quinta-feira, 26 de janeiro de 2017







EM FÉRIAS DE POESIA & MAIS
Novas Séries de William Lagos – 28 NOV / 7 DEZ 2016

(MUSIDORA E A BRISA, óleo de William Etty.  A ninfa Musidora representava o verão no imaginário britânico.  Aqui a modelo foi a atriz francesa Jeanne Roques, que adotara este nome artístico, mas o tema foi empregado antes por Gainsborough e outros pintores.)

EM FÉRIAS DE POESIA I – 8 nov 2007

Cantei demais o amor; agora o ódio
deve tornar-se o meu filão perfeito:
de versos de ouro em chumbo contrafeito...
Depositei meus versos sobre o pódio,

qual pedra filosofal...  de fancaria,  (*)
que fez minha prata em cobre liquefeito;
em ácido fatal, o ideal perfeito;
e do mais puro amor, quinquilharia...
(*) Pretensa, falsa.

Sempre irei embaçar o fugaz brilho,
que vejo aceso em seu olhar mortiço:
não é rancor que sinto, é malquerença

contra o destino, que me impele ao trilho
de que tento fugir, no amargo viço
de combalir o fado a que pertença...

EM FÉRIAS DE POESIA II – 28 NOV 16

Um verdadeiro ódio sequer sinto,
quando muito alguns laivos de rancor;
a vida é feita por muito mais ardor,
mesmo que tenha cor diversa da que pinto.

O meu futuro não temo: só pressinto
que em parte seja adverso seu candor,
já tendo extrapolado igual pendor
com que o passado assaz mostrou-se tinto.

Mas se é um filme, afinal, o seu enredo
foi redigido por mim só parcialmente,
transmogrifado em tal mitomania (*)
(*) Narrativas falsas sobre si mesmo.
.
com que à objetividade não me cedo;
dela me esforço a recortar somente
meus mil momentos de mais plena fantasia.

EM FÉRIAS DE POESIA III

Tudo pensado, será que existe diferença
entre esses fatos que chamamos de reais
e tais lânguidas fiadas fantasmais
que revestimos do pendor da crença?

Quem nos diz que o passado nos pertença
quando as memórias se alteram nos finais
e mais lembramos o que queremos mais,
nas mil nuances de olvidada desavença?

E ao mesmo tempo, como esses fantasmas
de alguns eventos mais desagradáveis
nos vêm, de sopetão, para assanhar?

As mil lembranças marchetadas de miasmas,
que se alimentam de descuidos ponderáveis
e assim se esforçam nossa paz por devorar...

EM FÉRIAS DE POESIA IV

Consigo dominar, no geral, tais incertezas,
sempre à tocaia de meus devaneios;
mas na paz e segurança, sem receios,
sou vulnerável à peçonha e às miudezas

que de tanto repetir, formam tristezas
de tais humilhações, por tantos meios,
na mente a decretar profundos veios
que só se entulham por força de proezas,

mas se renovam, como veios de água,
que uma goteira sempre encontra por vazar
pela vereda cimentada com cuidado;

e assim escorre sempre a humana mágoa
constante meio a envidar-nos de penar,
por mais que esteja oculta no passado.

EM FÉRIAS DE POESIA V

Não creio que isso ocorra só comigo,
mas certamente velhas mágoas te retornam,
bijuterias que os males teus adornam,
como tormentas derrocando o teu abrigo.

E em meus sonhos distraídos, não consigo
fechar as tampas que suas jaulas formam,
pois tais surpresas a pouco e pouco amornam
e então se escapam, solertes, do jazigo.

E teus próprios abantesmas também devem
esgueirar-se, sorrateiros, das prisões,
nesse prazer de renovar teu sofrimento,

para que novas provisões para si levem
quando de novo aprisionados nos porões,
por longo tempo a conservar seu próprio alento.

EM FÉRIAS DE POESIA VI

Quando experimento rancor ou malquerença
por não poder sopitar estas lembranças,
os seus ergástulos a reforçar com tranças,
ressentimento que mais e mais se adensa,

quando em nosso passado a gente pensa
ou se o tédio nos recobre em ondas mansas,
seus uivos débeis retornam como lanças
e a dor minúscula revolve e faz-se tensa...

A tua pedra filosofal, portanto, forja
e transmuta a malquerença em alegria,
recama em glória até a monotonia,

que só a imaginação vence tal corja
e tais momentos transforma num tesouro
e funde as lágrimas num colar de ouro.

CONDOÍDO I – 8 nov 07

Se fui o último a saber de teus segredos,
serei primeiro a repassar ao mundo
que não me acariciaste com teus dedos,
nem demonstraste por mim amor profundo.

Apenas me enviaste esses torpedos,
para que não sussurrassem, num imundo
delatar-me aos ouvidos, tais degredos,
por inveja ou por malícia.   Que iracundo

me contemplassem, no ridículo
descrever de teus atos, nesse irônico
cochichar entre os lábios e os ouvidos...

Mas na sombra de meus olhos eu retículo (*)
a imagem de teu sonho, quase afônico,
a mastigar tais sarcasmos repetidos.
(*) Descrevo em retícula, ou rede formada por pequenos pontos. 

CONDOÍDO II – 29 NOV 2016

Que não se entenda mal.  Não é delato
dessas tuas mil pequenas confidências,
mas dos momentos envoltos em dolências,
durante os quais escutei cada relato

de teus desapontamentos, triste fato
que perfumei com o zelo das paciências
e que purifiquei com minhas tendências
de carinho, pundonor e de recato.

Não se acha no que conto gabolice,
tão só descrevo de outrem um prazer
que para mim foi tão só imaginado;

talvez, no fundo, não mais que uma tolice
de ter ansiado por ser teu bem-querer,
sem os teus lábios, nem de leve, ter tocado.

CONDOÍDO III

Contudo, ouvi constante de tua boca,
quais fossem beijos, teus mil desapontos,
na descrição semifantástica dos contos
que revelaste de tua faringe rouca,

o relatar de cada falha louca,
sem recolher dessa experiência os pontos,
mas repetindo os mesmos erros tontos,
tua tristeza ampliando por ser pouca,

tal sendo como te não satisfizesse
essa insistência do coração magoado
e mais ainda o quisesses quebrantar

e dessa forma sobre mim versasse
a ampliação constante de um pecado
que em teu antanho não se pudesse achar.

CONDOÍDO IV

Ficava em dúvida, caminhando de teu lado,
sobre a extensão de tal veracidade,
se havias de fato sofrido, de verdade,
teus mil fantasmas em pleno desbarato;

ou que de fato fora teu corpo violado,
apalpado com luxúria, em saciedade,
e depois desprezado sem saudade,
de lado posto sem qualquer recato;

ou se abandono tão só mitificavas,
como forma de justificar uma assertiva
da intensidade de um prazer primeiro

ou se as lágrimas de frio que me mostravas
fragilidade só mostravam incisiva
de uma ilusão a me prender certeiro...

CONDOÍDO V

Alguns momentos até cri, seguramente,
enquanto o som nos ouvidos badalava
dessa tristeza que em meus olhos tripudiava,
sem que dúvida mostrasse mais frequente;

mas escutava, na leniência mais paciente,
cada relato que num outro se enrolava,
em pormenor que mesmo a si justificava,
nova versão a me assaltar da mesma mente.

Outra novela em seu pendor romântico,
que alguns descrevem qual “pornografia
feminina”, no masturbar das emoções,

sem que o enredo se tornasse tântrico,
mas cortinado tão só de fantasia,
no analógico debutar das ilusões.

CONDOÍDO VI

E quando à própria casa eu retornava,
um conselho a suplicar ao travesseiro
o desnudar se apressurava bem ligeiro
e no que cria já não mais acreditava;

contudo, a ela revia, e então julgava
que fosse um tal relato verdadeiro,
mesmo que fosse apenas passageiro
o fiador sentimento que alcançava.

Passados hoje cem anos sem memória,
num amontoado de cada encontro antigo,
sabendo bem nunca escutar mais nada,

arqueologizo a emaranhada escória:
teria então sido desprezada a sua beleza
ou vez alguma ela foi, de fato, amada?

ESTOURO I – 8 nov 2007

Nem sei se agora chegará um novo
e-mail de meu sistema imunológico.
Sei que escrever poesia é patológico,
um metastático ardor em seu renovo.

Mas é que esta manhã, em minha cabeça
voa estranho zunido, sem destino...
São versos combatendo e o pequenino
orifício de saída que os impeça

de se manifestarem todos, a um só tempo,
se localiza em minha mão direita,
num capilar esguio entre meus dedos...

É por ali que sai o contratempo
em que se empurram, na luta contrafeita,
meus infiéis delatores de segredos...

ESTOURO II – 30 NOV 16

Minhas glândulas sudoríparas se aprestam;
dentre meus pelos cem palavras jorram,
em ribeirinhos que, pingados, morram
sobre o tapete em que meus pés se adestram;

mas se nos dedos tais ideais se atestam
e nos rascunhos rasgam veios que percorram,
novo poema verdes versos forram,
nunca bolas de papel que então se encestam.

Pois realmente, essa obra de meus punhos
só com muita raridade eu fui rasgar,
salvo depois de a ter passado a limpo,

enquanto os potros se encilham em rascunhos,
num relinchar que mal consigo controlar,
que nas papilas de meus dedos formam vinco.

ESTOURO III

Com frequência expus outras soluções
para a metástase em perene crescimento
desses mil versos delirados em portento,
precipitados sem procrastinações.

Mas hoje eu sinto diversas impulsões,
brotam do sangue em coagulamento
esses meus cantos de aglutinamento,
muito mais materiais do que paixões.

Ali se travam combates e batalhas,
os vírus por macrófagos tombados,
das bactérias os venenos contrariados

a que apoio, reforçando as vagas falhas,
até que sejam filtrados pelos rins
e sob as unhas se projetem em alevins.

ESTOURO IV

Eu hoje digo não possuir inspiração
feita sussurro por poetas mortos;
da noosfera não recebo aportos
e nem das musas me toca a sedução;

não é meu estro o fruto da paixão
nem da tristeza roubada dos abortos,
nem resultado de meus rancores tortos;
sei que hoje dorme Dionyso em solidão;

não é de Apollo que me brilha o raio,
tampouco escápula em odor de santidade,
nem são diástoles de meu coração,

mas é dentro em minha mente que recaio,
fustigo a carne por mais virilidade,
neste arsenal bem diverso de explosão.

ESTOURO V

Células morrem ao longo da epiderme;
suas agonias às cutículas levadas,
por manicures jamais manipuladas,
nem aviltadas por fungos ou por verme;

é necessário que o fulgor se alterne:
em cada dedo me surgem alvoradas,
por quiromante dom acompanhadas
de cada traço que se mantém no cerne;

é necessário que as células escorram
por sob as polpas das papilas mortas,
rasgada a pele em minúsculos vulcões,

enquanto gêiseres de saliva jorram
e escrevo certo por tais linhas tortas,
qual em brocardos que repetem santarrões. (*)
(*) Ditados.

ESTOURO VI

Somente sei que da manhã à tarde
o ar me ferve dentro dos pulmões
e sinto em mim o ganir de multidões,
como chaleira fervente que em mim arde

e que coágulos de sangue assim me carde
em cada frase de descontrolações,
em cada estrofe de mil palpitações,
em cada sístole que minhalma albarde,

em seus arreios de meu padecimento,
no qual transporto meu fardo desmedido,
ansiando sempre por mais se demonstrar,

alhures mesmo de meu pleno julgamento,
em cada passo de um poema mais sofrido,
em cada estrofe nova luz a coagular!...

INTENÇÕES I – 10 nov 2007

Sempre foi a tua mente que eu queria:
para teu corpo fui mais indiferente.
É claro que te amei quando presente,
mas não por sexo, bem mais por elegia.

Não te surpreendas, portanto, se ciúmes
eu não demonstre, caso sejas de outro,
de corpo apenas, qual égua de potro,
se a parte humana tua, os reais lumes

da alma, se conservam fiéis a mim...
Se insisto por tua mente, a minha é tua,
pois tal amor somente é o que perdura.

Pouco me importa saber se estás, assim,
nos braços de outro homem, toda nua,
quando o espírito é meu e a mente é pura.

INTENÇÕES II – 1º DEZ 2016

Minha poética é controlada por eclusa,
cada nível outro nível a igualar,
o meu batel posto assim a deslizar
entre os desníveis que o canal acusa,

parte deles nivelada pela musa,
a outra parte por duende a transbordar,
numa cadência que não posso desprezar,
a mente ínclita sem deixar confusa.

Mostra-se a eclusa bem diversa da comporta:
desta se espera um dique apenas represar,
até que venha a se abrir, se necessário,

quando a paisagem seca assim conforta
ou se um excesso de volume o vai lesar,
alguma vez sendo um mal atrabiliário.

INTENÇÕES III

De modo igual, alguma eclusa existe
entre o desejo do sexo e o da alma:
têm variegados níveis cada palma
e qualquer separação permeio assiste,

para que algum desastre se despiste:
que não tombe o coração por não ter calma
de um tanque para outro, fora dalma,
para um desejo que em só sexo consiste,

mas que se empreenda um reparto cuidadoso
que bem demonstre o que se quer de fato,
a inspiração de espectral recato

ou algum orgasmo de cunho portentoso
que embora tendo convivência simultânea
não sejam fruto de centelha subitânea.

INTENÇÕES IV

Mas a eclusa traz morigeração
sempre que nível para outro se esvazia;
que amor de alma e de sexo se cria
quando esses níveis se equilibram com razão;

porém se o afano tão somente é inspiração
o amor inteiro se transmuta em fantasia,
enquanto à carne se desprezaria,
sem dar carinho de permeio à aceitação;

e quando nos invade o afogamento
de um desejo carnal bem exclusivo,
mais uma vez perde o controle nosso crivo,

sem igualdade com o sentimento,
ficando o amor tão só nessa intenção
de por instantes se esgotar nessa explosão.

INTENÇÕES V

Será portanto o grande erro do poeta,
quando a paixão revela por meiguice
de algum olhar tão cheio de ledice
que inteiro atende a seu ideal de esteta

e nessa arte seu desejo se completa,
qual no passado tanta vez se disse,
nessa tontura sábia da tolice
que sobre o sexo novo torpor injeta.

De certo modo, existe algo de ofensivo
em se tomar para musa uma mulher
sem com ela desfrutar igual prazer,

seu amor de um coração mais incisivo,
salvo em momento em que tal abstinência
se enalteça sob um pálio de paciência.

INTENÇÕES VI

Qual pois o mérito dessas intenções
de ânsia mostrar por ‘amada imortal’
que seja apenas o par num carnaval
dessas furtivas mas límpidas paixões?

Ou sendo a fonte tão só de inspirações,
o alvo apenas de um gozo espiritual,
tal como os anjos da era medieval,
fontes puríssima de mil adorações,

de quem diziam não possuírem sexo,
segundo afirmações dos exegetas,
ainda que fossem semimateriais,

nessa beleza de um amor sem nexo,
mais um egoísmo demonstrado por poetas,
mas que escreviam versos bem reais.

Duelo Incerto 1 – 13 nov 2007 
Amor estranho, tal amor frustrado,
Que, de frustrado, faz-se mais estranho.
Amor frustrado é esse amor tamanho,
Amor tamanho é tal amor sangrado.
Amor sangrado, tal amor sincero,
Que, de sincero, se faz mais infiel.
Infiel amor um tal amor cruel,
Amor cruel um tal amor austero.
Austero, assim, em plena crueldade,
Que só cruel e austero é amor ferido,
Apenas na memória e nunca tido.
Amor infiel, em tal sinceridade,
Que alcança ser cruel e ser bondoso
E só por ser cruel, se faz formoso.

Duelo Incerto 2 – 02 dez 16
Sem qualquer dúvida, aprovaria Camões
A tais sentenças de desaprovação
Desaprovadas por ideais que são
Ideais de artérias em vagos corações,
Vácuo cardíaco de tais comoções
Que se comovem no vácuo das paixões,
De apaixonadas mais estranhas são
Nessa estranheza de feras ilusões,
Bem ilusórias que sejam dos sentidos,
Em sensitivos instrumentos de canção
Lucidamente a cantar um vácuo vão,
Sem esvaziarem as sensações de olvidos,
Que mais olvidam que querem sensação
E assim vazias suas vidas têm mantido.

Duelo Incerto 3
Amor escuso esse amor sacrificado,
Num sacrifício sem ter quaisquer escusas,
Afogamento nos braços de medusas,
Por medusinas disputas dominado,
Amor envolto em tal domínio alado,
Canções aladas, vertiginosas fusas,
Na perfusão alígera confusas,
Tão mais confusas quanto é atribulado
Esse desejo que pretende ser alçado
E alçadamente se reveste em pejo,
Revestido em sua ausência de pecado,
Pecaminoso mais o corte que se acende
No acendimento de apenas um lampejo
Que a lampejar em torno a si nos prende.

Duelo Incerto 4
Quando palavras ficam a duelar,
Adjetivos e verbos nessa esgrima,
Nunca a espada completa a antiga sina
Nem vem o amor tal sexo adornar.
Pois bem menciona antiga copla popular
Que o cravo à luta com rosa se inclina,
Sofrendo o cravo ferida repentina,
Sofrendo a rosa seu despedaçar.
E mesmo havia no código penal
Essa figura da “defloração”,
Em que era à flor comparada a virgindade,
Tais apelidos a aplicar ao genital
Mesmo depois de muita gestação,
No mesmo toque de antiga divindade.

Duelo Incerto 5
Amor de flor que tanto mais se quer
E por querer se busca desfolhar,
Só nas membranas da língua a reparar,
Nessa mesma exploração do malmequer.
Não é contida assim qualquer mulher
Na melhor atração de seu brotar,
Igual que flor a querer despetalar,
Nem em descaso a desprezar sequer.
Que seja sempre a vagina o bem-me-quer,
Buscado o pólen apenas com carinho,
Nesse obscuro e vertiginoso valo,
Sem que suas pétalas descartar seja mister,
Mais que de rosa a desfazer-se o espinho,
Da flor deixando nada mais que um talo.


Duelo Incerto 6
Mas que se faça assim ato de amor
Em seu avanço de desenvoltura,
Assim envolto pela rosa obscura
Esse cravo carnal em seu pendor
E que se envolva igualmente de vigor,
Que o desejo revigore com ternura,
Que seja firme, inquebrantada a jura,
Que não se perca em volutas de vapor.
E que não seja assim amor estranho,
Não mais estranho que um amor fiel,
Que de fiel torno terna o seu espinho
E que perceba em si ideal tamanho
Que seja carne e sonho. luz e mel
A que dirija para sempre seu caminho.

DE AMOR LAMELIBRÂNQUIO I – 13 nov 07

chegaste na minha vida toda escura
e me deixaste um rastro luminoso.
tal como as lesmas deixam: perigoso
escorregar nesse traço, enquanto dura.

chegaste na minha vida retilínea
e a transformaste em vasto labirinto.
tal como o caracol e, assim, pressinto
que me enleaste em tua derme curvilínea.

chegaste na minha vida, suculenta
como o escargot que os gourmets apreciam,
mas que nunca provei -- e nem desejo.

que enfim provei de ti, luz sumarenta,
que brotou de teus olhos, que os meus viam,
por ocasião de teu primeiro beijo. 

DE AMOR LAMELIBRÂNQUIO II – 3 DEZ 16

deixaste em mim um traço de saliva
que evitei a noite inteira de lavar,
mesmo sabendo se haveria de apagar
quando a fronha de novo em mim se ativa.

deixaste em mim esse sabor de diva
que me invadiu o olfato e o paladar,
flor recorrente dentre em meu olhar,
pelas cocleias dos ouvidos redivida. (*)
(*) Um par de núcleos nervosos da audição.

que compare tua saliva a caracóis
é o mesmo que afirmar ser indelével
vereda espessa a percorrer-me a pele,

a refulgir-me o rosto quais faróis,
com um breve cintilar inalcançável
que tão somente sobre o espelho se congele.

DE AMOR LAMELIBRÂNQUIO III

deixaste em mim um traço de perfume,
cujo restolho se quedou no travesseiro,
mas de meu rosto se perdeu ligeiro,
na sudação recamada de azedume;

não que eu quisera lhe apagar o lume,
mas que fazer, quando o sono interesseiro
torna o lençol à face hospitaleiro
e a cada noite me compele que ali rume?

não poderia manter fora da cama
a minha cabeça, a fim de conservar
esse resto de glória feito beijo,

mas o cansaço ao repouso me conclama
e o final traço, enfim, vai terminar,
por mais que o oposto seja meu desejo.

DE AMOR LAMELIBRÂNQUIO IV

não sei se alguém comparação já fez também
que seja o beijo um perpassar lesmóide,
mesmo vedado a qualquer outro antropoide
cujo pelame sobre a cara inteira tem,

no qual ao máximo a língua se sustém
para afagar seus filhos em sinuóide,
beijo exclusivo apanágio do humanoide
quando a ânsia por carícia se mantém.

foi de fato uma tendência de europeu,
de modo idêntico ao brilho do sorriso,
desconhecidos dos povos primitivos,

quando muito explorador morte sofreu,
por julgarem arreganho esse seu riso,
ameaçando seus guerreiros mais ativos!

DE AMOR LAMELIBRÂNQUIO V

não acredito que te venhas a ofender
perante esta irregular comparação,
pois garboso cavaleiro beija a mão
(talvez não queiras sua resina recolher

caso em suas costas tal rastro possas ver
e a desejes esfregar com decisão!)
também um resto te deixaria o cão,
caso permitas o semblante te lamber...

mas esse rastro de saliva é mais suave
e se reveste de um brilho peregrino,
que assim queria para sempre conservar

o qual lamento que tão depressa lave,
já que ansiara, em meu perfeito desatino,
como tatuagem tê-lo sempre a me marcar...

DE AMOR LAMELIBRÂNQUIO VI

não que possua qualquer predileção
por essas modas recentes de tatuagem,
a perfeição maculada por bobagem,
pois de fato me repele o coração

e ao ver na pele uma tal maculação
foge o desejo qual falsa miragem,
para beijá-la precisaria de coragem:
que seja a pele uma límpida visão!

mas esse beijo que decalcou-me a face
eu bem quisera nunca se apagasse,
mas que marcasse a pele como brasa;

que de meu rosto não se deletasse,
que na epiderme inteira penetrasse,
nela formando sua perpétua casa.

ORGANDI I –4 DEZ 2016

O tempo pendurei em minha janela
como se fosse um pavilhão de seda,
num drapejar diário que não ceda,
mas que se enfune em farfalhar de vela,

como um batel que ante a brisa atrela,
qual um sinal que à vida se conceda,
impertinente fragor que não se queda,
um galhardete na afronta da procela.

Meu tempo eu transformei em castiçal,
as suas fibras em ouriço de arrepio,
um catavento a conclamar o norte,

qual arco-íris demarcado num missal
de iluminura a ilustração de brio,
broquel e escudo ante adversa sorte.

ORGANDI II

Foi meu tempo um filamento de organdi,
como o tecido da Urgarje eslava, (*)
que assaz facilmente se amassava,
dobras deixando quais na vida eu vi.
(*) Território russo de que se origina esse tecido.

Dobras do tempo no corpo já senti,
na agilidade que a vida desgastava,
uso demais nos quarteirões que perlustrava,
da fluência antiga que hoje já perdi.

Talvez porque meu forro se esgarçava
ou alinhavos se perderam por antigos,
nos panos velhos de ancestrais abrigos;

com linha nova não se cose o que rasgava,
ainda mais amplo no cós se torna o rasgo,
no devorar permanente deste trasgo.

ORGANDI III

Porém, quando o penduro à minha janela,
quero de fato ver o tempo se dobrar,
para mais longe meu barco ainda levar,
seu cavername e as quilhas em costela.

Quero que o tempo se dobre como estela,
as mil proezas do passado ali gravar,
para depois de mais velho consultar
cada miragem que em meu antanho gela.

Que se conservem meus anos amassados
e que eu possa sempre hastear essa bandeira,
passando as rugas sob o calor do ferro,

meus dias pespontando em meus cuidados,
tal qual vereda e trilha feita poeira,
na qual meu coração mais longe encerro!

ORGANDI IV

Nesse organdi do tempo me conservo,
curtindo o tempo para estrofe e verso,
sem que refrão pretenda ter diverso,
mas que o possa manter igual meu servo.

Esse pano do tempo à noite eu fervo
e dele tiro cada século disperso,
a minha vela rebrilhando em seu inverso,
as suas adriças os tendões que ali conservo.

Mas da beira da janela ainda recolho,
igual que rede, quanto tempo abandonado,
que tantos deixam sem nunca utilizar

e as dobras do organdi ao peito esfolho,
cada dia do porvir logo ampliado
de alheios zelos que ainda posso te contar.

SICILIANA I – 5 DEZ 16

MEU PEITO TU RASGASTE EM OBTUSO CANIVETE
SEM NADA DE GENTIL, TUDO FURASTE
COM GOIVA E PUA QUE SOBRE MIM ALÇASTE
ENQUANTO O CRIME DESVAIRADO SE COMETE

TALHOS DE CARNE A REPUXAR IGUAL CONFETE
AFASTASTE SEM PIEDADE E TORTURASTE
SEM TER SENTIDO A MENOR DOR QUE ME CAUSASTE
SEM IMPORTÂNCIA QUALQUER DAR AO QUE ME AFETE

TEU CANIVETE EMBOTOU-SE EM MEU ESTERNO
E UM SACARROLHAS EMPREGASTE EM SEU LUGAR
OS OSSOS GASTOS SEM ANESTESIA

PARA UM A UM DECEPAR DO PEITO TERNO
OS SENTIMENTOS QUE PENSARA TE ENTREGAR
QUE NUM BUQUÊ DE SANGUE ESBANJARIA

SICILIANA II

ERA FÁCIL DE SUPOR QUE EU FALECESSE
NÃO OBSTANTE AQUI ME ENCONTRO VIVO
DE TEU RANCOR NO ONIPRESENTE CRIVO
INDIFERENTE A QUANTO EU PADECESSE

QUE TEU DESCASO TÃO SOMENTE RECOLHESSE
UM FRAGMENTO DE VENDETTA ESQUIVO
UM ORDÁLIO DE FERVÊNCIA SEMPRE ATIVO
SEM QUE MINHALMA NESSA ESFERA SE PERDESSE

TALVEZ EU MESMO ATÉ TE SURPREENDESSE
POR ACEITAR O FUROR COM QUE LANHAVAS
ENQUANTO A PELE TODA ME ESFOLAVAS

E QUE À INVASÃO ME ASSIM SUBMETESSE
SEM RESISTIR E SEM PROTESTO E SEM GEMIDO
POR MAIS QUE TUDO FOSSE EM MIM FERIDO

SICILIANA Iii

QUE SÃO HORRÍVEIS ESTES VERSOS RECONHEÇO
SEM QUE ALGUÉM DELES POSSA AINDA GOSTAR
TALVEZ NEM EU OS POSSA CONSERVAR
PASSANDO A LIMPO O QUANTO AQUI PADEÇO

DE MINHAS ENTRANHAS O SOFRER NÃO MAIS ESQUEÇO
DESSE ANTIGO E FERVENTE TRIPUDIAR
MINHA ADOLESCÊNCIA ASSIM A ESPEZINHAR
NESSES ANOS QUE PERDI DE QUE NÃO CRESÇO

MAS SE REDIJO AQUI CANTIGA ATROZ
QUE RESSURGIU DO FUNDO DAS ENTRANHAS
E QUE POUCO TEM A VER COM O EU DE AGORA

ASSIM DESCREVO O SUPLÍCIO TÃO FEROZ
DA INDIFERENÇA DAS PERDIDAS SANHAS
QUE AINDA NELAS ESTERTORA O MEU OUTRORA.

SEVICIAS I – 6 DEZEMBRO 2016

Na variedade dos físicos humanos,
por mais que existam certos básicos modelos,
eu procuro dar vazão a meus desvelos
por rimas ricas nos teores mais insanos.

Canto pendores que lhes causam tantos danos
nos atestados de que alguns são belos,
padrões perfeitos que poucos podem tê-los,
mas os perseguem por tantos desenganos.

Contudo eu amo a raça humana no presente,
a despeito da matriz  ou cor da pele,
filhos que somos da mesma melanina

e ainda aguardo encontrá-la mais potente,
os espaços conquistando, nos quais sele
serpente longa de duradoura sina.

SEVICIAS II

Para alguns será tolice o meu ideal,
de à minha raça requerer perpetuidade,
num expandir para a universalidade,
sem recompensa por seu bem ou mal.

Que assim anseie por triunfo material,
sempre a despeito da mediocridade,
mas fruto seja da necessidade,
até a forja de um império universal.

Também existem aqueles que acreditam
não ser possível, por mais que merecido,
que seja o céu aos anjos devolvido,

que a tal avanço os demônios nos concitam,
mas tal ideal foi por mim sempre perseguido
e ainda o afirmo nas quimeras que me agitam.

SEVICIAS III

Ainda creio que a humanidade sofredora
venha sendo debulhada num crisol,
sob a visão da Lua e do arrebol,
até tornar-se, enfim, merecedora.

Embora afirmem ser ainda pecadora
por ser aqui o inferno, aqui o Sheol,
mas para a luz se volta o girassol,
sem que perceba tal visão como opressora.

Que seja embora um ergástulo e prisão,
ainda creio que o grilhão é imaterial
e que dele se escapa o pensamento

e que aquilo que mais prende é o coração,
no timorato enfrentar do espiritual
pelo temor de se perder no julgamento.

VENTOS SOCIAIS I – 07 DEZ 16

O teu rosto contemplo com espanto,
pois esperava ver nele outro teor,
que não pesasse de lágrima o sabor,
que não lançasse um tão amargo pranto.

Passou-se o tempo para o desencanto;
vi quanto vi, apagou-se meu visor;
nada mais tens a mostrar-me de calor,
ambos agora sob um negro manto.

Não existe mais lugar para retorno,
já vi tua mágoa feroz em catarata,
que por mais me esforçasse, não contive.

Guardo nos lábios esse teu hálito morno,
mas a sombra em teu peito te arrebata
enquanto em mim só a espera sobrevive.

VENTOS SOCIAIS II

O meu amor ainda te acalenta,
mas há no fundo de ti cerne de gelo;
sem grande esforço, ainda posso vê-lo,
que meu calor inteiro descontenta.

O meu temor por ti não se contenta,
por ser alvo total de meu desvelo;
algum tempo do teu saberei tê-lo,
mas no teu vácuo peitoral se assenta.

Percebo ainda em ti tristes noções,
sem me tornar o centro de tua vida,
tal qual tu és e sempre foste o meu.

Mas descompasso tais desilusões,
que de ti busco roubar e dar guarida,
quanto meu peito se conserva teu.

VENTOS SOCIAIS III

O que percebo em ti é a solidão,
que guardas como bênção e inclui em vão
as festas sem sentido, os namoros de ocasião,
cem entregas casuais e sem paixão.

O que percebo em ti é o desaponto,
não deu-te a vida o que julgavas pronto,
planos vagos se soltaram sem pesponto,
descompassado o andar em contraponto.

Em tal lamento, mulher, não estás sozinha,
também se encontra só quem te acarinha,
nessa indizível condição humana;

são duas solidões na mesma cama,
sem que a nave do amor as leve ao longe,
na grupal solidão de freira ou monge.

VENTOS SOCIAIS IV

Que se conceba a dádiva, afinal,
que não se deixe nada para trás,
que não se atenha a tais lembranças más,
que não se busque a solidão grupal,

que assim se encerre a exultação fatal,
que não se amplie o mal que se nos faz,
que não se exploda qual bolha de gás,
que não se extinga em sonhos do irreal,

que assim se encerre o poema derradeiro,
que não se diga “eu te amo” nunca mais,
que o sentimento se definhe no jamais,

que se sepulte o espasmo por inteiro,
que não se ancore a escuna em falso cais,
nem mais se sofra por querer demais.

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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