OUSARES – 17/11/10 (31/8/1979)
Duodecaneto de William Lagos
(A RAY OF LIGHT, ÓLEO DE JOHN SILVER)
OUSARES I (31 ago 79)
Foi-me dito achar-me
em grão perigo
de tudo por a risco e
me perder;
perder quanto já tinha
e de não ter
por recompensa um grão
sequer de trigo.
Foi-me dito deixar de
me arriscar
aos beijos triunfais
dessa mulher,
que tanto se negou
quanto me quer,
mas que aos perigos
faze-me lançar...
Mas o perigo eu trago
no meu peito:
não vejo outro castigo
que o direito
de nos seus braços
mornos mais perigo
eu encontrar, no instante
em que me afaste
e a carne mesma ao
coração desbaste,
por me furtar do amor
ao terno abrigo.
OUSARES II (17 nov
2010)
E talvez eu preferisse
até perder
o quanto tenho em
temporal jazigo
e ter por recompensa o
meu castigo,
e conformar-me com quanto
possa ter.
Ou talvez eu
preferisse dispender
o quanto venha a ter e
quanto abrigo
em meu celeiro de mil
hastes de trigo,
safra ciosa de meu
pertencer.
Talvez ainda eu
preferisse conhecer,
enquanto tenho a
colheita resguardada,
qual o tesouro que me
compraria,
na avaliação do que
pode me valer
a boca nova assim tão
cobiçada
e os mornos braços em
que me acolheria.
OUSARES III
Qual é, afinal, esse
tão grave perigo?
O de mais ter sem
perder o que se tem
ou de não ter o que
viria e que não vem,
enquanto espero a
sentença do castigo?
E qual castigo será
assim mais inimigo?
O de perder, nesse
incauto vaivém
sem receber, em troca,
nenhum bem
ou de ganhar somente o
sonho mais amigo?
Pagando por tal sonho
todo o trigo
e mastigando a palha
da esperança
que faço rebrotar no
coração
ou prosseguindo minha
trilha do jazigo
pela incerta segurança
da abastança,
olhando o sonho a se
esfumar em emoção?
OUSARES IV
Um sonho é um sonho,
coisa imaterial,
enquanto o trigo é
trigo e bem concreto;
amor possuído é igualmente
dom dileto,
amor sonhado é sonho
espiritual;
trocar amor por um
outro pedestal,
nessa esperança de um
mais perfeito afeto
é um perigo maior,
nada secreto,
amor de sonho mais ou
menos imortal.
Porque, no fundo, todo
amor se vai,
depois de vivo ser,
breve momento,
contudo o sonho da
alma não se esvai,
deixando ao menos
mancha ao pensamento,
enquanto nalma esvoaça
mais não cai
na palma erguida para
seu recebimento.
OUSARES V
Melhor então buscar
sonho material
nas trilhas cheias de
formoso trigo,
braços macios em
amoroso abrigo,
que qualquer sonho no
sobrenatural...?
Ou é melhor possuir
luz de fanal,
qual fantasia de um
poema antigo,
catarse amena de um
final castigo,
nessa emancipação dita
imortal...?
Porque as palavras ora
se embaralham,
lançando olhares
fúlgidos de esguelha,
sem ter de fato da
vida erguido o véu
e em rodopio os sonhos
nus se espalham,
tais quais os cílios
de cada sobrancelha
que só atrapalham
total visão do céu...
OUSARES VI
E quem nos diz se no
fundo das pestanas,
se o sentimento
penetrar nelas bem fundo,
não se achará ali um
fado mais profundo
de rocinantes e de
durindanas? (*)
(*) Alusão ao Dom
Quixote de Cervantes.
O que é o sonho em
tais ditas insanas
senão lampejo e
relâmpago iracundo,
por não poder iluminar
inteiro o mundo
mas tão somente o
ilusório dos humanos?
Toda faísca bem sabe o
quanto é breve,
mais breve ainda que
orgasmo de um amor,
que reluz
violentamente e então se esvai,
embora o sonho seja
mesmo até mais leve
e o mundo inteiro
dilate em seu calor,
que no recôndito do
coração nos cai.
OUSARES VII
Penso que busco
realmente é o sonho
esse diamante de
fulgor só temporário,
que em duração do fogo
é intermediário,
sofisticado, mas
inerme e assim bisonho.
Eu quero é o sonho,
esse poder medonho,
que me serve qual
espada de templário,
derviche de ilusão,
turbilhão vário,
estrada rubra em que
meus passos ponho.
Eu quero o sonho,
artesão e peregrino,
da alma agricultor,
sol sedentário,
luz na mais negra
treva, escudo e elmo,
água de angústia,
ingênuo qual menino,
friso de ouro como
sonho de argentário,
centelha baça em Fogo
de Santelmo!...
OUSARES VIII
Também amor é
fogo-fátuo em pantanal,
que se persegue em
ânsia delirante,
que se abraça num
momento triunfante,
quando se enterra os
pés no lodaçal...
Amor, miragem
giratória de um areal,
que se ergue como um
manto circundante,
no farfalhar de um
vento expectante,
que a face corta como
acúleos de espinhal.
Amor é mesmo assim,
parece sonho,
mas é um mal concreto
enquanto é bem,
na desventura de uma
alma sem razão,
que no instante da
alegria é mais tristonho,
nessa noção de que se
irá também
e quando for, nos
levará o coração...
OUSARES IX
Porquanto amor é o
perigo mais certeiro:
não há como fugir:
cedo ou mais tarde
a língua alheia em
nossa boca arde
como um chicote puro e
vivo inteiro;
mas a ausência desse
amor, na vista argueiro,
arde igualmente,
enquanto a lã nos carde,
enquanto o sonho teça
e então enfarde,
nessa sua ausência de
pranto derradeiro.
Na ausência amor é um
perigo intermitente
que até permite a um
sonho florescer
no solo fértil e
aureolado da ilusão;
em sua presença a
ameaça mais premente,
o próprio sonho
fazendo-nos esquecer
a simples troco de
alguns beijos de paixão.
OUSARES X
Sonho é perigo,
contudo, igual que amor,
que o sentimento torna
sólido e abrangente,
de emoções um
caldeirão efervescente,
mescla de espuma em
bolhas de calor
e amor é um sonho de
mácula indulgente,
dois arco-íris
entrançados de fulgor,
relâmpago a girar em
fátuo ardor,
aurora presa na gaiola
do presente,
rede de luz que a
treva toma e encolhe,
orvalho leve que a
alma não nos tolhe,
noite de ébano como
estátua congelada,
qual almíscar de
alvorada já esboçada,
a solidão que se
esmaga como alfombra,
enquanto em nós
solidifica a sombra.
OUSARES XI
Amor, sonho, perigo,
que trindade!
Coluna de cristal de
opacidade,
lágrimas claras no
pranto mais escuro,
madrepérola em sua
gris leitosidade;
amor, a supernova em
jade puro,
a quintessência do
solar em obscuro,
pedra de toque de toda
a falsidade,
luz imperfeita,
reflexo num muro,
sonho, perigo, amor
por deusa antiga
que novamente adorada,
retribui,
na falta do temor de
adoradores,
perigo, amor e sonho,
longa intriga,
que me penetra e então
plena reflui,
mágica lâmpada de
múltiplos pendores.
OUSARES XII
No colo voam para nós
as letargias,
vastos vulcões
vestidos de arlequins,
trombas d’água
revestidas de alevins,
borrascas retorcidas
de agonias,
nesse perigo do sonho
em mil orgias,
sonhos de amor
vestidos de jasmins,
mil tocaias
fantasiadas de aladins,
as lantejoulas que na
alma perseguias.
Em perigos de estilete
e adaga o elmo,
puro amor de cetim e
de perfumes,
sonho perdido colorido
em gris,
teus amores sete fogos
de Santelmo,
teus amores sete
traços vagalumes
teus amores sete
pétalas de giz...
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