quinta-feira, 26 de maio de 2016




O ALMIRANTE DOM FUAS
(Episódio histórico português recontado por William Lagos, 16 mai 16)

O ALMIRANTE DOM FUAS I

Não se sabe quando foi o nascimento
de Dom Fuas na história portuguesa;
somente a data de seu falecimento,
combatendo contra os mouros com nobreza,
em Mil e Cento e Oitenta e Quatro,
quando acabou afogado no báratro
das ondas, após mais uma batalha,
finalmente perdida, sorte dura,
porém sua história firme ainda se talha
e na memória lusitana hoje perdura.

Chamava-se Fernão Gonçalves Churrichão,
porém foi apelidado “O Farroupim”
e mais tarde, havendo certa mutação,
“Dom Fuas Roupinho”, mais conhecido assim;
de Dom Affonso Henriques companheiro;
alguns afirmam ter sido um cavaleiro
da antiga e santa Ordem dos Templários;
de fato, não se sabe se casou
ou que tivesse relacionamentos vários:
talvez mesmo ao celibato se votou...

Mas mesmo a época sendo das Cruzadas
jamais partiu rumo a Jerusalém;
diversas outras foram decretadas
e contra os mouros de Portugal também.
Certamente se tornou um Almirante,
levando a Armada de Portugal avante,
desde os primórdios por ele organizada,
um partícipe feroz da Reconquista,
pela bênção dos papas consagrada,
que a gente lusa de tal empenho não desista.

Foi aio e mestre de Dom Pedro Affonso,
filho de El-Rey Dom Affonso Henriques,
mas aqui sofre a história certo engonço:
dizem alguns que por seus altos piques
seria do Conde um filho natural:
Dom Henrique de Borgonha, de Portugal
o Iniciador, embora fosse derrotado
pelo seu sogro, o espanhol rei de Leão,
o que o tornava fielmente devotado
a Dom Affonso Henriques, seu irmão.

O ALMIRANTE DOM FUAS II

Segundo outra versão, filho seria
de El-Rey Affonso Henriques, não irmão
e que de Dom Pedro Affonso deixaria
de ser o tio – irmão mais velho, então.
Participou da Reconquista ativamente;
sabe-se que em manuscrito se apresente,
no ano de Mil Cento e Setenta e Nove,
como Alcaide-Mór a sua designação
para a cidade de Coimbra, em que se louve,
ante a coroa a sua perene devoção.

Ora, estando em Coimbra, ouviu falar
da presença de Gamir, mouro e senhor
de Mérida, na Espanha, que estava a descansar
em Alcáçova do Porto de Mós, de que governador
era por conta de sua vice-governança,
sempre fiel a seu califa em abastança.
Morava Dom Fuas no Castelo de Leiria
e com sua hoste partiu a combater,
sem qualquer hesitação, a mouraria,
na firme crença de que podia vencer!...

Possuía de fato uma tropa bem menor;
não obstante, alcançou o triunfar...
Levou consigo Gamir, o grão-senhor
e os prisioneiros que lograra dominar
para Coimbra, de que era Alcaide-Mór,
em que foi alvo de aclamação maior;
e Dom Affonso Henriques o recompensou,
em razão do valor dessa conquista,
quando Alcaide de Porto de Mós o nomeou,
que defender assim não mais desista...

Vendo do porto as belas condições
e mais as naves que aos mouros conquistara,
viu-se tomado de nobres ambições
e quarenta navios assim juntara,
passando a combater como corsário
nas terras mouras, com resultado vário,
dependendo do ponto em que atacava;
grande fama realmente assim se fez,
que os inimigos sempre derrotava
este primeiro navegante português!...

O ALMIRANTE DOM FUAS III

Alguns navios, é claro, ele perdia,
mas seus marujos tornaram-se mais fortes;
para Lisboa retornou um dia,
com despojos e botins de muitas sortes;
foi promovido a Comandante Naval,
o primeiro português; assim foi natural
que o rei lhe demonstrasse a gratidão
e os Vereadores da Câmara de Lisboa
financiaram-lhe a total renovação
de sua esquadra, com importância boa.

Saiu de novo a perseguir os sarracenos
e no combate do Cabo de Espichel
capturou várias galeras, em cujos remos
havia escravos portugueses, a vida um fel,
aos quais substituiu por muçulmanos,
capturados em combates soberanos
e assim logo ao Rio Tejo regressou,
tendo em Lisboa uma nova aclamação;
e com o novo apoio que granjeou
partiu depressa para nova expedição!

Costeando Algarves, então ainda muçulmana,
de Gibraltar o longo Estreito atravessou,
invertendo a façanha; e assim se irmana
com aquele Ulisses dos gregos, que o cruzou,
vindo de dentro, em direção ao Mar Oceano,
por Homero a ser louvado em grande afano;
não o primeiro, certamente, que assim fez,
mas invadindo assim o Mediterrâneo,
algo que só mais tarde se refez,
da Reconquista como efeito e sucedâneo.

Nesse período, o Mediterrâneo Ocidental
aos mouros pertencia inteiramente,
salvo na borda mais setentrional
da Itália e da francesa entente,
que até a Sicília fora conquistada,
muita gente cristã escravizada
e transportada para as terras africanas,
mas Dom Fuas até Ceuta navegou:
venceu o combate e outras naves muçulmanas,
sem quaisquer dificuldades apresou...

O ALMIRANTE DOM FUAS IV

Em Mil Cento e Oitenta e Dois permaneceu
de Porto da Mós em sua alcaideria;
foi nessa data, então, que lhe ocorreu
de Nazaré o Milagre de Maria,
quando tentava caçar certo veado,
o que será mais adiante relatado.
Logo a seguir, as incursões recomeçou:
saqueou Melilla, por se achar desguarnecida;
muitas aldeias igualmente devastou,
mês após mês a vitória conseguida.

Mas no princípio do ano seguinte,
De Oitenta e Quatro, aumentando sua vaidade,
tentou Sevilha, um porto de requinte,
trinta e três naves sua capacidade;
Ibn Khaidun, o grande historiador,
nos relata esse combate de valor,
em que cinquenta e uma galeras enfrentou,
sem conseguir vencer esse combate;
vinte e duas naves portuguesas se apresou,
cerca de dez afundadas nesse abate.

Falam alguns que pereceu nessa batalha,
mas o mais certo é ter voltado a Portugal,
com a derradeira nave que lhe calha,
humilhado e furioso ante seu mal;
e novamente pediu o apoio de seu rei:
“Igual que antes, desta vez triunfarei.”
E então partiu contra a Serra de Abila,
que pôs a ferro e fogo e até saqueou,
mas foi cercado diante desta vila
e finalmente no Mediterrâneo se afogou...

Jaz até hoje o valoroso marinheiro
em qualquer ponto do Mediterrâneo ocidental,
Oitenta e quatro o seu ano derradeiro,
nesse combate sofrendo morte triunfal...
Até aqui vão os fatos desta história:
do Milagre de Nazaré seguirá a glória,
para o qual existe tão só comprovação
de que no ano de Mil Cento e Oitenta e Dois,
foi registrada de um terreno a doação
por Dom Fuas, como se há de ver depois.

O ALMIRANTE DOM FUAS V

No Santuário do Sítio de Nazaré
expõe-se estátua da Virgem Maria,
amamentando Jesus.  Segundo a fé,
o próprio São José a esculpiria,
olhando a esposa que tanto respeitava,
enquanto ela a Jesus amamentava.
Mais tarde, por razão desconhecida,
São Lucas de cor negra a pintaria,
quando à sua guarda esteve recolhida:
Nossa Senhora assim negra ficaria

Esta história, por sua vez, foi incluída
por Frei Bernardo de Brito em sua história,
“A Monarquia Lusitana”, redigida
com muita afirmação peremptória
da realidade dos milagres e ensejos,
em que a Virgem e os anjos, em adejos,
teriam vindo a auxiliar os portugueses,
junto a muitos pormenores que se louve,
nos seus relatos profanos muitas vezes,
impressa um dia em Mil Seiscentos e Nove.

A Frei Bernardo de Brito, na verdade,
se chamou “o Cronista-Mór de Portugal,
por narrativas de grande majestade,
em que a existência de lendas não faz mal.
A doação de Mil Cento e Oitenta e Dois
foi mencionada inicialmente, pois,
nesse relato do escritor admirável,
quinhentos anos depois de sucedida,
baseada em narrativa respeitável
que no Monteiro de Alcobaça era mantida. 

Afirma a crônica que em Nazaré da Galileia
fora a imagem esculpida inicialmente,
de mão em mão passando em odisseia,
chegando a Santo Agostinho finalmente.
Por Ciríaco, um monte grego, acompanhado,
Santo Agostinho assim teria viajado
até a Espanha, trazendo a santa imagem.
Ou São Ciríaco, sozinho, viajara,
enfrentando mil perigos, com coragem,
e a São Jerônimo de Estridão a entregara...

O ALMIRANTE DOM FUAS VI

Era o prior de um mosteiro, em Cauliniana,
perto de Mérida; e ali a imagem foi honrada
desde o século quinto, é o que proclama,
até a tropa ter sido derrotada
de Roderico, o derradeiro rei
da Gothalunya, pela imensa grei (*)
dos mouros e também de renegados,
de Guadalete, na pérfida batalha,
deixando os pobres monges assustados,
cada um fugindo para o ponto que lhe calha.
(*) A “Terra dos Godos”, hoje Catalunha.

Dom Roderico se teria refugiado
nesse mosteiro, após a sua derrota;
e ao ver que estava sendo abandonado,
a um certo Frei Romano se devota
e disfarçados como dois mendigos
para o Atlântico partiram os dois amigos,
de Setecentos e Onze no final,
tendo a imagem consigo transportado,
até chegarem, enfim, a Portugal,
em uma gruta a Santa Virgem colocando.

Foi nesse ano, em Novembro Vinte e Dois,
que se instalaram no Monte de Seano,
chamado Monte de São Bartolomeu depois,
no qual, sob domínio ainda romano
fora a Igreja de São Gião ali erguida;
muito pequena, de fato, quase ermida,
mas pelos padres de então abandonada,
por não haver mais ali a segurança;
de fato, a porta estaria escancarada
e a dupla ali se acolhe em esperança.

Contudo, após haverem descansado,
vinda de fora, suave voz então se escuta;
e depois de sua origem ter buscado,
Frei Romano finalmente achou tal gruta.
Embora em zona de bastante agrura,
pareceu-lhes se mostrar bem mais segura.
Ali o monge para sempre se instalou,
mas querendo iniciar outro combate,
Dom Roderico para o norte viajou,
numa esperança que seu destino abate...

O ALMIRANTE DOM FUAS VII

Ficou o monge por ali até morrer,
sem pelos mouros ser nunca perturbado,
até da Reconquista o transcorrer,
quando o santuário novamente foi achado.
Tem vinte e cinco centímetros a imagem,
Nossa Senhora a mostrar negra visagem,
seu seio exposto para aleitar Jesus;
sobre um pequeno banco está sentada,
jamais vergonha existindo em seios nus
quando criança está sendo amamentada.

Por pastores era há tempos conhecida:
Nossa Senhora Negra era chamada...
Em Mil Trezentos e Setenta e Sete tal guarida
por El-Rey Dom Fernando foi honrada:
dez anos antes seu reinado começara,
indo até Oitenta e Três; e erguer mandara
a atual igreja, que então foi consagrada
como o Sítio de Nossa Senhora de Nazaré
e a tal santuário foi a imagem transportada
e conservada até hoje, em plena fé.

Durante a época dos Descobrimentos,
vinham ali rezar sempre os marinheiros
e da presença atestam documentos
dos mais famosos de tais aventureiros:
Gil Eannes esteve ali, o descobridor
daquele estranho Cabo Bojador,
junto do qual a costa africana se desvia,
que então pensou que até a Ásia conduzisse;
Vasco da Gama visitou-a, quando ia
ao grande périplo e a Virgem ali o bendisse.

Também o nosso Pedro Álvares Cabral
foi acender ali um círio ou vela,
que em sua viagem não sofresse qualquer mal,
que o Brasil para a Coroa assim revela;
já com outro nome era a imagem referida,
Nossa Senhora de Nazaré, sendo acolhida,
até que em Fátima, muitos séculos depois,
noutro santuário, fosse a Virgem recebida;
este alcançou fama maior dos dois,
mas sem que a Nazaré fosse esquecida.

O ALMIRANTE DOM FUAS VIII

Muitas réplicas da estatuazinha se fizeram;
na maior parte, por pura hipocrisia,
ao seio de Maria mutilaram:
pobre Jesus!... que assim fome passaria!
E esse famoso Círio de Nazaré,
de Belém do Pará réplica é...
Hoje em dia, a estatueta traz um manto,
quase sempre negro ou azul, que lhe recobre;
Jesus Menino no seu colo santo,
a Negra Virgem com expressão bem nobre.

Mas onde está a tal ação miraculosa?
No dia Quatorze de Setembro, de manhã,
de Mil Cento e Oitenta e Dois, a luz radiosa
foi escondida por certa névoa vã...
Dom Fuas Roupinho caçava com amigos,
mas temendo da falésia os seus perigos,
seus companheiros ficaram para trás,
porém Dom Fuas gordo veado perseguia
e sem caçá-lo não se satisfaz,
seguindo empós qualquer ponto a que fugia...

Ora, esse Monte de São Bartolomeu
formava um promontório até o Oceano
e o marinheiro muita vez o percorreu
e para sua caçada armou um plano:
ao animal pensou encurralar
na faixa estreita que conduzia ao mar,
acreditando que sua presa voltaria,
ao perceber que não tinha escapatória;
e que destarte, finalmente, a caçaria:
era alimento, muito mais que uma vitória!

O veado, porém, não retornava
e a caçada prosseguiu, bem impetuosa;
do precipício já se aproximava
a sua montada, por demais fogosa,
sem que essa arrancada interrompesse!...
Temeu Dom Fuas que ali já se perdesse
e recordando sua já antiga devoção,
gritou: “Valei-me aqui, Nossa Senhora!”
O seu cavalo então parou de sopetão;
lançou-se ao mar o veado e foi-se embora!

O ALMIRANTE DOM FUAS IX

E de permeio aos recifes ardilosos,
seguiu nadando até praia distante;
cedeu a névoa nos momentos mais preciosos:
viu-se o quadrúpede a nadar do mar avante!
Mas por saber que bem perto estava a gruta,
já Dom Fuas imaginou nova labuta
e desmontou depressa do cavalo,
pensando agradecer à boa Senhora,
fazendo um voto... e para conservá-lo,
trouxe a seguir alguns pedreiros, sem demora.

Ergueu-se assim a Ermida da Memória,
nesse local em que vivera Frei Romano;
e segundo prossegue a mesma história,
sob o singelo altar, envolto em pano,
achou-se um cofre.  Pensando ser tesouro,
buscou-se o brilho de moedas d’ouro;
mas no interior somente ossos havia:
dois esqueletos enrolados com cuidado.
Seria Frei Romano, que estaria,
sob o altar há tanto tempo preservado?

E nesse caso, de quem o outro esqueleto?
Chamou-se o padre capelão de Leiria,
que viu na tampa qualquer sinal secreto,
que bem diversa interpretação lhe permitia:
eram os ossos de São Bartolomeu!
E os de São Brás, que o bom monge recolheu,
então guardados de São Gião na igreja,
julgando ali melhor os preservar;
seu esqueleto ali portanto não se enseja:
alguns pastores levaram-no a enterrar...

Assim a Ermida da Memória os conservou,
santas relíquias dos mouros preservadas
e nela a imagem novamente entronizou,
por muita gente sendo sempre veneradas.
No Bico do Milagre ainda apresentam
os moradores, que aos visitantes tentam
mostrar na pedra o sinal da ferradura
desse corcel, no lugar em que estacou;
e em Setembro o costume ainda perdura
de acender velas no lugar que demarcou.

O ALMIRANTE DOM FUAS X

Logo a seguir, fizeram-se gravuras,
mostrando esse cavalo que estacou,
algumas mesmo até em iluminuras:
só raio de sol que o nevoeiro dissipou;
mas a partir do século Dezessete,
uma nova imageria se intromete:
o próprio vulto de Nossa Senhora,
sempre trazendo o seu bebê ao colo,
levita acima e à frente nessa hora,
para manter o cavaleiro sobre o solo.

É uma dessas a nossa ilustração,
um belo quadro de autor desconhecido,
no qual um raio de real cintilação
ao cavaleiro salvou de ter morrido
a alguns passos apenas desse oceano
em que teria falecido, sem engano.
De Frei Bernardo de Britto a narração
conclui aqui, mas prossegue em sua memória,
contando os fatos realizados pela mão
do cavaleiro e almirante, em pura glória.

Porém a lenda que se narra em Portugal
contém ainda prodigiosos pormenores;
já antes disso, em devoção bem natural,
Dom Fuas determinara a escultores
que lhe fizessem uma réplica da imagem
e a transportava para qualquer paragem;
e quando a pia vela lhe acendia, (*)
demonstrava a sua armada grão valor,
constantemente a derrotar a mouraria:
era a Virgem de Nazaré mostrando amor!...
(*) Piedosa, reverente.

Porém na triste batalha por Sevilha,
teria sido Dom Fuas aprisionado;
um Comandante Abdul a imagem pilha
e com rancor a teria desprezado,
pretendendo lançá-la para o mar,
Dom Fuas em insistência a suplicar
que preservasse a sua imagem santa...
“Sois cães idólatras, vós, os Nazarenos!
A própria Bíblia de vocês lhes canta
não crer ídolos, sejam grandes ou pequenos!”

O ALMIRANTE DOM FUAS XI

Porém Dom Fuas suplicou com devoção
e esse Abdul pô-lo à prova decidiu:
“É só um Deus que nos governa, vil cristão:
Alá é grande e a sua flotilha destruiu!
Não adoramos a qualquer mulher
e repudiamos a um ídolo qualquer!...”
Mas como lhe suplicasse o marinheiro,
disse Abdul, com o máximo desdém:
“Então a jogue ao mar você primeiro!
Prove que adora a um só Deus também!...”

E então grave dilema apresentou:
“Capturei seus vinte e dois navios,
Mas com bravura percebo que lutou;
serão escravos seus marujos tão bravios,
porém sua própria nave eu vou livrar:
sua tripulação e a você vou libertar...”
Dom Fuas agradeceu a sua bondade.
Riu-se Abdul: “Mas há uma condição:
jogue no mar essa figura de maldade,
que não merece a sua heroica devoção!”

“Mas meu senhor, tal coisa eu não farei!...”
“Bem, nesse caso, no fogo a vou queimar;
a sua galera agora incendiarei,
porém primeiro irei nela o acorrentar!...”
“Estou disposto a dar por ela a vida,”
disse Dom Fuas, “que é santa e mui querida!”
Mas novamente zombou dele esse Abdul:
“Seus marinheiros também vou acorrentar!
Jogue seu ídolo para o mar azul,
caso contrário a vós todos vou queimar!”

“A escolha é sua.  Mas se concordar,
libertarei a você e à tripulação
e poderão para suas casas retornar.
Decida agora, sem mais hesitação!”
E envolvido nesse atroz dilema
deixou-se Fuas convencer.  Com muita pena,
beijou a imagem que depois no mar lançou.
Disse Abdul: “A minha palavra cumprirei.”
E a essa única galera libertou,
com que Dom Fuas retornou para seu rei.

O ALMIRANTE DOM FUAS XII

No coração, porém, trazia a vingança;
e conseguindo reunir pequena fila
de novos barcos, retornou com esperança,
chegando à aldeia de Serra de Abila,
que incendiou, pensando o mal lavar
e a proteção da Virgem recobrar;
mas não trazia a imagem mais consigo
e Abdul retornou, com grande armada...
Dom Fuas pereceu ante o inimigo,
sua coragem já não valendo de mais nada!

A santa imagem pelas ondas foi levada,
duzentos anos pelas vagas revolvida,
quem sabe aquela que no Brasil foi encontrada,
hoje chamada de Senhora Aparecida!...
O mesmo manto de um azul triangular,
com negras faces ainda a rebrilhar...
Talvez se diga que tal santa padroeira
não traz ao colo mais esse menino;
alguma réplica diferente da primeira...
Mas alguma sobre o mar achou destino!

E por que essa imagem encontrada
pelos jesuítas nas praias do Brasil
não teria sido por eles enfeitada,
sendo adornada com tal manto de anil?
Será verdade que em Palestina se criava
essa imagem que a Jesus amamentava?
Naturalmente, nunca foi submetida
a algum exame de laboratório,
sua antiguidade comprovada por tal lida,
após exame de caráter ostensório...

Mas certamente terá bem mais de mil anos,
já sendo antiga no tempo de Dom Fuas,
de mão em mão passando, sem enganos,
até alcançar as espanholas ruas...
Que São José, um exímio marceneiro,
movido por ardor e amor inteiro,
a tivesse esculpido, é até possível.
Mas por que São Lucas a teria pintado?
Já me parece ser coisa menos crível,
sendo ele por São Paulo doutrinado. 

EPÍLOGO

Entre os judeus, qualquer imagem esculpida
seria na época totalmente condenada;
mas nesse ardor de seu final de vida
talvez fosse a ordenança então quebrada
por São José, o pai postiço e protetor,
pelo nenê e por sua mãe mostrando amor...
Até hoje está a imagem no santuário,
talvez de ébano, sem ter sido pintada;
mas até termos provas em contrário,
em Portugal será sempre venerada!...

Não é de se supor que algum dia se permita raspar um pedacinho da imagem original de Nossa Senhora de Nazaré a fim de submetê-lo a um exame de Carbono Quatorze para determinar-lhe a idade.  É bastante provável que tenha mesmo estado no mosteiro de Cauliniana perto de Mérida, na Espanha, antes de ter sido levada para as terras que hoje são de Portugal. Mas mesmo que algum teste científico não destrutivo comprove que tenha dois mil anos, nada garante ser manufatura de São José, embora este a possa ter esculpido durante sua estadia no Egito, em que as imagens não eram em absoluto desprezadas ou que a tivesse deixado lá ao retornar para Nazaré.  O que é incompreensível é que São Lucas tivesse pintado de preto os rostos e as mãos.

Dom Fuas é um personagem totalmente histórico, embora os pormenores dessa lenda possam ser contestados; se fosse em outra época, ele poderia ter sido protegido por alguma fada.  A caça ao veado é um tema recorrente em contos populares; e que não se pense em chocarrice: o veado sempre foi um símbolo de masculinidade que se encontra mesmo nos escudos heráldicos de muitas das famílias nobres europeias, equiparado à águia, ao leão e ao unicórnio. 

Somente no Brasil é que se criou a lenda de seu homossexualismo, iniciada por Cassandra Rios em seu romance, Georgette.  Ela misturou o termo “corno”, indicando “marido enganado” com o francês “biche”, ou “corça”, a fêmea do veado, aplicado na França aos homossexuais, de que deriva nosso apodo, “bicha”. Nisto não há nada de admirar, considerando que se referia a “olhinhos corriqueiros”, para indicar que se achavam “em constante movimento” e não que fossem de aspecto comum.  Fora destes cochilos, foi uma excelente escritora.

Sendo um animal de grande porte e vulto nobre, o veado constituía caça exclusiva da nobreza, de cujas refeições fazia parte pelo sabor de sua carne e mesmo pela escassez de alimento durante a Idade Média.  Era totalmente proibida sua caça aos plebeus, punida pelo enforcamento. 

Quanto aos ossos de São Bartolomeu se encontrarem no santuário, não existe a menor garantia.  Outra versão diz que esse apóstolo foi morto na Índia por um golpe de lança. Não há comprovação histórica do lugar do falecimento de qualquer dos apóstolos.  O Livro dos Atos indica claramente que São Paulo esteve preso em Roma, mas não menciona São Pedro, que era mesmo seu rival. 

São João estaria vivo até hoje, dormindo em uma gruta em Éfeso, na atual Turquia, esperando a Segunda Vinda. Os locais mostram um orifício na rocha do qual se escutaria a sua respiração...  Já São Tiago o Maior estaria enterrado em Compostela...  Mas todas essas lendas são sujeitas a muitas contradições, tais como o túmulo da Virgem Maria, mostrado em uma dezena de lugares diferentes, até ser proclamado o dogma da Assunção.  Tampouco há historicidade na lenda de que São Pedro foi crucificado de cabeça para baixo e Santo André em uma cruz no formato de um xis. 

O único fato registrado foi o apedrejamento do Diácono Santo Estêvão, em Jerusalém, de cujo suplício São Paulo foi testemunha, “segurando as vestes dos que o apedrejavam”.  A tradição diz que São Paulo foi decapitado em Roma, por ser cidadão romano, mas tampouco isso consta da Bíblia, apenas sua prisão em Roma durante muitos anos, de onde escreveu as suas Epístolas.  Mas o povo necessita de maravilhas e com a proibição dos contos de fadas, a Igreja criou a hagiologia (história das vidas dos santos), boa parte da qual foi desmentida por Sua Santidade João XXIII, o Papa do Ecumenismo.   E quem nos diz que a tradição não conserva fatos que realmente ocorreram?  Apenas nos falta a sua comprovação histórica ou científica. 

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com


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