sábado, 25 de maio de 2013





DESDÉM

Todos pensamos ter franquia da tristeza,
que nos fornece, com exclusividade,
ocasiões de despeito, de mágoa e de maldade,
que podemos expor em vitrinas, com certeza,

e exibir para os outros, em tola singeleza,
tal como nos exibem, com plena liberdade,
suas próprias lamúrias, em total sinceridade,
no julgar que apreciamos desditas sem beleza;

mas se algo aprendi e sinto verdadeiro
é que os demais revelam interesse só por si
e quando me procuram, não é por simpatia,

mas porque encontram em mim alvo certeiro
para o que buscam, em seu frenesi,
por receber de mim franquia da alegria...

IGUARIAS

O homem vai à pesca e seu pescado
é recolhido na rede ou por anzol;
retorna à praia, orientado por farol,
onde seu peixe será cozido ou assado.

A morte vai à pesca e seu buscado
são cabeças ceifadas sob o sol
ou são almas caçadas no arrebol,
cujo destino é tão só imaginado.

Os peixes, nós comemos.  Quem duvida
que a ceifadora apenas um festim
esteja preparando...?  E quem nos diz

quais serão os convivas dessa lida...?
Que não nos plantam, quais flores num jardim,
mas nos devoram, com sorrisos senhoris...

REGRAS DA VIDA XLV

Nem sempre com dinheiro se resolve
um problema que tenhamos, porque, às vezes,
há soluções mais simples de aos revezes
espantar para um canto; não se envolve

o amor em presentes, simplesmente:
melhor é escutar, mostrar-se atento
e dispor-se a ajudar, nesse portento
de ter alguém ao lado, bem presente;

e é a mesma questão, ao ver a idade
instalar-se gentilmente em nossa vida --
não é uma plástica que a leva de vencida,

embora possa disfarçar a sua vontade,
ela se impõe; da juventude o esbulho
melhor se aceite em boa-vontade e orgulho!

RESSAIBO

Por mais que seja sincero o teu auxílio,
se for grande demais, ressentimento
fará brotar no alheio pensamento
e empanará de teu presente o brilho.

De certo, é ingratidão, porém é filho
de não poder pagar, tal sentimento,
se aquele que recebe esse alimento
nunca seguiu da ingratidão o trilho.

E agora vê-se nela: mais ressente
sentir-se ingrata por um tal presente,
que lhe desperta nalma ira mesquinha.

Muito melhor seria não ganhar,
sem ter de agradecer e imaginar
que não pode retribuir com quanto tinha.

VORAGEM I
[para Tristan Riet]

É normal se inquiete o homem pelo além,
por qual seja seu destino após o físico:
se algo existe, de fato, metafísico,
ou outros enigmas a decifrar também...

A inteligência se reduz, porém,
nessa contemplação do ultra-físico,
ao espectro da morte, no seu tísico
esqueleto, que nem mais os olhos tem...

Perder o corpo é destino irremediável
e causa da ansiedade mais constante:
de que forma escapar a tal voragem?

E intimamente cresce a insofismável
certeza de que o momento delirante
ser encarado pode apenas com coragem.

VORAGEM II

Quem, senão o espírito, promove
um tal desassossego e nos induz
a buscar o saber, ao ver a luz
que após o mais comum assim renove?

Pois se encontra mais além do que seduz,
na esfera do vulgar que o mundo move;
quem transcende a matéria que o envolve,
na metafísica busca que reluz...?

E nesse campo que povoa o pensamento
entidades incontáveis, aos milhões,
nos espelham mil imagens poderosas.

E somente no puro tratamento
com que se miram tais identificações
é que se captam as idéias mais valiosas.

VORAGEM III

De certo modo, se pode comparar
o ente físico a um televisor,
cuja antena captaria com vigor
as imagens que queremos enxergar.

Sem a antena, é difícil alcançar
a nitidez do mundo superior;
e o espírito se faz receptor
quanto maiores alturas escalar.

É lastimável se possa desligar,
por tanto tempo, esse fiel canal,
que nos permite acessar o metafísico,

pois enquanto não se torna a reinstalar
a ligação com o mundo espiritual,
continuaremos esmagados pelo físico.

IGUARIAS II

É assim que a ceifadora nos recolhe:
como o maître d'hôtel de um restaurante
recebe os seus pedidos, obsequiante,
e vai até a cozinha, aonde escolhe

as lagostas, que seu cliente olhe,
para sacrificar no mesmo instante,
satisfazendo do freguês o arfante
desejo, que sua boca de água molhe,

pois vem à Terra e toma uma criança
de carnes tenras, ou adulto forte
[ossos de velhos adequados para sopa],

derruba um avião, para a festança,
ou afunda um vapor, no extremo norte,
e, por capricho, uma só vida poupa...

IGUARIAS III

Tudo depende, então, de uma encomenda:
não somos os senhores, somos gado,
abatido consoante o encomendado,
satisfazendo assim da noite a agenda,

que a tais gastrônomos, um a um, atenda,
segundo o seu favor, manifestado:
se um quer podre, o podre é encomendado;
se um quer fresco, é o fresco que se arrenda.

Essa é a nobre visão da humanidade,
que oscila entre deuses e diabos,
sem saber a quem deve erguer suas rezas...

Mas sem ter importância, de verdade,
para os garçons, com seus menus armados,
a recolher os pedidos dessas mesas...

IGUARIAS IV

Pelo que soube, houve até quem se chocasse
com a dimensão desta minha fantasia,
talvez porque essa atroz taumaturgia
sobre seu próprio destino se estampasse...

Não sei por que esta fantasmagoria
a segurança interna devorasse;
nada criei que assim amedrontasse,
que não se achasse em antiga liturgia...

Afinal, sem a morte, a religião
dificilmente para nós acena...
é tal certeza que a confissão atiça!...

Que eu despertasse tanta assombração...
Mas pelo amor de Deus, qual é o problema,
quando comemos esse Deus em cada missa!

IGUARIAS V

Para mim, chega a ser um privilégio
ser devorado por majestosos seres:
desse modo contribuir para os prazeres
de anjos ou demônios: sortilégio!...

Melhor assim do que viver em paraplégio,
vendo os outros a cumprir os meus deveres,
aguardando pela morte, em desprazeres,
odiando a vida, em pleno sacrilégio!...

Ou saber que terei o meu confim
em caixa de cimento, emparedado:
talvez por outros mortos visitado,

em madrugadas que não tem mais fim!...
Mil vezes não!... Prefiro então que adorem
o meu sabor os seres que o devorem!...

REMORDIMENTO

Pois me buscou de angústia avassalada
aquela jovem triste e irrefletida,
que não confiava em si, que deu guarida
às mil perquirições da alma assolada...

Eu a cobri de gentileza alada,
até lhe restaurei a sua perdida
auto-confiança, mostrei-lhe ideal guarida
em amor puro e paciência renovada.

Dei-lhe meu tempo, minha bênção e suspiro,
descurei de mim mesmo por seu bem,
mostrei-lhe um fado mais nobre e majestoso.

E esta é a razão para tanto que refiro:
passou de largo -- e constatei, também,
que perde amor quem mais foi  generoso. 

REGRAS DA VIDA XLVI

Tenha certeza daquilo em que acredita:
pense sozinha e tenha a mente clara
sobre seus sentimentos e opiniões,
para não ser facilmente demovida,

como até agora foi, na sua desdita,
seguindo a voz alheia, atenta para
o último conselho dos dragões,
para ser melhor aceita ou recebida;

todos queremos a um grupo pertencer,
sentir a segurança do rebanho:
mais fácil se mesclar, que ser sozinha;

mas pense por si mesma e seu saber
será reconhecido.  É bem tacanho
quem só repete o que ouviu de seu vizinho.

EXCESSOS

Já falei tudo o quanto precisava
ser dito; e a meus servos alforria
há tempos concedi; não mais cabia
que se esfalfassem nessa faina cava,

por esvaziar-me a mente, nessa escrava
labuta de consulta em que vivia
ao Inconsciente Coletivo, e me fazia
o alvo tão somente da irrisão; e alçava

apenas a caneta e me escorriam
as palavras, em velozes expressões;
pois reconheço que já falei demais:

vou renovar as barreiras que impediam
que os versos me jorrassem borbotões;
fecho as eclusas e não escrevo mais.

VORAGEM IV

Quando se encontram as inquietações,
buscamos resolvê-las de imediato,
sem compreender o manifesto fato
de que implicam em emancipações

e que somente ao invocar razões
será integral, em todo o seu recato
nossa libertação de tal contato
com o concreto de tantas prisões.

Quando buscamos as satisfações
conseguimos tão somente adormecer
nossa vontade: e temporariamente,

quando, de fato, eram estimulações
que deveríamos buscar para crescer
em antigo anelo superação consciente.

VORAGEM V

E nessa busca há tantos desenganos:
de boa fé, tentamos encontrar
respostas vãs, que passam a ensinar
os que não têm nem para si respostas

e envolvem extravagâncias nesses planos
de vivo fanatismo a proclamar,
de ambições de lucro a disfarçar,
em metafísicas farsas descompostas.

E em tudo isso, nos falha a religião
e se esconde em suas fórmulas a ciência
e a filosofia se perde em labirinto,

pois tão somente nos vendem ilusão,
de modo tal que cegam a consciência
nessas mil falsidades que pressinto.

VORAGEM VI

Porque no fundo, ninguém sabe nada
do que o espírito humano é, de fato.
Tudo não passa de um sonhar beato
e a vida humana é assim desperdiçada.

Para que a emancipação seja encontrada
é preciso envolver, num só contato,
o mental e o moral e, de imediato,
o psíquico e o espiritual na mesma estrada.

Somente assim se livra da impotência
a nossa parte física; e em seriedade
se poderá inquirir a natureza,

na verdadeira e terminal ciência,
que nos transmite essa seguridade

e nos reveste da espiritual certeza. 

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