terça-feira, 1 de novembro de 2016



OUSARES – 17/11/10 (31/8/1979)
Duodecaneto de William Lagos


(A RAY OF LIGHT, ÓLEO DE JOHN SILVER) 

OUSARES I    (31 ago 79)

Foi-me dito achar-me em grão perigo
de tudo por a risco e me perder;
perder quanto já tinha e de não ter
por recompensa um grão sequer de trigo.

Foi-me dito deixar de me arriscar
aos beijos triunfais dessa mulher,
que tanto se negou quanto me quer,
mas que aos perigos faze-me lançar...

Mas o perigo eu trago no meu peito:
não vejo outro castigo que o direito
de nos seus braços mornos mais perigo

eu encontrar, no instante em que me afaste
e a carne mesma ao coração desbaste,
por me furtar do amor ao terno abrigo.

OUSARES II (17 nov 2010)

E talvez eu preferisse até perder
o quanto tenho em temporal jazigo
e ter por recompensa o meu castigo,
e conformar-me com quanto possa ter.

Ou talvez eu preferisse dispender
o quanto venha a ter e quanto abrigo
em meu celeiro de mil hastes de trigo,
safra ciosa de meu pertencer.

Talvez ainda eu preferisse conhecer,
enquanto tenho a colheita resguardada,
qual o tesouro que me compraria,

na avaliação do que pode me valer
a boca nova assim tão cobiçada
e os mornos braços em que me acolheria.

OUSARES III

Qual é, afinal, esse tão grave perigo?
O de mais ter sem perder o que se tem
ou de não ter o que viria e que não vem,
enquanto espero a sentença do castigo?

E qual castigo será assim mais inimigo?
O de perder, nesse incauto vaivém
sem receber, em troca, nenhum bem
ou de ganhar somente o sonho mais amigo?

Pagando por tal sonho todo o trigo
e mastigando a palha da esperança
que faço rebrotar no coração

ou prosseguindo minha trilha do jazigo
pela incerta segurança da abastança,
olhando o sonho a se esfumar em emoção?

OUSARES IV

Um sonho é um sonho, coisa imaterial,
enquanto o trigo é trigo e bem concreto;
amor possuído é igualmente dom dileto,
amor sonhado é sonho espiritual;

trocar amor por um outro pedestal,
nessa esperança de um mais perfeito afeto
é um perigo maior, nada secreto,
amor de sonho mais ou menos imortal.

Porque, no fundo, todo amor se vai,
depois de vivo ser, breve momento,
contudo o sonho da alma não se esvai,

deixando ao menos mancha ao pensamento,
enquanto nalma esvoaça mais não cai
na palma erguida para seu recebimento.

OUSARES V

Melhor então buscar sonho material
nas trilhas cheias de formoso trigo,
braços macios em amoroso abrigo,
que qualquer sonho no sobrenatural...?

Ou é melhor possuir luz de fanal,
qual fantasia de um poema antigo,
catarse amena de um final castigo,
nessa emancipação dita imortal...?

Porque as palavras ora se embaralham,
lançando olhares fúlgidos de esguelha,
sem ter de fato da vida erguido o véu

e em rodopio os sonhos nus se espalham,
tais quais os cílios de cada sobrancelha
que só atrapalham total visão do céu...

OUSARES VI

E quem nos diz se no fundo das pestanas,
se o sentimento penetrar nelas bem fundo,
não se achará ali um fado mais profundo
de rocinantes e de durindanas? (*)
(*) Alusão ao Dom Quixote de Cervantes.

O que é o sonho em tais ditas insanas
senão lampejo e relâmpago iracundo,
por não poder iluminar inteiro o mundo
mas tão somente o ilusório dos humanos?

Toda faísca bem sabe o quanto é breve,
mais breve ainda que orgasmo de um amor,
que reluz violentamente e então se esvai,

embora o sonho seja mesmo até mais leve
e o mundo inteiro dilate em seu calor,
que no recôndito do coração nos cai.

OUSARES VII

Penso que busco realmente é o sonho
esse diamante de fulgor só temporário,
que em duração do fogo é intermediário,
sofisticado, mas inerme e assim bisonho.

Eu quero é o sonho, esse poder medonho,
que me serve qual espada de templário,
derviche de ilusão, turbilhão vário,
estrada rubra em que meus passos ponho.

Eu quero o sonho, artesão e peregrino,
da alma agricultor, sol sedentário,
luz na mais negra treva, escudo e elmo,

água de angústia, ingênuo qual menino,
friso de ouro como sonho de argentário,
centelha baça em Fogo de Santelmo!...

OUSARES VIII

Também amor é fogo-fátuo em pantanal,
que se persegue em ânsia delirante,
que se abraça num momento triunfante,
quando se enterra os pés no lodaçal...

Amor, miragem giratória de um areal,
que se ergue como um manto circundante,
no farfalhar de um vento expectante,
que a face corta como acúleos de espinhal.

Amor é mesmo assim, parece sonho,
mas é um mal concreto enquanto é bem,
na desventura de uma alma sem razão,

que no instante da alegria é mais tristonho,
nessa noção de que se irá também
e quando for, nos levará o coração...

OUSARES IX

Porquanto amor é o perigo mais certeiro:
não há como fugir: cedo ou mais tarde
a língua alheia em nossa boca arde
como um chicote puro e vivo inteiro;

mas a ausência desse amor, na vista argueiro,
arde igualmente, enquanto a lã nos carde,
enquanto o sonho teça e então enfarde,
nessa sua ausência de pranto derradeiro.

Na ausência amor é um perigo intermitente
que até permite a um sonho florescer
no solo fértil e aureolado da ilusão;

em sua presença a ameaça mais premente,
o próprio sonho fazendo-nos esquecer
a simples troco de alguns beijos de paixão.

OUSARES X

Sonho é perigo, contudo, igual que amor,
que o sentimento torna sólido e abrangente,
de emoções um caldeirão efervescente,
mescla de espuma em bolhas de calor

e amor é um sonho de mácula indulgente,
dois arco-íris entrançados de fulgor,
relâmpago a girar em fátuo ardor,
aurora presa na gaiola do presente,

rede de luz que a treva toma e encolhe,
orvalho leve que a alma não nos tolhe,
noite de ébano como estátua congelada,

qual almíscar de alvorada já esboçada,
a solidão que se esmaga como alfombra,
enquanto em nós solidifica a sombra.

OUSARES XI

Amor, sonho, perigo, que trindade!
Coluna de cristal de opacidade,
lágrimas claras no pranto mais escuro,
madrepérola em sua gris leitosidade;

amor, a supernova em jade puro,
a quintessência do solar em obscuro,
pedra de toque de toda a falsidade,
luz imperfeita, reflexo num muro,

sonho, perigo, amor por deusa antiga
que novamente adorada, retribui,
na falta do temor de adoradores,

perigo, amor e sonho, longa intriga,
que me penetra e então plena reflui,
mágica lâmpada de múltiplos pendores.

OUSARES XII

No colo voam para nós as letargias,
vastos vulcões vestidos de arlequins,
trombas d’água revestidas de alevins,
borrascas retorcidas de agonias,

nesse perigo do sonho em mil orgias,
sonhos de amor vestidos de jasmins,
mil tocaias fantasiadas de aladins,
as lantejoulas que na alma perseguias.

Em perigos de estilete e adaga o elmo,
puro amor de cetim e de perfumes,
sonho perdido colorido em gris,

teus amores sete fogos de Santelmo,
teus amores sete traços vagalumes
teus amores sete pétalas de giz...




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