sexta-feira, 23 de dezembro de 2016





CINCO AVENTURAS DE RENARD
(Sobre textos da Alta Idade Média de Jean-Marie Garblass, versão poética de
William Lagos, 23-27 NOV 2016)

Renard e o Lobo Primaut ... ... ... 23 nov 16
O Banho de Ysengrin ... ... ... 24 nov 16
Ysengrin e as Enguias ... ... ... 25 nov 16
Primaut e Mouflart ... ... ... 26 nov 16
Renard e os Presuntos ... ... ... 27 nov 16

(YSENGRIN)

RENARD E O LOBO PRIMAUT I – 23 NOV16

Decerto ainda recordam da proeza
pelo ardiloso Renard executada,
cuja fome conseguiu ter aliviada
por malandrice cheia de esperteza.

Perante os dois peixeiros mostrou tesa
postura, sua morte assim bem encenada;
junto dos peixes foi a raposa colocada
para esfolarem a sua pele com destreza.

Mas era apenas da morte o fingimento:
mal o deixaram os peixeiros imprudentes,
engoliu o mais que pôde, bem depressa!

E três enguias no pescoço, a seu contento,
enrolou, mais gordo peixe nos seus dentes,
para sua toca a correr na maior pressa!

Bem que os peixeiros tentaram alcançá-lo
e em verdadeiro perigo se encontrou,
porque a comida na barriga lhe pesava
e quase um deles conseguiu pegá-lo!...

Mas se enfiou dentro de fundo valo,
por entre árvores embarafustou,
até que o pobre homem despistou,
que tão somente conseguiu amaldiçoá-lo!

Porém lianas se prendiam nas enguias
e precisou para a estrada retornar
o gordo peixe a atrapalhar-lhe o passo,

já seu fôlego opresso nessas vias,
mas em seguida à sua toca iria chegar
e continuava, por maior fosse o cansaço!

Mas de repente, numa dobra do caminho
deu de cara com um lobo, justamente...
Ao outro reconheceu rapidamente:
era Primaut, um animal forte e mesquinho, (*)
(*) Leia-se PRIMÔ.

de Ysengrin era irmão, sem ter carinho
por Renard; que, fanfarrão e prepotente,
aproximou-se, sua expressão contente,
das enguias farejando lá o cheirinho!...

“Para onde vais correndo, Raposão?
É uma manta que enrolas no pescoço?
É um colar que te pende do focinho?”

“É um Namorado e três enguias, meu irmão?
Agora mesmo terminou o teu retoço,
sou eu que vou comer cada peixinho!...”

Ora, Primaut era maior e, realmente,
numa corrida dele fácil lhe ganhava,
ainda mais assim pesado como estava...
Iria perder seus petiscos totalmente?

Soltou o peixe, seu focinho bem pendente:
“Caro senhor, com prazer tudo lhe dava,
mas por correr, nas enguias eu suava
e o Namorado já babei completamente!”

“Nem me atrevo a lhe dar tal porcaria,
meu caro amigo, seria um desrespeito!
Mas lhe direi de que modo conseguir

“quantidade a seu gosto da iguaria,
desde que sabia demonstrar, com certo jeito,
igual que eu fiz, sem em nada se ferir!...”

RENARD E O LOBO PRIMAUT II

“Está ouvindo o carroção subindo a estrada?
Pois está cheio de peixes, meu amigo!
Estes pequenos lá obtive sem perigo
e de trabalho custou-me um quase nada!...”

“Você se finge de morto, camarada!...
Vão querer tirar-lhe a pele para abrigo
e o jogam na carroça, é o que lhe digo!
Foi assim que consegui a minha peixada!”

“Mas é preciso que saiba fingir bem,
pois vão, decerto, empurrá-lo com o pé,
mas prenda firme sua respiração!”

“E comerá o quanto quiser também;
talvez mesmo possa levar um pontapé,
mas vale a pena, pois terá lauta refeição!...”

Primaut foi logo em busca da carroça
e bem ao meio do caminho se estirou;
veio a carroça estalando e então parou
“Ora essa, agora é um Lobo nessa joça!”

“Será que quer também nos fazer troça,
Igual que aquele Raposão nos enganou?”
E um forte pontapé logo atracou,
mas Primaut não se move e nem retoça!

“Deve estar morto... Mas, por garantia,
primeiro vou assentar-lhe boas pancadas...”
“Só não lhe estrague a pele!” – o outro falou.

Primaut escondeu toda a dor que ali sentia,
mas duas costelas enfim foram quebradas!
Não conseguiu mais aguentar e se esticou!

“Ah, está vivo!... Mais um outro espertalhão!
Mas já não vai por muito tempo continuar!...”
Da boleia veio o outro a lhe ajudar,
cada qual a bater com mais paixão!...

Vendo Primaut como estava a situação,
começou inicialmente a se arrastar,
depois, aos poucos, pôs-se a tropicar,
levando ainda vinte golpes de bordão!

Mas enfiou-se num riacho que passava
e então saiu nadando, com vigor...
Os negociantes não quiseram se molhar!

Enfim Primaut na sua toca se encontrava,
vazio o estômago, sentindo muita dor
e ainda molhado de se enregelar!...

Não morreu, mas ficou muito doente,
o tempo todo a mastigar vingança
contra Renard, vivendo da esperança:
Ainda mato esse patife, certamente!

Porém Renard chegou logo, bem contente,
em Malpertuis, as enguias como trança,
que alegremente recebeu cada criança,
enquanto a esposa comia o peixe, inteiramente!

“Você não quer um pedaço, meu querido?”
“Que nada, meu estômago está cheio!
O mais difícil foi chegar até aqui!...”

E muito alegre lhe narrou o sucedido:
“Passei a perna naquele Lobo feio,
senão roubava o quanto eu consegui!...”

O BANHO DE YSENGRIN I – 24 NOV 16

Ora, enquanto Renard e a filharada
se alegravam com a astúcia que mostrara,
Ysengrin, o Lobo, nem sequer Pardal pegara,
sem qualquer resultado a sua caçada...

Claro que a fome não significava nada
ante o destino que a seu irmão tocara!
Pobre Primaut, forte sova o alcançara,
todo judiado pela terrível camaçada!

Quase o infeliz, de fato, perecera
e chegaria até a morrer de fome
se a sua fêmea não fosse então caçar;

das suas fraturas se compadecera,
mas só comendo a fome dura some
e dessa forma ajudou-o a se curar...

Mas Ysengrin também fome sentia
e já de longe as enguias farejara
que Renard para casa transportara,
embora dele pouca ajuda esperaria...

Furacerca e Malebranche, em confraria,
numas varetas que sua mãe cortara,
de aveleira, cada posta se espetara,
que então sobre o fogo se assaria...

Por via das dúvidas, Renard, o astucioso,
trancara bem a sua porta e as janelas,
cerrando firmemente os seus postigos;

contudo, um fumo subia, vagaroso,
da chaminé, brancas volutas belas,
que o trairiam para alguns de seus amigos...

Ora, Ysengrin viu de longe essa fumaça
e o assado saboroso farejou;
depressa à porta de Renard chegou:
“Sobrinho, mas isso é coisa que se faça?”

“Trancar-me a casa inteira, por pirraça?”
Renard a Ysengrin logo escutou
e lá de dentro, bem alto, ele falou,
mudando a voz, na mais notável traça!

Mas tanto Ysengrin bateu à porta,
que finalmente ele abriu a janelinha
que servia para observar o visitante.

“Senhor meu tio, porque essa cara torta?”
“Senti o perfume de sua comidinha,
Dê-me um pedaço logo, seu tratante!...”

“Mas eu não posso!  Tenho aqui dois cavaleiros
que esta tarde me vieram visitar!...
São o Marquês de Arras,” improvisou Renard,
“E o Conde de Tyron, bravos guerreiros!...”

“Da Ordem do Banho somos companheiros!
Ninguém mais conosco pode se assentar!...
Minha esposa e filhotinhos só a olhar,
querendo as sobras destes meus parceiros...”

“Então, ao menos, me repasse um pedacinho!”
“Vou perguntar, caso os amigos me permitam,
mas entrar aqui, só poderá membro da Ordem!”

Pôs-lhe um pedaço de enguia no focinho.
Ysengrin se lambeu todo.  “Por que evitam
a minha entrada?  Não vou fazer desordem!”

O BANHO DE YSENGRIN II

“Eu já lhe disse: são da Ordem do Banho,
a que pertence só a mais alta nobreza!...
Eu lhes farei uma ofensa, com certeza,
caso permita a entrada de um estranho!”

“Mas seu teu tio, Renard, e não me acanho,
sei me portar com extrema gentileza,
com as melhores maneiras à tua mesa:
eu como devagar e não me assanho!...!

Renard, então, fingiu que estava a consultar
seus dois convivas, que acabara de inventar,
trocando a voz, com bastante habilidade;

para a seguir até o postigo retornar:
“Só existe um meio para você participar:
precisará de ser aceito na irmandade!...”

“O que é preciso, então, fazer agora?”
“Normalmente, realizar uma proeza
e tomar um banho completo, com certeza,
de fato coisas da maior demora...”

“Mas aos cavaleiros mencionei que outrora
este Ysengrin já demonstrou grande nobreza,
em muitos feitos de valentia e de altiveza
e assim merece ser aceito nesta hora!...”

“Basta apenas que lave a sua cabeça!
Logo a seguir, posso deixá-lo entrar...”
“Pois muito bem!  Mas como a irei lavar?”

“Ora, é bem fácil!  Mas é preciso que lhe peça
fechar os olhos bem e a cabeça aqui enfiar
pelo postigo, para a lavagem que mereça!”

“Mas lembre bem: fique de olhos fechados,
pois sua cabeça com óleo santo vou ungir!
Se abrir os olhos, os poderá ferir:
conserve-os, portanto, bem cerrados!...”

Como os peixes já tinham sido devorados,
pôs no fogo panela de água a ebulir,
como se fossem mais enguias a frigir
e segurou-a, cheio de cuidados...

Firmando a alça, chegou até o postigo,
a água fervente logo derramando...
“Meu sobrinho, sinto dor horrível!...”

“É o óleo da unção, meu tio e amigo,
aguente um pouco e após ser abençoado,
só irá sentir um bem-estar incrível...”

Mas Ysengrin a dor não suportou:
tirou a cabeças para fora, uivando,
enquanto Renard ficava gargalhando:
“A Ordem do Banho agora o aceitou,

“meu caro tio...  Mas por que escapou?
Não era a hora de vir aqui entrando,
minha boa comida bem feliz filando,
que de meus filhos quase retirou?”

Enquanto o Lobo fugia, em desespero,
a esposa de Renard mostrou pena:
“Sempre esse Lobo lhe mostra tanto apego!”

“Pois então?  Eu lhe mostrei apego vero!
Não lhe mandei fechar os olhos nessa cena?
Sem meu aviso, teria ficado cego!...”

YSENGRIN E AS ENGUIAS I – 25 NOV 16

Cerca de um mês depois que isso aconteceu
Ysengrin e Renard se depararam
no meio de um caminho e se fitaram...
Cheio de ódio, forte rosnado Ysengrin deu...

Porém Renard sua esperteza não perdeu:
“Meu caro tio, que grande honra então lhe deram
os cavaleiros, quando na Ordem o receberam:
grande bênção a Santa Unção lhe concedeu!”

Mas Ysengrin não aceitou a brincadeira:
“Perdi o pelo todo da cabeça!
Queimei as orelhas, fiquei de boca inchada!”

“Porém recorde a advertência bem certeira
de que fechasse bem os olhos: não se esqueça!
Por meu conselho sua visão foi preservada!...”

Já se notou que este Ysengrin, coitado,
não pecava por ser muito inteligente;
era, sem dúvida, animal forte e valente,
mas por Renard muito fácil enganado...

E essa artimanha o deixou atrapalhado...
“Meu caro tio, está a ver perfeitamente,
da aristocracia tornou-se membro permanente,
com grande honra foi dignificado!...”

“E certamente, gostou daquela enguia!”
“Gostei, mas só comi um pedacinho!...”
“Pois foi embora!  Teria ganho muito mais!”

Pobre Ysengrin, responder não conseguia
e Renard não perdeu tempo no caminho:
“Vou-lhe mostrar onde pesquei tais animais!”

“Venha comigo.  As enguias saborosas
vivem no lago, junto àquela herdade; (*)
os homens pescam peixes à vontade,
aquelas águas da lagoa são piscosas!”
(*) Espécie de granja ou fazenda.

Ysengrin, com suas mandíbulas gulosas,
pôs-se a babar, na maior felicidade!...
“Então me mostre, sobrinho, por bondade,
como se pescam enguias tão formosas!...”

Estava o lago totalmente congelado,
duro o bastante para nele patinar
e bem no meio, a fim de se pescar,

haviam aberto um buraco arredondado,
em que levavam os cavalos a beber
e com um balde, água iam recolher...

“Veja, meu tio, eles enviam no buraco
esse balde, durante uma ou duas horas,
em que as enguias se recolhem, sem demoras;
quando o levantam, pesa como um saco!”

“Mas é preciso ter corda presa a um taco,
usando a força do gelo como escoras...”
“Enfio a cauda e uso as patas como esporas!”
“Se quer assim, vou trazer liana de guaco!”

Então o lobo se acocorou no gelo
e Renard lhe amarrou o cipó no rabo;
prendeu na alça do balde e o mergulhou!

“O tempo hoje, meu tio, se encontra belo!
Basta que fique duas horas e a seu cabo
verá o cardume que no balde se enfiou!”

YSENGRIN E AS ENGUIAS II

Postou-se o lobo no gelo da lagoa
e Renard foi para a margem, calmamente,
rindo entre as patas, disfarçadamente,
por pregar no falso tio peça tão boa!

Daí a pouco começou uma garoa
e Ysengrin se achava muito descontente:
“Caro sobrinho, o tempo está inclemente!”
“Fique só mais um pouquinho: é coisa a toa!”

Nessa esperança de comer enguias,
Ysengrin suportava a frialdade,
embora estando já quase entanguido.

Mas a garoa, durante as horas frias,
virara em gelo, na maior facilidade,
deixando o rabo do lobo endurecido!...

Logo a seguir, notou que claro já ficava
e no cansaço e intenso frio da posição,
quis Ysengrin dar no balde um safanão,
os peixes para ver que então pescava...

Mas quem diz que sua cauda levantava?
Ele pensou fosse do balde a condição,
cheio de enguias já reunidas na ocasião
e por Renard logo após ele chamava...

“Renard, venha depressa me ajudar!
O balde cheio já me pesa por demais
E não o consigo mais erguer sozinho!...”

O Raposão, sua cauda branca já a notar,
falou, malvado: “Espere só um pouco mais:
é justo agora que vai ficar cheinho!...” 

Mas a seguir, a aurora despontava...
Ysengrin sair dali não conseguia!...
Chamar mais alto o lobo não queria,
já com medo da situação em que se achava!

E se a gente da herdade o escutava?
Logo a seguir, latidos já se ouvia
e Renard, sem mais aquela, já fugia,
deixando o lobo ali preso como estava!...

Sem mais demora, luzes se acenderam!
No lago o lobo avistaram os camponeses,
seus cães ganindo, já meio assanhados!

Para a lagoa logo todos acorreram,
pensando que ele, como de outras vezes,
logo fugia, vendo os cães ali atiçados!...

Mas Ysengrin não conseguia sair
e com os cães começou a combater,
ferozmente suas gargantas a morder,
mas quinze cães o estavam a ferir!...

Messire Constant Desgranges ouvir latir
os seus cães, alguns feridos e a morrer;
sacou a espada para o embate desfazer,
contra a cabeça um forte golpe a desferir!

Mas Ysengrin deu um salto e desviou
e a espada lhe cortou somente o rabo!
Vendo-se livre, saiu em disparada!...

Nem homem, nem cachorro o alcançou
e na sua toca, a lamber seu triste cabo,
jurou vingança pela horrível tratantada!...

PRIMAUT E MOUFLART I – 26 NOV 16

Depois de se passarem já semanas,
as suas costelas estando bem soldadas,
por sua esposa as feridas bem tratadas,
Primaut já andava, sem precisar de canas...

“Já te curaste de tuas artes insanas,”
disse-lhe a loba.  “Eu saí numas caçadas,
tuas mazelas com lambidas bem cuidadas;
chegou tua vez de caçar com novas ganas!”

E realmente, Primaut saiu a caçar,
para suas crias trazendo o alimento,
embora dores ainda ele sentisse,

mas facilmente a se recuperar,
após o seu descanso e o bom sustento,
embora a raiva de Renard ainda o afligisse...

E de repente, numa volta do caminho,
deu de cara justamente com Renard!
E de imediato começou ele a rosnar:
“Ah, patife!  Vou devolver o teu carinho!”

“Mas que bom que te curaste, meu priminho!
Foi culpa minha que não pudesses suportar
meia dúzia de pauladas sem gritar?
Ficar bem quieto eu consegui, meu amiguinho!”

“Caso houvesses aguentado um pouco mais,
poderias ter comido a te fartar!...”
Primaut, o pobre, logo foi feito de bobo!...

“Bem, se é assim... Mas eu juro que jamais
irei as tuas artimanhas escutar!...
“De que artimanhas falas, nobre lobo?”

“Como prova de minha sinceridade,
a três passos daqui deixei um faisão...”
(Estava bem à vista, na ocasião,
sem de ocultá-lo haver possibilidade...)

“Vamos lá, repartir com equidade!...
Assim demonstro ser teu amigo e irmão!”
Comeram juntos, depois fazendo a digestão
numas macegas, na maior tranquilidade...

No outro dia, quando juntos acordaram,
propôs Renard: “Minha esposa é costureira:
umas roupinhas escondi na ribanceira...”

“Vamos à feira vender?”  E combinaram,
indo Renard do esconderijo as retirar,
para a feira a seguir, sem demorar!

Mas na estrada encontraram negociante,
o Urso Marrom, que carregava um pato.
“De onde vêm?” indagou, sem mais recato.
“Da Inglaterra,” mentiu Renard, no mesmo instante.

“Vamos à feira, vender por bom montante
Roupas inglesas...” E as mostrou, prova do fato.
“Mas essa ave nos daria um belo prato...
Não quer fazer um negócio interessante?”

“Dê-nos o pato e alguma coisa mais...”
“Sei muito bem a razão dessa proposta:
vocês têm medo dos cães que existem lá!”

“De mim têm medo esses nojentos animais,
mas o negócio em nada me desgosta:
elas por elas, caso o aceitem, se fará!...”

PRIMAUT E MOUFLART II

Foi acertada a barganha, finalmente.
“Que Deus vos guarde!” – disse o mercador.
“E que Deus vos abençoe, meu senhor!”
Pegou Primaut o pato e saiu muito contente.

Renard seguiu atrás, já desconfiadamente:
Vai devorar todas as partes de sabor
e me deixar só os pedaços sem valor!...
Assim encetou uma corrida mais valente!...

Mas Primaut só parou sob um carvalho
e começou o pato gordo a depenar...
“Como será, meu amigo, o nosso talho?”

“Mas que talho?  Eu vou comê-lo inteiro!
O bico e as penas, se quiseres, vou te dar!
Vão te servir para encher um travesseiro!”

Em vão Renard então argumentou:
“As roupinhas  minha esposa fez à mão,
metade ontem lhe dei do meu faisão!”
Mas o reclamo de nada lhe adiantou!

“Ao menos, um pedaço!” – Renard lhe suplicou.
“De forma alguma.  Você me deve uma traição;
esperei meses, mas chegou hoje a ocasião
de me cobrar!” – Primaut lhe contestou.

Renard ser tudo inútil percebeu,
mas foi embora, sua vingança a planejar,
logo ao Abutre Mouflart indo chamar!  (*)
(*) pronuncie MUFLAR.

Logo o encontrou nos ares a planar.
“Senhor Mouflart, por acaso irá gostar
de um pato gordo?” “Bem me apeteceu!”

“Pois logo ali, embaixo do carvalho,
Primaut, o lobo, está um a depenar!
Ele era meu, porém quis me enganar:
prefiro então que seja seu o talho!...”

“De pegar esse pato hoje não falho!”
gritou o abutre e velozmente o voo alçou:
para o carvalho já se encaminhou,
localizando-o sem ter maior trabalho...

Primaut já havia toda a ave depenado,
mas no momento de lhe dar uma dentada,
muito contente por Renard ter enganado,

chegou Mouflart e sua presa arrebatou.
“Senhor Mouflart, por que me fez a tratantada?”
“Só porque às claras essa ave me mostrou!...”

“Já compreendi que não vai me devolver,
mas pelo menos me jogue um bom pedaço!”
“Tudo que eu pego, totalmente eu traço!
O pato é meu agora e eu vou comer!...”

“Nossa amizade, por favor, vamos manter:
dê-me somente do peitinho um maço,
depois lhe deixo parte do que caço!...”
“Vá então caçar, sem mais tempo perder!”

Assim o abutre pousou num galho alto,
começando a bicar, gulosamente;
seria impossível alcançá-lo com um salto!

Só então Primaut se arrependeu de sua maldade:
“Quem tudo quer, tudo perde,” realmente,
Para Renard devia ter dado a sua metade!

RENARD E OS PRESUNTOS I – 27 NOV 16

Ora, Renard, escondido lá no mato,
a cena inteira contemplara, divertido.
Não comi nada, mas nem tudo foi perdido,
Pensou ele, gargalhando sem recato.

Eis que depois de todo aquele espalhafato,
Mouflart, o Abutre, é que tudo havia comido,
exceto as penas, consoante havia prometido
para Primaut, mas até o bico do pato!...

Saiu do galho, majestosamente,
ou quem sabe, por estar muito pesado,
e foi voando em direção ao ninho;

deixou Primaut a contemplá-lo, tristemente,
com fome e raiva por ter sido logrado,
sob o carvalho deixado ali sozinho...

Então Renard, como quem não vira nada,
aproximou-se do lobo, lentamente;
vendo Primaut, a lamentar profusamente:
chegou a chorar, ao ver o camarada...

“Renard, meu bom amigo, que maçada!
Perdão quero pedir-te, gentilmente...”
“Não zombes de mim, seu insolente!
Comeste o pato, uma grande tratantada!”

“Mas não comi, Renard, fui enganado!”
“E essas penas que estão a teu redor?”
“No momento em que o pato depenei,

“veio Mouflart e, num bote calculado,
roubou-me o pato e comeu tudo, vil traidor!
Em vão por um pedaço eu supliquei!...”

“Eu agi mal, mas fui bem castigado!
Humildemente, agora peço teu perdão...”
“Se foi assim, eu te perdoo, meu irmão!”
E um juramento de amizade bem sagrado,

os dois fizeram... “Ai, Renard, estou esfaimado!”
“Eu não estou.  Fiz há pouco uma incursão
àquela granja.  Bem cheio está o porão
de bons presuntos e comi um bom bocado!”

“Ai, presuntos!  Como eu queria também!,,,”
“Pois seja assim.  Olhe, a noite vem chegando.
É só esperar, que a seguir te mostrarei

por onde entrar e então comerás bem!...
Tão logo viram as luzes se apagando,
foram à granja, a seguir da fome a lei...

Ora, o porão tinha sido bem fechado:
a porta com cadeado e com corrente;
a janela tendo grade bem potente...
“Não dá pra entrar!  Está tudo trancado!”

“Sempre se encontra um ponto descuidado,”
disse Renard.  Junto à porta, bem à frente,
com o focinho empurrou pedra, calmamente
e ali mostrou por onde havia penetrado...

“Por várias noites eu cavei este buraco;
comi um pouquinho só de cada vez,
sem ceder à tentação de pôr num saco...”

“Até agora não me descobriram
e olhe que aqui venho há quase um mês!
Não há cachorro e os donos nem me viram...”

RENARD E OS PRESUNTOS II

Renard entrou pelo buraco, facilmente
porém Primaut, que era bem maior,
só conseguiu passar com grande ardor,
mas a fome impeliu-o, finalmente...

E no interior havia, realmente,
muitos presuntos do melhor sabor;
a comer já começou, sem ter temor,
porém Renard, como sempre, foi prudente.

“Não devias de comer esses da frente,”
explicou ele então ao companheiro.
“Das outras vezes eu comi só os de trás...”

“Ah, Renard, minha fome é bem potente!”
“Mas o melhor é sairmos bem ligeiro,
logo esse estrago vão notar que você faz!”

E de novo saiu Renard bem facilmente,
mas quem disse que Primaut o acompanhava?
Comera tanto que já não mais passava:
ficou entalado – quase completamente!

Disse Renard: “Saia logo, que vem gente!”
Mas de Primaut o ventre se entalava!
“Vire-se um pouco, é a posição que atrapalhava,
Empurre um pouco sua cabeça para a frente!”

E o pobre lobo ficou preso por guloso,
mal conseguindo a cabeça pôr lá fora
e Renard o segurou pelo focinho...

Puxou com força e o lobo, temeroso,
fazia força, já adiantada a hora!...
As orelhas lhe mordeu, com algum jeitinho!

Renard, logo a seguir, armou laçada
com uns cipós e ao pescoço lhe prendeu,
sem resultado... Primaut quase morreu,
os seus esforços sem resultar em nada!

Mas com o barulho foi a gente despertada
e o dono pela escada então desceu!...
Primaut soltou a laçada e se meteu
de novo no porão, sua defesa preparada...

Renard agira com toda a retidão,
mas agora, que mudara a situação,
bem depressa girou nos calcanhares!

E fugiu bem depressa do terreiro.
Que poderia fazer? Seu companheiro
era o culpado por seus próprios azares!

O camponês desceu rápido a escada,
com uma vela na mão para alumiar...
Então Primaut decidiu-se a atacar:
no lufa-lufa foi a vela derrubada!...

O camponês desferiu-lhe uma pancada,
mas nesse escuro não o pôde acertar...
Subiu à cozinha para outra luz pegar,
porém Primaut lhe foi atrás e deu dentada

bem nas nádegas gorduchas do sitiante!
Chegou a mulher com um pau para bater.
“É o diabo!... Vá pedir socorro!...”

Foi a mulher abrir a porta e, num instante,
Primaut largou-o e saiu a bom correr
e só parou após subir um morro!...

Caso lhe tenha chamado a atenção que todas estas histórias versam sobre fome e assalto a despensas bem fornidas, não existe nisso nada de casual.  Renard é um representante dos camponeses pobres.  Durante a Idade Média Intermediária, nos séculos XI e XII (anos mil e mil e cem), excelentes condições climáticas na Europa, causadas por um dos periódicos aquecimentos globais, aliadas à introdução da charrua de ferro que substituiu o anterior arado de madeira, à substituição do jugo na testa dos bois e cavalos pelo jugo peitoral, à difusão dos moinhos e outras benfeitorias, permitiram um grande aumento da população.  Mas a partir do século XIII (anos 1200), com o início da Alta Idade Média, devido a erupções vulcânicas e longos invernos provocados por resfriamento global, as colheitas se tornaram escassas e mesmo inexistentes, provocando grandes fomes e facilitando a difusão da Peste Negra, a partir de 1353, já no século XIV.  A situação só melhorou com novo aquecimento global no século XV e a introdução de novos alimentos vindos da América, como o milho, a batata e a abóbora.  Somente os castelos, as abadias e as herdades fortificadas conservavam alimentos em celeiros e adegas e periodicamente eram assaltados por camponeses, durante as chamadas Jacqueries.

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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