terça-feira, 22 de novembro de 2016





CINCO CONTOS SÍRIOS
Baseados em contos de Maria Helena Deibler Mansur.
Versão poética  William Lagos, 24-28 out 2016

AMOR NO LÍBANO ... ... ... 24 OUT 16
OS GATOS DO VIZIR ... ... ... 25 OUT 16
A DANÇARINA ... ... ... 26 OUT 16
A PRINCESINHA RENGA ... ... 27 OUT 16
O CÃO HABIB ... ... ... 28 OUT 16

(Aammiq, Vale do Beka'a)

AMOR NO LÍBANO I – 24 OUT 16

No vale do Beka’a, que o Líbano atravessa,
desce um pequeno regato ao grande rio,
no qual a religião tem grande brio,
cada qual firme naquela que confessa.

Tempos existem de rivalidade espessa,
em outros sangue corre bem mais frio,
sem que dois homens se observem em arrepio
a cada vez que na estrada o outro apareça.

Quase sempre a depender do governante,
pois alguns determinam a tolerância
a medir entre Cristãos e Muçulmanos;

mas às vezes, na faísca de um instante,
por inveja, talvez... ou por ganância,
rompe uma guerra com traços desumanos!

Por isso foram numerosos os Cristãos
que emigraram para a terra americana,
sob o temor de uma espada muçulmana,
quando suas vidas perceberam em suas mãos.

Mas no relato das presentes situações
era a França a potência soberana,
que a igualdade defende e que proclama
onde quer que dominem suas legiões.

Mesmo assim, ainda reinava desconfiança
entre as famílias que seguiam o Alcorão
e aquelas a quem a Bíblia ainda alcança.

E deste modo, numa das margens do regato
um pequeno povoado era cristão
e na oposta, do Islam era o recato. 

A família de Abu Sami muçulmana
criava ovelhas, seus dois filhos pastores;
porém Samir, de ocidentais pendores,
estudava em Beirute a lei romana,

para formar-se no direito que proclama
a igualdade entre servos e senhores,
acreditando necessitassem defensores
fora da Shariya de violenta chama.

Durante as férias à aldeia retornava
e com frequência junto ao regato ia estudar,
naquela paz que a paragem dominava.

Mas de Jamil Ayala ali morava
do outro lado a família, a conservar
a religião cristã que professava...

Ora, estes eram mais viticultores,
possuindo igualmente cem figueiras;
tinham pêssegos, maçãs e até roseiras,
mil abelhas a revoar em esplendores...

Yasmini, filha dos bons agricultores,
mais bela que as estrelas mais fagueiras,
do entardecer nas horas derradeiras,
ao regato ia lavar roupas, sem temores.

Mas quando via sentado ali Samir,
sempre fingia nem sequer o perceber,
mantendo este um idêntico fingir:

ela nas roupas conservando o seu olhar,
ele seus livros de Direito a ler,
sem a menor intenção de namorar...

AMOR NO LÍBANO II

Mas certo dia, já que Allah Kebir!
“Deus é grande!” para as duas religiões,
senhor e mestre de todas as paixões,
no destino destes dois quis intervir...

De suas leituras se espantou Samir,
a hesitar em suas antigas opiniões,
forçado a inesperadas decisões,
quando gritos de Yasmini pôde ouvir!...

Cruzou o regato, achando necessário
a jovem defender de algum perigo,
mas ela disse: “Uma abelha me picou...”

Ruborizada do proceder tão vário,
a si chamando a atenção de um inimigo,
rapidamente assim se desculpou!...

Ele arrancou, sem a menor hesitação,
o ferrão que provocara o acidente
e num ato vingativo e surpreendente
matou a abelha a estrebuchar no chão!

Não se atreveu a segurar-lhe a mão,
no que seria então ato indecente,
mas os dois se descobriram, de repente,
a conversar, sem recordar proibição...

Cada um ao outro já a explicar
que ali se achavam por pura coincidência,
que nunca antes pretendiam se falar,

sem sua conversa nunca terminar,
as palavras a brotar com impaciência,
bem diversa intenção a demonstrar...

Em um namoro nem se podia pensar,
mas continuaram a se ver nesse verão...
Maktub!  Estava escrita essa paixão:
quase impossível que pudessem se casar...

Mas os irmãos de Samir foram notar
e logo ao pai denunciaram a infração;
Abu Sami pretendeu reprovação,
mas Samir seu grande amor foi confessar...

Depois de toda a família concordar,
foi Abu contatar Jamil Ayala,
buscando assim resolver a situação;

que há muitos anos se sabiam respeitar,
café tomando em sua modesta sala,
até pedir-lhe de Yasmini a mão...

E sendo época de tranquilidade,
até os dois sacerdotes se acertaram
e um duplo casamento celebraram,
com festejos na maior cordialidade.

A carne trouxe Abu Sami em saciedade
e os Ayala mel e frutas aportaram;
suco de uva os Islamitas só tomaram,
vinho os Cristãos a beber com liberdade.

Mas houve quem reprovasse o casamento:
que religião seguiriam as crianças?
A conversão considerada coisa vil...

E lhes deram, afinal, consentimento
e o casal, na maior das esperanças,
alegremente embarcou para o Brasil!...

OS GATOS DO VIZIR I – 25 out 2016

Elias Ibn-Yussef era o vizir
do Sultão de Khazar por muitos anos;
sempre fiel, sem cometer enganos
muito constante e leal no seu cumprir.

Porém a inveja sempre há de surgir
entre aqueles que rodeiam soberanos,
crescendo mesmo entre maus Muçulmanos
que no alto posto o queriam substituir.

O Sultão não dava ouvidos às intrigas,
mas em batalha, após ser derrotado,
numa emboscada de tropas inimigas,

acabou por nessa trama acreditar,
de que o Vizir teria conspirado
para o trajeto de suas tropas revelar!...

Porém Elias sempre o servira fielmente
e ante a veemência de sua negação
não o submeteu ao castigo da traição
e em benefício da dúvida, foi leniente.

Foi demitido, porém, nesse incidente
e retirou-se para uma região
em que herdara dos pais velha mansão,
a que cercava uma aldeia decadente...

Conformado, dedicou-se à criação,
a um pomar e a alguma agricultura,
dando emprego a pequena multidão.

Seus inimigos, contudo, ainda o temiam
e na maldade de sua alma impura,
salteadores contra ele conduziam!...

Deste modo, no tempo da colheita,
durante a noite chegavam salteadores,
trigo ceifavam e colhiam os pendores
dos frutos do pomar em cada feita!...

Ou do redil em que o rebanho ajeita
as ovelhas carregavam os malfeitores,
espancando sem pena seus pastores,
matando a cabra que o filhotinho aleita!...

E desta forma, o Vizir era obrigado
a gastar os dinares que ainda tinha
numa arca que seus pais haviam deixado,

alimentando cada servo e apaniguado
nessa pequena aldeia ali vizinha,
os alimentos a comprar noutro mercado...

Porém depressa suas reservas se acabavam;
dinheiro gasto bem depressa some
e até o bom velho começou a passar fome,
junto aos criados que ainda o acompanhavam!

Mas a certa distância então moravam,
em um mosteiro de que não sei o nome,
algumas freiras a quem a piedade tome
a recolher quantos gatos encontravam...

Ou talvez fosse uma fada disfarçada,
que à mansão chegou com uma cestinha,
com meia dúzia de gatos em ninhada...

O porteiro não os queria receber:
pouco alimento a despensa ainda continha...
mas a mulher viu nos ares se perder!

OS GATOS DO VIZIR II

Ficou o porteiro em seu deslumbramento,
a procurá-la pelo jardim e no pomar,
a tal cestinha de gatos sem cuidar,
que logo entraram, sem maior impedimento...

Para si mesmos caçavam o alimento,
muitos ratos e insetos a buscar,
que a despensa costumavam assaltar
e mais escasso tornavam o sustento...

E Elias Ibn-Yussef se afeiçoou
àquele bando de pequenos animais,
aos quais espantar ninguém deixou,

a percorrerem sua casa livremente,
as hortas, os pomares e os quintais,
tal qual se fossem seus donos, realmente...

Ora, ocorreu que a época chegou
de colher trigo e cevada que brotava,
as hortaliças que o quintal alimentava,
madura a fruta que em cada árvore brotou.

Logo em aldeias vizinhas se falou
ser ocasião de roubar quanto se achava,
sem pena ter de quem ali morava,
aos quais a fome por anos dominou...

E quando à noite chegaram os bandidos
viram luzes rebrilhando no quintal
e por Agar se julgaram perseguidos!...

Um mau espírito que por ali temiam
(mas eram os olhos dos gatos, afinal)
e bem depressa os ladrões dali fugiam”

E assim foram espalhar pelas aldeias
que alguns effrites protegiam o lugar, (*)
chispas de luz brotadas do luar
quase sendo capturados em suas teias!
(*) Gênios maléficos que se opõem aos djinns, mais favoráveis.

Seria o castigo por ações tão feias,
a pobre gente do povoado a espoliar,
querendo o velho Vizir prejudicar,
mais escassas a tornar suas magras ceias...

E doravante, ninguém mais assaltou
e o pobre povo da aldeia prosperou
e até as reservas do Vizir se refaziam...

Ele até mesmo melhorou do reumatismo,
que as suas pernas aqueciam, sem egoísmo,
aqueles gatos que em seu leito então dormiam”

Eventualmente, ao Sultão se demonstrou
quem eram, realmente, os seus traidores,
que mandou executar por maus pendores
e o bom Vizir em seu cargo restaurou...

Alguns gatos à capital ele levou,
por muitos anos a lhe aquecer os cobertores
e a conservá-lo livre de suas dores:
por longo tempo ainda ao Sultão aconselhou.

Porém na aldeia até hoje existem gatos,
que tratam todos com prazer e amizade,
não apenas pela caça de seus ratos,

mas porque os maus espíritos espantam,
em cada lar a trazer prosperidade
e sendo belos, porque todos ainda encantam...

A DANÇARINA I – 26 OUT 2016-11-21

Esta história transcorreu em Samaria,
na Cisjordânia atual localizada,
em que Kasbah era dançarina procurada
para todos os eventos que lá havia.

Ela espalhava nos cafés a sua magia
e até na praça central movimentada;
ante o palácio do Sultão era avistada
e junto ao mar e à beira-rio seguia...

Mas embora sendo assim tão requestada
sempre Kasbah preservara sua pureza,
por seu pai e seus irmãos acompanhada.

Ao invés de véu usava os seus cabelos,
trançados com cuidado, na esperteza
de apenas revelar seus olhos belos...

Com jodhpurs as suas pernas protegidas, (*)
blusa bordada a lhe ocultar o peito,
mostrando apenas a cintura sem defeito,
em sandálias os seus pés tendo guaridas...
(*) Espécie de bombacha de seda transparente.

E recolhiam as mil moedas concedidas
os seus irmãos, em bem treinado jeito,
enquanto o pai a vigiava, ao brando leito
dos narguilés em suas nuvens aquecidas...

E na cidade todos respeitavam
a sua habilidade e extrema graça
e nenhum mal jamais dela suspeitavam,

mas com seus passos todos se encantavam
a protegê-la de algum mal que ali perpassa:
de ninguém era – e todos a louvavam!...

Ora, um dia disfarçou-se o soberano,
que se encantou por tal graça também
e quis comprá-la para o seu harém,
porém seu pai não atendeu a seu reclamo.

“Minha filha é virgem, poderoso amo;
um casto voto ela assumiu, porém,
que buscaria a todos dar o bem
de seu talento, no mais gentil afano...”

“Mas não seria de ninguém, até que Alá
de seu marido o nome então falasse;
e sua pureza até então conservará,

“embora exposta a todos sua beleza,
sem lamentar que desejo despertasse
desde o mendigo até a maior nobreza...”

Nem quando o rei se deu a conhecer
concordaram com sua venda os familiares;
e o povo inteiro, em todos os lugares,
ergueu-se em breve para a defender...

Então o Sultão limitou-se a requerer
que na sua corte seus dotes invulgares
também tivessem seus apresentares,
ali a família igualmente a proteger...

A dançarina assim se apresentava,
uma vez por semana, sem deixar
os demais pontos em que se revelava;

e ao final de cada dança, conversava
com o Sultão, em elegante linguajar
e deste modo ainda mais o encantava!...

A DANÇARINA II

Mas a esposa do soberano observava
conversa e dança, por detrás dos reposteiros,
os seus ciúmes crescendo bem ligeiros,
pois o interesse do Sultão bem suspeitava!

Logo Sulema com o Vizir confabulava,
malvados planos a conceber certeiros,
temendo este se tornassem conselheiros
os seus irmãos ou o pai que a acompanhava.

E deste modo, disfarçadamente,
tomou um anel que pertencia à rainha
e o escondeu nas roupas que, frequente,

Kasbah deixava, descuidadamente,
porque nas ruas grande recato tinha,
quando evitava se mostrar a toda a gente...

Então Sulema, a chorar, se apresentou.
para dizer que haviam roubado tal anel
e que Kasbah se mostrara em ouropel
quando a seu próprio salão a convidou;

a sua roupagem então se revistou;
mostrou o Vizir, a sorrir qual cascavel,
a joia achada na burkha cor de mel (*)
que na salinha do lado se encontrou...
(*) Trajo feminino, que só deixa à mostra os olhos.

Que mais fazer poderia esse Sultão?
Apesar de seus protestos de inocência,
mandou prender Kasbah e seus parentes,

mas sem mandar aplicar a punição
que a Sharyia determinava sem leniência, (*)
por grande pena sentir no coração...
(*) Lei islâmica, com castigos bem cruéis.

Mas a Sultana insistia em tal castigo,
mesmo a joia lhe tendo sido devolvida;
e o Vizir, com veemência desmedida,
queria à letra da Lei dar pleno abrigo!...

Pôs-se o Sultão a meditar consigo
que alguma trama ali fora concebida
e muito em breve testemunha foi ouvida
que denunciou tal maldade de inimigo!

E quando o mau Vizir foi denunciado
de cuja corrupção já suspeitava,
sumariamente ele foi decapitado;

porém Sulema, apesar de seu pecado,
agora o rei simplesmente repudiava,
o seu divórcio prontamente decretado!

Mandou o rei libertar de sua prisão
a dançarina e todos os seus parentes,
como desculpa, magníficos presentes,
logo pedindo que seu pai lhe desse a mão.

Kasbah lhe concedeu o seu perdão,
indo à mesquita agradecer nesse entrementes,
aos céus erguendo preces consistentes
para que Alá lhe concedesse a permissão...

E desse modo, realizou-se o casamento,
suntuosa a pompa da festividade,
mostrando a noiva o seu merecimento,

embora muitos ficassem a lamentar,
pelos cafés e praças da cidade,
que nunca mais a pudessem ver dançar!

A PRINCESINHA RENGA I – 27 OUT 16

Em um lugar onde hoje é o Paquistão,
localizava-se o Reino de Samira;
entre as mãos do Rei Namir a sorte gira,
sendo “rajá” o seu título na ocasião.

A Fahid amava com todo o coração,
a linda esposa que sua vista mira,
pelos cantores louvada com sua lira,
por formosura e por gentil educação...

Em pouco tempo, Fahid engravidou
e logo teve uma bonita garotinha,
que recebeu todo o amor do bom rajá.

Alguns meninos depois ele gerou,
que trouxe à luz também a sua rainha,
a sucessão garantida desde já...

Era Soraya o nome da menina,
muito linda crescendo e bem saudável,
até surpresa causar desagradável,
seu pé direito encolhido, triste sina!

Do calcanhar não se assentava a quina
sobre o solo e assim foi inevitável
fazer calçados para aliviar-lhe o passo instável,
disfarçado por jodhpur de seda fina...

Mas as sandálias apenas disfarçavam
e de “Princesa Renga” a apelidavam
essas más línguas que se acha em toda parte,

indicando que seus passos manquejavam
e pelas costas do rajá dela troçavam
as invejosas, na maldade de sua arte!...

O rajá e a rani, ocultamente,
choravam em razão de tal defeito,
o matrimônio futuro assim sujeito
à zombaria atroz de muita gente!...

E tendo medo que caísse, era frequente
que aonde fosse o seu caminho feito,
uma aia a acompanhasse e, junto ao peito,
a segurasse, antes do tombo consequente...

De fato, assim nunca sofreu queda,
devido a tal constante proteção
e seus irmãos igualmente a acompanhavam;

era gentil, querida e muito leda,
apesar de sofrer desse senão
e mesmo os maus por ela lamentavam...

Mas que fazer?  Seu apelido continuou
de “Princesinha Renga”, mesmo sem maldade,
muitos dizendo com certa caridade,
devido à marca que Sheitan nela deixou. (*)
(*) Satanás.

E muita gente do povo até rezou
para que Alá lhe mostrasse sua bondade,
Namir um bom soberano, na verdade,
Certamente não foi Deus que o castigou!

Porém devia haver algum motivo!
diziam outros, em razão para o castigo,
sendo o rajá um tão ardente muçulmano

e procuraram nos avós algum esquivo
crime esquecido, qualquer pecado antigo
que lhe houvesse provocado o feio dano!

A PRINCESINHA RENGA II

O período chegou, eventualmente,
em que Soraya se deveria casar.
Embaixadores mandaram a demandar,
entre os reinos vizinhos, um pretendente.

Mas Samira, embora fosse independente,
era um pequeno reino, pouco a dar
como dote da princesa, sem nem significar
uma aliança poderosa a outro regente...

E a notícia há quinze anos se espalhara...
Alguns temiam ser a falha hereditária,
outros diziam que o diabo a havia marcado

e nenhum príncipe se prontificara
a casar com a princesinha solitária,
já seu tempo normal tendo passado...

Foi sugerido um torneio realizar,
acompanhado por vistosa feira,
seria a cerimônia derradeira
dos cavalos do rei o leiloar...

E nessa espera, viram-se travar
vários combates, com armas de madeira,
muitas corridas por bem longa esteira,
mais outras provas de valor a demonstrar.

Vieram xeques, príncipes e emires,
além de numerosos comerciantes,
com centenas de hábeis cameleiros,

participando dos faustosos reluzires
e dos banquetes com seus pratos elegantes,
ricos prêmios para os melhores cavaleiros..

Entre os príncipes destacou-se o bom Munir,
único herdeiro do poderoso Emir de Addar,
nas provas todas em constante destacar,
muitos dos prêmios podendo assim reunir.

Mas no momento em que vira reluzir
os olhos de Soraya, de um fulgor sem par,
perdidamente ele se veio a apaixonar,
logo pensando em sua bela mão pedir...

E cada prêmio que granjeava em cada luta
ao camarote real ele levava,
para depô-lo aos pés da princesinha...

E chegada a conclusão dessa disputa,
ao Rei Namir uma audiência demandava
e nela a mão de Soraya pedir vinha...

Porém o rei lhe indagou: “Não escutaste
que a princesa possui triste defeito
em um dos pés e caminha de mau jeito...?”
“Já me falaram sobre isso o quanto baste.”

“Mas ela é linda e o corpo tem bem feito,
Que tal pequena falha não me afaste...”
O dote e a festa causaram bom desgaste
no tesouro do rei, qual de direito...

Mas no momento em que ela subiu
no seu camelo, feia queda então sofreu
e seu pé manco bateu firme no chão!...

O seu tendão defeituoso se partiu
e nunca mais mancar lhe aconteceu,
prova que Alá abençoara a santa união!...

O CÃO HABIB I – 28 OUT 2016

É a Síria uma terra muito antiga,
provável berço da civilização;
dali partiu o rebanho de Abraão,
buscando o pasto que melhor consiga

em Canaan, sendo o nome que então liga
sua terra-alvo como inicial designação,
que lhe aplicara em sua primeira povoação
aquela gente que por ali se abriga.

Provavelmente, foi na Síria que Noé,
por vez primeira, se estabeleceu,
após descer dos montes de Ararat,

altar erguendo, como prova de sua fé
no Deus que do dilúvio o defendeu,
de cujo culto jamais se apartará!...

Na Síria ergue-se de Homs a cidade,
bem perto de Damasco, a capital,
nela abundante de trigo o cabedal,
havendo ovelhas e galinhas à vontade!...

Sem grande luxo, mas com prosperidade
vivia o povo, sem sofrer o árido mal
dos desertos de pedra ou vasto areal
que se estendem bem perto, na verdade.

Mas quando a neve chegava, em cada inverno,
com seu manto de limpeza e de brancura,
o povo em casa então se recolhia,

a partilhar, com bom humor fraterno,
de suas despensas a graça da fartura,
nos longos meses em que a terra inteira esfria.

Contudo, pelas faldas da montanha,
de cães selvagens formava-se alcateia,
durante o inverno reunida em assembleia,
quando, sem caça, sua fome era tamanha

que à cidade então desciam, com tal sanha
que as galinhas caçavam em sua teia
e nos currais, para carnificina feia,
abriam passagem, com astuciosa manha...

Eram cães grandes, branca sua pelagem,
que com lobos até se assemelhavam
e outros bandos a mostrar pelos vermelhos,

cujos focinhos recordavam a visagem
de raposas... mas não se acasalavam...
Só nos ataques reunindo-se parelhos...

Eles latiam, uivavam e rosnavam...
E como eram de fato numerosos,
aos cães domésticos deixavam temerosos
e mesmo os homens deles se esquivavam.

Qualquer criança em casa resguardavam;
as portas e janelas, cuidadosos,
trancavam bem; somente os corajosos
pastores a tais feras enfrentavam,

armados com cajados e pedradas,
que lançavam com grande precisão.,
para abater alguns dos animais,

que preferiam as capoeiras mal fechadas,
as aves devorando sem perdão,
matando os cães que defendiam seus quintais.

O CÃO HABIB II

Somente quando a luz da manhã os espantava,
ou se sua fome fora inteira satisfeita,
saía a gente para as ruas, contrafeita
e os numerosos prejuízos calculava...

Se algum ferido o seu bando abandonava,
era morto a pauladas, numa estreita
vingança...  Porém de certa feita,
um filhotinho num pátio se encontrava...

Bem esquelético estava o cachorrinho,
ganindo fraco, por ter fome e frio.
O Pai da casa o levantou, devagarinho...

Mostrou-lhe os dentes, sem poder morder...
Acharam graça ao ver mostrar seu brio,
porém a Mãe não o queria recolher...

Mas a menina Mariam tanto pediu
que sua Mãe, finalmente, concordou
e com leite de ovelha o alimentou,
até que, enfim, levantar-se conseguiu...

Mas ao tentar caminhar, logo caiu
e Mariam, a seguir, breve notou
que uma patinha alguma coisa machucou,
razão porque deixara-o a mãe quando fugiu...

Mas depois disso, foi tratado com carinho,
dormindo à noite sob um velho cobertor,
encolhido, mas da lareira bem pertinho!...

depois, mostrou-se bastante agradecido:
ganhou de Habib o nome encantador,
que significa, em árabe, “meu querido”!

Cresceu Habib com saúde e fez-se forte,
em tudo demonstrando ser amigo,
bem disposto a defendê-los do perigo,
mesmo não sendo ainda de bom porte.

Chegou então outro inverno.  E quis a sorte
que os cães brancos deixassem seu abrigo,
os cães vermelhos a conduzir consigo,
em grandes números, fugindo à fome e à morte.

E embora alguns dos homens enfrentassem,
o Pai apenas reforçou seu galinheiro,
que sua cerca, desta vez, não derrubassem.

Porém Habib ficou em desassossego
e assim que pôde, se escapou, ligeiro,
antes que alguém pudesse tê-lo pego!...

E bem depressa, correu para a matilha.
Disse Mariam: “Ele quer nos defender!”
Falou o Pai: “Se brigar, irá morrer...”
E segurou bem firmemente a mão da filha.

Contudo os dentes Habib sequer rilha
e uma cadela gigantesca foi lamber
e logo os dois se farejavam a valer:
“É a cadela sua mãe, que já o perfilha!”

“Ele vai nos deixar, minha querida...”
Viram o bando a seu redor observar,
dando a impressão de que mesmo conversavam.

E então a mãe empurrou-o, decidida,
até a soleira da porta...  E a ladrar,
levou consigo os cães que a acompanhavam.

Nenhum deles atacou as suas galinhas,
mas para a praça distante se afastaram:
com Habib talvez pacto firmaram
de somente atacar as ruas vizinhas...

O mais estranho é que as matilhas não voltaram
no inverno seguinte, mesmo sendo bem daninhas
nas demais povoações circunvizinhas...
Talvez porque seus habitantes se juntaram

e os mataram em grande quantidade,
os que sobraram ficando temerosos,
em outra parte a demonstrar suas manhas...

Habib envelheceu, tal qual a humanidade,
mas cada inverno lançando olhares lastimosos,
sempre ganindo para o lado das montanhas...




Nenhum comentário:

Postar um comentário