sexta-feira, 13 de maio de 2016






AMORES MEDÍOCRES
(Novas séries de William Lagos – 10/09/2007 – 05/05/2016)

AMORES MEDÍOCRES I – 10 set 07

Eu vejo a meu redor tantos amores
levianos, vagos, de curta duração,
só por dizer que um outro coração
ressona transitório em seus sexores...

E assim como começam, tais ardores
depressa se desfazem sem paixão:
não se acha amor na pobreza da emoção,
mentiras breves, curtos seus pendores...

Só pele contra pele... Sem razão,
sem perdurar, não mais que a companhia
que não os deixe a sós na multidão...

Mas não os meus: são firmes e potentes,
mesmo que estejam juntos, à porfia, (*)
são sólidos amores permanentes...
(*) Em competição.

AMORES MEDÍOCRES II – 26 ABR 16

Ninguém pense que serei um desses velhos
que ao verem sua vida sensual interrompida
motivos vejam para ao contemplar a vida
sexual dos jovens, ali meterem seus bedelhos.

Nem que pretenda a tais jovens dar conselhos,
salvo onde a higiene for comprometida
ou, por desgaste da excitação, perdida
por experiências demais, frágeis espelhos

desses que apenas sentir possam inveja...
Longe de mim!...  Não tenho esse pendor:
que bem possam mocidade aproveitar!...

E se a promiscuidade se corteja,
que um dia possam provar real amor,
mesmo que os venha sociedade a condenar!

AMORES MEDÍOCRES III

O pior que posso sentir é a ironia
desses que hoje condenam a nudez,
que no seu tempo desejada mais se fez:
sentem rancor ao invés de nostalgia!

E assim condenam, em tal desfaçatez,
a exposição que para mim seria
a mais sagrada coisa que existia:
o corpo humano em sua plena madurez!

Porque, afinal, segundo as Escrituras,
é o templo místico do Espírito Santo
e como tal, só deve ser admirado,

nele encontrando beleza e não feiuras,
pele dos velhos veludo de igual manto
que o corpo moço por tantos invejado!

AMORES MEDÍOCRES IV

Se é proibido expor qualquer nudez,
que faz Jesus desnudo sobre a cruz?
É mais sublime em sua magreza esse Jesus
ou esse Adão que Michelangelo nos fez,

na Capela Sistina, perante a altivez
de Deus Pai, seu dedo a dar à luz
a forma humana, nessa imagem que reluz
e que à Sua Semelhança se refez?...

E logo hoje, quando a televisão
nos mostra o sexo no interior das casas...?
Mas a que ponto vão o dolo e a hipocrisia?

É um corpo negro que causa repulsão
ou que a mulher despida de suas gazas
tenha o pecado original criado um dia?

EMOÇÃO MEDÍOCRE I – 8 set 2007

No calor, me derrete a inspiração
e sai pelos esgotos de minha alma.
Não sai a lastimar, morre com calma,
no desvaziar da mente e coração.

No calor, não me alento por poesia:
não quero nada.  É a pura realidade.
Só sinto o arder desta animosidade
que me transforma a vida em fancaria.

Bem sei que outros não fizeram nada,
enquanto eu trabalhei horas sem pausa:
talvez por isso não me sobre exaltação.

Mas o verão me estrangula a desejada
transcendência infeliz... Morro sem causa,
ao pingar versos suados de emoção...

EMOÇÃO MEDÍOCRE II – 27 ABR 16

Mas quando chega o frio, meu coração
se exalta novamente de calor,
caminho pelas ruas com ardor,
trabalho no vigor da exultação!...

É quando em versos percebo exaltação,
derramo a vida ali mais que no sexor,
lanço minhas redes mais alto que o condor,
mesmo à empatia sei dar maior vazão...

Mas o calor só me interrompe o fio
de minha vida nesses dias maus,
em que preciso comprar mais energia,

ventiladores a financiar seu rodopio,
condicionadores em seus frígidos caudais,
a desgastar o combustível que Deus cria!

EMOÇÃO MEDÍOCRE III

Contemplo aqueles que amam o contrário
e que se expõem, com impudência, ao sol,
das radiações invisíveis ao farol,
seu próprio corpo entregue a tal fadário (*)
(*) Destino

de tanto câncer, nesse ato atrabiliário,
não só os da pele, mas ao vasto rol,
do útero, das mamas, malvado girassol
de leucemias – do sangue até o ossário!

E ainda nadam nos esgotos dessas praias,
marés e ondas ali contaminadas,
nojentas cíbalas a flutuar no mesmo banho! (*)
(*) Fezes

Água de urina, nessas mesmas raias
em que as crianças brincam, descuidadas,
enquanto os pais se expõem ao sol, em arreganho!

EMOÇÃO MEDÍOCRE IV

Já não distingo se é tolice ou só vaidade
que impulsiona tanta gente a se “bronzear”,
as peles negras depois a desprezar
como inferior à da branca sociedade!...

Não sou contra a nudez, na realidade,
mas contra os males da saúde cortejar
e contra a indústria do protetor solar,
que tanto lucra com tal mediocridade!

Mas em minha casa fico a preservar
o meu suor, sem antitranspirante:
basta-me o banho tomado diariamente.

Por mais que venha do calor a me queixar,
não me deixo influenciar a cada instante
por tanta propaganda assaz frequente!

TAREFA MEDIOCRE I – 9 set 2007

Deixei de ser feliz: meus versos lama espessa:
alguma coisa se partiu dentro de mim ---
meus servos esgotados, não querem mais, assim,
louvar o amor vazio, labor que triste cessa.

Inusitada a espera, provada vã do prenhe
momento azul em que o organismo treme
e se estilhaça no instante em que mais geme,
a partejar dos sonhos o que ordenhe...

O coração que vejo, senil e amarfanhado,
não mais quer esperar outro encantado
responsório de fulgor e exultação...

Se o verso quer trabalho, que assim seja!
Não pararei porque a musa não se enseja,
por mais vazio que me sinta de emoção!... 

TAREFA MEDÍOCRE II – 28 ABR 16

E sem sombra de dúvida, não parei:
muitos milhares são os versos que compus,
na exposição de meus neurônios nus
desde esse antanho no qual me revoltei,

durante o breve momento em que deixei,
só por instante o Dionyso que reluz
e para Apollo supliquei rimas de truz
e as Nove Musas diariamente engambelei,

que se deitassem a meu lado, com paixão,
nessa partilha do fruto proibido:
jamais o sexo, porem a inspiração;

e hoje percebo o porquê de haver nascido
sob a parreira de uvas em botão
em que meu cérebro tenho protegido.

TAREFA MEDÍOCRE III

Falei até demais nesses processos
que me permitem compor fluentemente
isso que causa esforço a tanta gente,
com resultados de medíocres progressos;

não se suponha que cometo alguns excessos,
porque as palavras me correm docemente,
algumas vezes de forma surpreendente
para mim mesmo, em seus finais amplexos.

Já mencionei a minha Corte Impura:
os meus fracassos, temores, desavenças,
cada qual preso em cela bem segura,

nas quais produzem essas frases tensas
de meus amores desvairados de loucura,
sem que eu recorde ter emoções tão densas!

TAREFA MEDIOCRE IV

Já mencionei a dionisíaca embriaguez
que os sentidos me adormece por instantes,
quando me explodem os versos mais vibrantes,
sem que possa intuir como se os fez;

já mencionei emissário ser talvez
de uma coorte de mortos delirantes,
esses poetas falecidos, já bem antes
que conseguissem descrever toda a nudez

dos pensamentos que haviam concebido;
já mencionei o Inconsciente Coletivo,
que me repassa o que pretende devolvido

a esse mundo do medíocre cativo;
e o Dom de Línguas, por que sou acometido
nesse divino sofrer sob o qual vivo!...

TALVEZ MEDÍOCRE I – 10 set 07

Um dia, talvez goste destes versos
que agora faço, no meio da canícula,
da onda concreta e da vazia partícula
de sentimentos em esgar conversos... (*)
(*) Caretas

Mas o que sinto agora, é veleidade...
Não obstante, mantendo a versogênese, (**)
como mais um dever, como ergogênese, (+)
enquanto o reverbero da cidade
(**) Geração de versos. (+) Criação de trabalhos.

referve em torno a mim, no burburinho
de horas falazes, curtidas de vapor,
em que só posso descrever meu desconforto.

Pobre poema este, assim mesquinho:
não fala de virtude, nem de amor,
mas tão somente de um presente morto.

TALVEZ MEDÍOCRE II – 29 AGO 16

Um dia achei, nas várzeas de um arquivo
esses versos esquecidos por mim mesmo,
sem quadraturas de rimas no seu esmo,
sorvendo a ânsia libertária do cativo,

nesse cronótopo de seu tropo já perdido, (*)
espaço e tempo de olvidada aceitação,
que me requer não só ressurreição,
mas algo mais que o morto verso lido...
(*) Tempo e espaço de uma obra literária.

Já me queixei demais desse calor...
Só não espero ser igual ao Rei Davi,
que não podia se aquecer nos seus setenta,

nos quais penetro, conservado meu vigor,
sem me queixar do frio que encontro aqui,
nesse talvez que a alma ainda me esquenta.

TALVEZ MEDÍOCRE III

Contudo, ao Rei Davi eu me comparo,
nesse vago versejar de imensidade;
embora a harpa não toque, na verdade,
os muitos golpes do inimigo ainda aparo;

vejo o medíocre a receber amparo
e me derreto na perplexidade:
por que aplaudem assim mediocridade,
versos perfeitos deixando ao desamparo?

E ainda percebo ao redor ressentimento
perante o resplendor desse talento,
que meu não é, mas me foi aquinhoado

e que preciso expor, na obrigação,
qual na parábola encontrou aceitação
melhor o servo a seu trabalho dedicado.

TALVEZ MEDÍOCRE IV

Diz a Escritura, em afirmação terrível:
“àquele que já tem, mais será dado,
porém ao que não tem, será tirado
até o que pensa ter”, na incognoscível

exigência desse Deus inacessível,
que nem deseja, talvez, ser adorado,
mas que o labor seja bem realizado
desse plano a nossos olhos invisível.

Eu tenho feito, certamente, o que o Arquiteto
de mim espera, sem esconder na terra
esse brunido e assustador talento;

por isso o exponho, por não deixar secreto
esse templo de palavras que se encerra
entre minhas mãos, a furtar-me o meu alento!

COROLA DE ANGÚSTIA I – 30 ABR 16

DO TEMPO VELHO EU ROUBEI AS CONCUBINAS:
AO INVÉS DE AMOR, EU FIZ PROSOPOPEIA; (*)
QUATORZE HURIS EU TIVE, NA EPOPEIA,
VIRGENS ETERNAS EM SUAS ETERNAS SINAS.
(*) ATRIBUIÇÃO DE VIDA A OBJETOS INANIMADOS.

NÃO ERA O PARAÍSO EM DOCES MINAS,
NÃO MAIS QUE VERSOS TOMADOS À ANCESTREIA,
MAS PARTILHANDO O CRONOABISMO EM CADA IDEIA
DE HORAS DOURADAS E DE SEMANAS FINAS.
(*) ANCESTRALIDADE; ABISMO DO TEMPO.

OS DIAS DEVORAMOS, EMPANADOS,
A SOBREMESA ERAM MESES DELICADOS
E AO INVÉS DE FRUTOS, MASTIGAMOS ANOS

E O TEMPO ADORMECEU, VELHO QUE ESTAVA,
SUA FILHA, A MORTE, AFIRMANDO QUE ME AMAVA
BEIJOU-ME OS LÁBIOS, NOS VENENOS MAIS ARCANOS.

COROLA DE ANGÚSTIA II

NESSE CRONÓTOPO DO ESPAÇO LITERÁRIO
EU PRENDO O TEMPO NAS AZILAS DAS HURIS,
EU PRENDO O PONTO EM QUE PRENDER-ME QUIS,
NÃO DESPERDIÇO OS MINUTOS, PERDULÁRIO.

EM NADA PRÓDIGO, O ESPAÇO É MEU SACRÁRIO
E O TEMPO GRAVO, SEM DESPREZOS VIS;
CORREM OS DIAS QUE DIARIAMENTE FIZ,
MEUS PRÓPRIOS OSSOS NESSE ESCAPULÁRIO.

NÃO QUE JULGUE TER ERGUIDO A CATEDRAL:
NÃO FAÇO NELA SENÃO OBRA DE OPERÁRIO
E SÓ ME LOUVO DE NÃO TRABALHAR MAL,

QUE AS INSTRUÇÕES OBEDEÇO O QUANTO POSSO
E SE ALGO MALTRATEI EM MEU FADÁRIO,
FOI QUANDO A GOIVA RASGOU-ME ATÉ O OSSO!

COROLA DE ANGÚSTIA III

A GENTE PENSA QUE O TEMPO TRAZ A VIDA
E A CADA DIA QUE CHEGA, AGRADECEMOS,
SEM COMPREENDER QUE OUTRO DIA PERDEMOS
AO CALOR DE CADA AURORA AMANHECIDA.

SOMENTE A MORTE NO TEMPO ESTÁ CONTIDA:
FAZ-NOS BEBER DIARIAMENTE OS SEUS VENENOS,
NAS LONGAS HORAS QUE FAZEM SEUS ACENOS
NESSA VENTURA INALCANÇÁVEL PERSEGUIDA.

MAS COM AS HORAS FORMEI ORQUESTRA E CORO,
SÃO MAIS FIÉIS QUE AS MUSAS CAPRICHOSAS,
SEMPRE A MEU LADO, EM DOÇURA SOLUÇANTE.

EM PARAÍSO INCONSÚTIL SEI QUE MORO:
NESSA FEITURA DE ESTRELAS SONOROSAS
DESGASTO A VIDA, MAS SEMPRE MARCHO AVANTE!

COROLA DE ANGÚSTIA Iv

CADA POEMA UMA VIRENTE FLOR,
COM QUE ARMO DIARIAMENTE A SUA COROLA;
COM PÓLEN SANTO UMA DOURADA BOLA,
ESTAMES E PISTILO EM DOCE AMOR.

CADA POEMA A DESPERTAR RANCOR
DA TURBAMULTA QUE AO REDOR SE ENROLA;
CALÚNIA E MÁGOA EM ACIDULADA GOLA
PARA O BARAÇO EM ABRAÇO CONSTRITOR. (*)
(*) LAÇO DA FORCA.

CADA POEMA A RENOVAR-ME O ARDOR:
DE CERTO MODO, PREFIRO SER ODIADO
QUE PELOS MAUS TOTALMENTE IGNORADO.

CADA POEMA NOVA PROVA DO VIGOR
COM QUE COMBATO A INTEIRA GERAÇÃO,
SEM TER ÓDIO OU DESPREZO AO CORAÇÃO.

COROLA DE ANGÚSTIA v

ANGUSTIADAS POR SUA ETERNA VIRGINDADE,
QUATORZE HURIS SE ASSENTAM JUNTO À MESA
E ME DEVORAM O TEMPO, COM CERTEZA,
VERSOS FORMANDO EM TAL CRONICIDADE.

ANGUSTIADOS OS VERSOS SEM MALDADE,
POR NÃO PODEREM FLORES SEREM DE BELEZA,
QUATORZE ESPAÇOS EMBAINHANDO DE NOBREZA.
QUATORZE EVENTOS DE ESPACIOSIDADE.

QUATORZE HURIS, QUATORZE VERSOS APINHADOS,
QUATORZE ANGÚSTIAS RECAMADAS EM COROLA,
QUATORZE SOPROS RESIDINDO NUM SONETO,

QUATORZE MÉTRICAS NAS RIMAS DOS PECADOS,
CESURAS QUATORZE NESSA IMENSA BOLA,
QUATORZE DORES EM MEU RITMO SECRETO.

COROLA DE ANGÚSTIA Vi

POR ISSO AS VEJO COMO QUATORZE APENAS,
BEM MAIS MODESTO DO QUE SÃO OS MUÇULMANOS,
QUATORZE HURIS EM MEUS VERSOS ITALIANOS,
SONETOS CLÁSSICOS CONTIDOS EM VERBENAS.

QUATORZE SÉPALAS EM COROLA DE AÇUCENAS,
QUATORZE DIAS, SEMANÁRIOS DESENGANOS,
UMA QUINZENA DE AMORTECIDOS PLANOS,
QUATORZE ANGÚSTIAS SORRINDO DE MINHA PENAS.

E BEM QUISERA TER QUATORZE DEDOS,
AO INVÉS DE DEZ, QUE MAIS ESCREVERIA,
QUATORZE PRANTOS EM VIÉS DE NOSTALGIA,

QUATORZE ARCANOS REVELANDO SEUS SEGREDOS,
QUATORZE PÉTALAS, QUE UMA A UMA ARRANCARIA,
QUATORZE ALFANGES DE GENTIS ALBEDOS.

CHEIRO DE PEDRA I – 1º mai 2016

Será que eu ousarei ou que meus deuses
me ajudarão nesta quebra de cadeias?
Será que, finalmente, minhas sereias
completarão o ensaio de seus meses?

Quando a cantata esperada tantas vezes
estreie finalmente em brancas teias?
Quando os merlões separados por ameias
dos meus bastiões atacarão revezes?

Ah, que eu queria!   Que meu devaneio
de tantos anos se concretizasse,
sem o abraço constante da quimera

e que eu pudesse penetrar o veio,
que nessa fonte enfim me abeberasse,
depois das rochas de tão longa espera!

CHEIRO DE PEDRA II

Caso eu fosse um partisan, redigiria, (*)
nesta data ao trabalho consagrada,
sagas de maio em rútila e elevada
canção guerreira que operário cantaria.
(*) Guerrilheiro comunista

Caso eu fosse um sacerdote, falaria,
nesta falange há tantos anos dedicada,
em véus de noivas, a melodia alçada
no epitalâmio em helênica elegia.  (*)
(*) Canto nupcial

E se pornógrafo fosse, eu quereria
ver na nudez dos noivos alegria,
como um motivo de maior excitação.

Mas mesmo sendo um velho, não veria
nessa nudez a menor pornografia,
mas da beleza tão só a exaltação!

CHEIRO DE PEDRA III

A carne humana tem seu cheiro peculiar
que não é, tal qual afirmam, ofensivo;
os animais tem fedor bem mais ativo
e o dos humanos sempre é mais familiar.

Já de uma estátua, o cheiro a se esperar
é bem diverso, um hausto primitivo
de mármore ou do basalto mais esquivo
ou do arenito para o olfato conquistar.

A carne humana, na pintura a óleo
odor nos punge mais próximo ao azeite
e o breviário de suas cores enriquece

ao paladar, que intermedia cada olho,
no palpitar do vulto assim aceite,
a mente e o peito invadindo como prece!

CHEIRO DE PEDRA IV

Porém que cheiro tem a carne nessa tela
que reproduz a nudez pela eletrônica?
Sabor de plástico, talvez, veste neurônica
sobre o acrílico que tantos pixels revela.

Não é o olfato que aos olhos nos apela,
apenas tal quimera mnemônica
dessa lembrança singular e afônica,
calado gesto em que a imagem se congela.

Não é cheiro de pedra e nem perfume,
somente o odor que lhe podemos atribuir
e que encaramos com dulçura ou azedume,

lá das entranhas de nosso perquirir,
seja qual for o atalho por que rume
nosso desejo para o vasto confluir.

CHEIRO DE PEDRA V

De modo idêntico, qualquer fotografia,
sem ser impressa, sem ter cheiro de tinta,
sem que esteja em nossas mãos, sem que se sinta
sequer o estalo furtacor com que iludia,

não é a semialma que haveria
num holograma de projeção distinta,
nem a imagem cambiante que se pinta
pelos recursos que em tal tela se acharia.

Essa foto de mulher em sua nudez,
ali estática e sem ter movimento,
sem exudar feromônios femininos,

somente traz sugestões de vaga tês,
que reforçamos pelo nosso pensamento,
na proporção de nossos desatinos...

CHEIRO DE PEDRA VI

Assim ao vermos qualquer musa despida
(como é costume chamar a tais modelos),
sem pedeefe  a mover os seus desvelos, (*)
sua redolência por nos mesmos é inserida.
(*) pdf (Portable Document Format).

E se um artista a encarar, é concebida
tal qual nos quadros, tal qual queria vê-los;
são dotes de beleza e irá perdê-los
nessas décadas cruéis da humana vida!

Mas quando alguém de mente mais grosseira
enxerga o óleo, a têmpera ou a estátua,
ali contempla não mais que seus pecados.

Não cheira a pedra, nem a carne mais faceira,
mas a própria maldade ou inveja fátua
dos outros corpos que a possuíram deliciados!

ISABELLA I – 02 MAI 16

Meu amor não me deixa... meu amor não me deixa
ter sossego algum... É a letra de “Isabella”,
uma canção que me parece muito bela,
que em repertório germânico se enfeixa.

Alegremente, o intérprete se queixa
desse desdém que lhe impõe a sua donzela,
mas em sua teimosia se encastela
e assim repete em público sua endeixa,

nesse aguardo de que sua voz a dama escute
ou que as amigas logo venham lhe contar
quão grande o esforço com que por ela luta!

Talvez assim adule a sua vaidade
e finalmente possa tê-la por seu par,
quem sabe tendo até felicidade!

ISABELLA II

O acorde escuto dessa canção singela
e vejo em mim rebrotar a nostalgia:
ai, que cabelos?  Qual olhar teria
a homenageada e germânica Isabella?

Teria sido europeia essa donzela,
na terra antiga em sepultura fria?
Por que sinto borbulhar-me essa empatia
pelo cantor que teme ainda perdê-la?

Ou quem sabe já nasceu nestes lugares
consagrados pelo sangue de imigrantes,
aqui trazendo o modelo dos cantares,

a língua antiga cultivando como dantes?
Talvez se a visse, não tivesse iguais ansiares
nem comporia os mesmos versos suplicantes...

ISABELLA III

Nem sei quem seja a mocinha da canção,
mas simpatizo, contudo, inteiramente,
com tal dedicação de ideal potente
de quem gravou sua ingênua aspiração.

Pois isto é certo: que a cada geração
haja namoros obtidos facilmente,
haja paixões por um par indiferente,
mil corações em total inquietação!

Ai, Isabella!  Que não vi e não verei!
Será que algures por ti me apaixonei
e é por isso que tal canção me toca?

Ai, Isabella!  Provavelmente velha ou morta,
contudo ainda o coração me entorta
pelas palavras a brotar de alheia boca!

ANÉIS BENZOICOS I – 03 MAI 16

Todo perfume tem assento em um anel,
seis átomos predispostos qual colar,
criando olor a tuas narinas dar,
simples recamo que adorna esterco e mel.

Pois todo amor tem ali igual quartel,
seus feromônios teu nariz a penetrar,
também um cego sabe como amar,
deixando cego o monge em seu burel.

Amor, portanto, também é anel benzoico,
que te penetra fundamente, triste fato,
e a alma inteira envolve igual aranha

e assim afeta até mesmo o mais estoico,
porque, afinal, amor é como um gato,
manso e bonito, porém que a mão te arranha!

ANEIS BENZOICOS II

Amor te ilude quando o ideal te assanha
e em ti desperta a quimera da delícia,
sem despertar qualquer suspeita de sevícia,
nessa sua atávica e insuspeitada manha!

Amor, de fato, os dentes te arreganha
nesses momentos de beijo e de carícia,
a explorar facilmente essa estultícia
que o coração e a alma humana banha!

Por ser amor necessidade básica,
não só de sexo, mas também de compreensão,
de se possuir ao lado lealdade,

mesmo que seja de permanência fásica, (*)
porém que aqueça o bater do coração
inquieto sempre de toda a humanidade!
(*) Temporária.

ANEIS BENZOICOS III

Dizem que o gato prima por limpeza,
o corpo inteiro sempre a se lamber,
os seus emunctórios a esconder,
enquanto o cão para tal mostra lerdeza.

O mesmo gato consciente de beleza,
que come e dorme no seu espairecer,
pelo alimento pouco ou nada a devolver,
na vocação de bibelô por natureza...

Assim o amor, de aparente mansidão,
não traz em si qualquer compensação,
se não for acompanhado pelos fatos,

pelo concreto em real demonstração,
na gentileza dos beijos em botão,
dedicação constante nos seus atos.

ANÉIS BENZOICOS IV

Anéis benzoicos que o calor mais fortalece,
mas que no frio têm menos perceber,
cada perfume na flor a se esconder,
quando na geada sua cor empalidece.

Porém, por atos de amor, tal odor cresce,
faz-se benzoico em seu redolescer, (*)
mansa florada em transitório verdecer,
quando ao fundo do palato se nos desce.
(*) Perfumar.

Que seja amor nada mais que uma ilusão,
que outra coisa nos traz mais inspiração
e a criar mais nos leva e a construir?

Logo as papilas terão breve constrição,
assim fechadas ao benzoico da emoção,
deixando amor a perfumar o coração.

BEIJOS DE SALITRE I – 04 MAI 16

Sinto no beijo um sabor acidulado,
Quando se oscula um lábio amarfanhado,
Nessa mescla de carinho e de ilusão,
Terrível beijo por destino consagrado!

Sinto no beijo tal singular paixão,
Meio perfume, outro meio a palpação
De cada beijo escondido no passado,
Quer seja meu ou de antiga geração.

Nesse salitre de atroz penetração,
Nesses instantes da mente deslumbrada,
Nesses momentos de reza amortecida,

Todo envolvido nessa estranha exaltação
Que me embriaga com café e limonada
No insuspeitado percutir da própria vida!

BEIJOS DE SALITRE II

Fica do beijo o sabor nas comissuras (*)
Dos secos lábios guardiões da própria boca,
Sabor de lã, desmerecida touca,
Meio roída pelas traças mais impuras!
(*) Cantos da boca ou dos olhos..

Fica do beijo o olor das formosuras,
Das ilusões, felicidade louca,
Por mais comprida seja, inda bem pouca,
Na diária vida fissurada das agruras!

Já muita vez anteriormente comentei:
Que cada graça que me dava a mão direita
A mão esquerda, sorrateira, me tirava!

Mas multidão de beijos alcancei...
Por mais que seja tal lembrança algo imperfeita,
Fica a memória do momento em que durava...

BEIJOS DE SALITRE III

Mas não se esqueça da presença do carvão
E algum enxofre do salitre na mistura,
Pólvora negra resultante desta impura
Fórmula mágica geradora de explosão!

Desse nitrato de sódio a construção
Não é exclusiva na memória que perdura:
É seu enxofre que nos leva a tal loucura,
Nesse futuro escurecido e sem razão.

Mas não sinto nos beijos nada escuro,
Embora alguns tivessem toque de sulfúrico,
Na violência da subitaneidade,

Para atrair-me a qualquer destino duro,
Originado no abismo mais telúrico,
A dominar-me com total gulosidade...

BEIJOS DE SALITRE IV

Assim anseio que a memória transitória
No coração perene me transite
E que a lembrança constante me concite
À inspiração em beleza constritória.

Que do salitre adstringente tal memória
Entre as gengivas a saliva ainda agite,
Que recordar outra saliva me permite
Nessa partilha de paixão peremptória.

Que seja a pólvora particular do amor
Causadora em meu peito de implosão,
Por toda a vida insuflando a geração

De novos beijos dos versos no calor,
No salitrado enxofre e no carvão,
Caminho abrindo em meu velho coração!

PÉROLAS AZUIS I – 05 MAI 16

Passado o sono, coloco outra camada
Igual a cera azul sobre o passado,
Pasta macia, tom balsâmico e dourado,
Por todo o sempre ali depositada!...

Nesse sarcófago a vida inteira embalsamada,
Em óleo e guache meu sudário mergulhado,
Cada momento que na mente foi pintado,
Cada mentira para sempre consagrada!...

Durante o sono, nem sei onde me encontro,
Nos vastos sonhos de ambição desmesurada,
A pré-história do antanho em tal recontro.

Durante o sono talvez tenha os mais reais
Momentos de minha vida, desfrutada
Na terra áurea que aqui não vejo mais!...

PÉROLAS AZUIS II

É meu costume ouvindo música dormir,
Porem não essa que chamam popular,
Sinfonias e quartetos a escutar,
Proclamações em canções a reluzir!...

Talvez meu cérebro as possa perquirir,
Doces gavinhas procurando retirar,
Da melodia a inspiração a acalentar,
Quaisquer palavras ou nota a lhes pedir.

Durante o sono, a camada é mais suave
E nem sei se eternamente deposita
Pilha de vagas sob a imensa trave

Que me recobre a vida, ao invés de tenda,
Na multidão de sonhos que se agita,
Enquanto os olhos recobrem-se com venda...

PÉROLAS AZUIS III

O que é certo é que, após o despertar,
Palavras fluem direto no papel,
Ficam metáforas melífluas qual mel,
Frases amargas do amargor a conquistar.

Antes mesmo de minhas pálpebras lavar
Eu já me vejo desenhando esse ouropel,
Na luz escassa, o céu em seu burel
De monge, acetinada a palpitar!...

Sobem as tropas em violento relinchar,
Versos mugidos, versos a balir,
Versos sofridos, outros mais exuis,

Filhos do sono, em insopitável rebrotar,
Frases doridas ou frases a luzir,
No lusco-fusco destas pérolas azuis!...

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com



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