procura,
depois de tudo ter visto e reprovado?
Por que motivo não é plena a
desistência,
após zombar de tanta voz impura?
Há de haver uma razão do nosso lado
que mantenha ainda viva essa paciência.
VORAGEM IX
Pois eis aí: se o homem fosse barro,
apenas pó da terra, quereria
não mais do que o animal que em torno
via,
que se come em churrasco ou puxa o
carro.
Mas o constante anelo de expressar-se,
demonstra que nós somos muito mais:
que o ser humano não se reduz jamais
a uma fera querendo alimentar-se.
Nosso ser não é somente material:
existe algo que anima a nossa vida,
algo tão superior, que faz pensar.
Existe em nós também o espiritual,
que se intui e pressente e dá guarida:
que se conhece, sem poder tocar...
VORAGEM
X
Na
penumbra mental há um ente ignorado,
que
articula cada um dos movimentos,
frustrando
indagações e pensamentos:
o próprio espírito que nos
tem acompanhado.
É
esse que nos tem aconselhado,
que
nos transmite assim conhecimentos
que
não se calam em todos os momentos,
por
mais que o material tenha gritado.
É
por isso que nas suas decepções
o
homem ainda busca transcender
do
mundo as trevas, limites e ilusões.
A
alma sabe que por trás de suas paixões,
existe
algo de sólido a manter,
que
permanece através das gerações.
VORAGEM
XI
O
homem busca atender essa inquietude
por
suas próprias luzes e, entretanto,
se
perde, embaraçado em puro espanto,
enquanto
elas se apagam... e se ilude.
Por mais que essa intenção
sua vida mude,
não
consegue iluminar com riso ou pranto
a
fímbria do horizonte, esse recanto
onde
se encontra a razão que mais estude.
Sente que
a vida passa sem resposta,
enquanto
vê se afastar esse horizonte:
por
mais que suba, seu âmbito é maior.
Ele
apenas vislumbra a longa costa,
além
do mar e acima de outro monte,
onde
sabe que se esconde seu valor.
VORAGEM
XII
O
caminho só lhe põe a descoberto
a
orientação que lhe dá a Logosofia,
alevantada
a qualquer filosofia
que
crie o homem em seu pensar incerto.
Até
lá, caminhamos num deserto,
nessa
prisão dos costumes sem valia,
sem atendermos à luz,
que assim nos guia,
de
passo a passo, no destino certo.
Somente
após ver a carne superada
e
esquecidas as conveniências imediatas
é
que encontramos essa real ciência,
que
nos há de mostrar escancarada
a
porta para estradas mais sensatas,
no
despertar interno da consciência.
FRAGORES
Vou levar meu coração à
ferraria,
para que seja forjado em mil
esporas:
a espicaçar a humanidade, sem
escoras,
nessas centelhas luzentes
dançaria...
Sob os golpes do malho, sofreria
impacto menor que o dessas horas
do desejo gelado em mil demoras,
qual noviciado em clausura de
abadia.
Assim, meu coração, forjado em
luzes,
no metal lamacento das saudades,
se tornará uma nova
eucaristia...
Devorado às migalhas, sem que
escuses
profanação de tais
sacralidades...
pois, na bigorna, meu sangue
esguicharia.
QUANDO A REPRESA QUEBRA
Contemplo as gotas rútilas que
escorrem
dos rubis insectiformes desse
pranto;
teias vermelhas derramam um tal
canto
e se acumulam em grumos que
decorrem
da mesma sensação de preces
mortas,
de vidraças estonteadas pelas
marcas
das papilas dos dedos, das
menarcas,
da estéril comunhão das linhas
tortas...
As gotas rubras pingam no
algodão,
que é carne de meus dedos feitos
palha:
torno-me estéril quando a vida falha.
Não é meu ventre que cantará
canção:
apenas se projeta, em comunhão,
no instante
mesmo que o sangue branco espalha!...
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