segunda-feira, 30 de janeiro de 2017





SORRISOS AZUIS (2010)
Duodecaneto em Vinte de William Lagos,

SORRISOS AZUIS I  (2010)

Antigamente, eu ria com frequência,
motivado pelos mais pequenos nadas.
Havia riso nas luzes encantadas,
na música e nos quadros da ciência.

Meu pai também, se ria às gargalhadas
e isso me deu, por certa irreverência,
a noção mais comedida da sapiência:
ria de formas menos desbragadas...

Em tudo via ironia nesta vida
e conservava sempre o bom humor;
sempre um sorriso no rosto me luziu.

Mas agora, tanta mágoa recolhida,
sem esperança de um viver melhor,
perdi meu riso e nem sei onde caiu...

SORRISOS AZUIS II

Esse riso que eu portava na minha face
era, talvez, tão somente afivelado,
máscara apenas, papier-maché dourado,
um retoque, um enfeite, só um repasse...

Era, por certo, um sorriso só de lado,
meio sorriso, da ironia o enlace,
uma persona que para os outros dá-se,
esse fantasma de mim, servo apressado.

Sardônico, talvez, porém presente,
não só nos lábios, mas do olhar no brilho,
pelo saber de que nada é o que parece...

Talvez usado em público, somente,
mas que deixei num cabide ou qualquer trilho,
ao dirigir a mim mesmo alguma prece...

SORRISOS AZUIS III

Eu me apego a fragmentos de esperança,
por minúsculos que sejam ou pareçam
tais pequenos cristais, que nunca cessam,
de surgir das areias qual em dança.

Pois minha fé, com pazinhas, não se cansa
de as revolver, na espera de que desçam,
que na chuva ou no orvalho não me esqueçam
até o ponto em que a memória alcança.

Cada pequeno grão, com intensidade
eu amplifico, nesse afã de garimpeiro;
busco palhetas de ouro deslumbrantes,

embora saiba, com racionalidade,
que essas fagulhas de um futuro alcandoreiro
são só caquinhos de vidro rebrilhantes.

SORRISOS AZUIS IV

Eu vou usar fragmentos de efusão
qual palhetas de luz, tecla dourada,
revestimentos para mim, um breve nada,
mas sedutores como penas de pavão.

Quando os prender ao pescoço, sorrirão
nesse fulgor argênteo da risada,
da galhofa de uma boca acarminada:
de alva alegria me assim revestirão.

Talvez eu possa então, de um riso alvar,
ouro de tolos, fazer verdes turmalinas;
(existem pérolas por trás do cálcio liso)

e quem sabe, obterei condão sem par,
um fio de sangue em gotas matutinas,
que me faça recobrar o dom do riso.

SORRISOS AZUIS V

Afinal, esse é um dom de Dionyso,
esse deus que me inspirou tanta poesia,
por mais que falsa seja essa alegria
da embriaguez de temporário riso.

Mas quero os fragmentos, pois preciso
restaurar o fulgor da nostalgia;
desejo o humor fremente da ironia
com que o mundo, sem respeito, eu analiso.

Sejam estilhas de vidro, sejam cacos,
em nada afetarão meu julgamento,
porque é deles que é feita a sociedade;

e com meu riso, eu provarei os nacos
de tanto falso e ímpio juramento
a que se inclina toda a humanidade.

SORRISOS AZUIS VI

Vou procurar, portanto, meu sorriso
em qualquer ponto que o possa ter deixado,
em séria senda talvez abandonado,
no esforço de um dever mais indiviso.

Não me parece ser questão de siso;
talvez num bolso esteja amarrotado
ou no fundo de gaveta foi largado
ou no violino procurar preciso.

Posso ter rido, quiçá, de uma piada,
dessas que atravancam a Internet
e o sorriso desprendeu-se, descuidado

ou se encontra num espelho de minha escada,
em qualquer fenda na qual o humor se mete...
Quem sabe os gatos o tenham afugentado?

SORRISOS AZUIS VII

Nunca se sabe... Gatos são daninhos:
veem um sorriso solto e dão o bote!
Cada patinha veloz como um chicote:
o pobre riso se esconde nos cantinhos!

Nas frestas, nos recantos e escaninhos...
Afinal, quando nasce, vem da glote,
fero e espantoso para qualquer mascote:
atrai a curiosidade dos gatinhos...

Assim pegaram meu sorriso desnorteado
e se puseram a brincar sem pena,
como fazem com ratos ou insetos...

E o coitado escondeu-se, amedrontado...
Talvez eu veja uma pontinha, bem pequena
e o consiga atrair com meus afetos...

SORRISOS AZUIS VIII

Vou procurar meu sorriso em qualquer parte,
quem sabe possa pelas alças o puxar,
sem um pedaço menos firme rebentar
caso num bolso se encontre, sem descarte.

A funcionária é honesta e de boa arte,
se acha dinheiro, vem logo me entregar;
se nas calças um sorriso fosse achar,
iria prendê-lo em alfinete... Destarte

é improvável que perdesse meu sorriso,
caso o tivesse encontrado alguma vez,
mas o traria, bem contente, para mim!

Portanto, é em outro nicho que preciso
investigar o que meu sorriso fez
a fim de se esconder tão bem assim!...

SORRISOS AZUIS IX

Talvez se encontre nalgum álbum de selos
no qual tempo não tive para olhar,
que dirá sob as charneiras procurar
esses risos que me davam tantos zelos!

Quiçá no bolso de um casaco?  Foram belos
os dias de inverno, isentos do penar
que me traz o verão e o fui guardar
trouxe-o da boca num lenço em meus desvelos.

Talvez o encontre no meio dos CD’s
ou nas páginas dos livros – são milhares!
Ou foi varrido para baixo do divã?

Ou entre meus empoeirados LP’s,
guardados com cuidado, sem azares,
num plástico amarrado em fio de lã!

SORRISOS AZUIS X

De onde podia retirar um novo riso?
Talvez o destrançasse dessa aurora
que dizem sorridente, a qual outrora
até avistar podia de meu piso...

Mas não a vejo sorrir mais.  Quiçá de um guiso
pendente de trenós, que noutra hora
ouvi em passeio, na memória que descora,
subindo aos céus sem deixar qualquer aviso.

Quem sabe o encontrarei entre os insetos,
nesse limar esquivo de mil grilos,
no pó dourado que deixam borboletas,

nos fios de aranhas de oito olhos indiscretos,
nos carunchos aninhados pelos silos,
ou nesses vespas que picam como setas.

SORRISOS AZUIS XI

Meu riso encontro nas cartas do passado,
quando minha voz trauteava de esperança,
até o ponto em que a memória cansa,
nos acordes de um descante dispersado...

Encontro o riso em partitura mansa,
quais redigia com o maior cuidado,
que impressas pareciam, lado a lado,
com as que ouvia tocar quando criança.

Encontro o riso nas vozes de meus filhos,
quando pequenos e quando adolescentes;
somos amigos hoje, se bem que raramente

riamos juntos.  Cada qual segue seus trilhos.
São risos fáceis os tirados de parentes,
mas nada trazem de firmeza permanente.

SORRISOS AZUIS XII

Só quando faço o balanço é que descubro
como foi séria esta vida que levei.
Por centenares de vezes gargalhei,
até sentir o rosto ficar rubro,

mas são galhofas fugazes, que recubro
com as fatias de tédio que espalhei,
por entre os goles de sombra que tomei,
pelos panos de tristeza que ainda dobro.

Tudo contado, até mesmo no prazer
eu sentia estar cumprindo uma função:
no verdadeiro orgasmo há pouco riso;

desde pequeno, fui escravo do dever,
mas realizado este pendor de avaliação,
ainda não sei onde larguei o meu sorriso...

SORRISOS AZUIS XIII

Vou procurar os meus risos espalhados
nos gritos estridentes das gaivotas,
nos albatrozes de mil praias ignotas
e nas fragatas com seus pios estridulados.

Nos pelicanos, com seus papos estufados
e nos pinguins dançando suas gavotas,
nos mergulhões de agílimas cambotas
e nos corvos marinhos apressados.

Talvez meus risos por eles devorados,
que acreditaram ser peixinhos cor de prata:
foram risos argentinos, afinal.

Nos longos bicos apenas empalados
de tantas aves de elegância inata,
dilacerando minhalma em carnaval.

FANTASMAS AZUIS XIV

Vou procurar meus sorrisos entre as flores,
em seu pólen multicor e atemporal,
pelos ares espalhado, em imoral
desperdício desgastado sem amores.

Vejo sorrir dos girassóis os estertores:
foram eles que os guardaram, afinal?
Foram poinsétias em canto atemporal,
meus sorrisos de suas brácteas domadores?

Vou procurar nas glicínias meus sorrisos,
nos agapantos ou nas gérberas carmins,
de cada gloxínia em flores raras,

nos caules das papoulas roxos visos,
nas fúcsias estridentes, nos jasmins,
nas estrelitzias de inflorescências caras?

SORRISOS AZUIS XV

Contudo, eu sei que jamais o encontrarei,
que meu sorriso só está dentro de mim,
que no quintal do coração planto jardim,
cada sorriso uma flor que colherei.

Porque ali o bom-humor um dia semeei,
não deglutido por pássaros assim,
nem nas flores gauchescas do alecrim,
nem nos polvilhos dourados que espalhei.

O que saiu, quando o foi, não foi mais meu,
mas de um canteiro em que adubei meus sonhos
e é com colar de sépalas que adorno

meu otimismo fácil entre o breu,
tremeluzindo nos escuros mais tristonhos
esses sorrisos com que a geada amorno.

SORRISOS AZUIS XVI    

Que seja falso embora tal sorriso
e que eu o aplique qual um aparelho
e sobre os lábios o conserve sob o relho
das intempéries, porque afinal preciso

as comissuras alargar em tampo liso,
ou áspero que seja, moço ou velho,
é a gratidão pela vida que eu espelho,
por mais que seja de sarcasmo o riso.

Levar a vida a sério é desgastante,
ainda mais na desconfiança do futuro,
que pode ser ainda pior do que o passado

e assim achei o meu sorriso delirante
bem no fundo do cálice mais puro
do próprio sangue que havia derramado.

SORRISOS AZUIS XVII

Se estou armado com sorriso agora,
por mais que seja de sobrancelha arqueada,
toda a alegria sugestão só esboçada,
um leve adejo em meu Risório embora,

por Santorini nomeado em antiga hora, (*)
é meu broquel, minha rede, minha armada,
quando agradeço a Deus por não ter nada,
meus males esquecidos já no outrora.
(*) O Risório de Santorini é o músculo orrbicular dos lábios.

Porque, no fundo, o que é a felicidade
senão a ausência de qualquer padecimento?
Que o autoengano perdure um só momento,

em que se pisca, para ocultar a realidade
e se suspende a noção do julgamento
sob um esgar esmaecido em opacidade.

SORRISOS AZUIS XVIII

Pois os sorrisos, a paz, os bons-humores,
esses fantasmas azuis dos lutadores,
são tão somente flamas transitórias,
os fogos-fátuos de amortalhadas glórias,

por sarcástica que seja essa aquiescência,
sardônica expressão de uma impotência,
incapaz de alterar quaisquer histórias,
restos de pele deixando sobre escórias...

Porém sorrisos provocam menos rugas
que as dobras da amargura, em breves fugas,
que ali conservam vigor e elasticidade

e destarte eu sorrirei, minha boca alçada,
mas meu sorriso não me fugiu por nada:
só estava farto de enfrentar a realidade!...
(*) Soneto composto em Rimas Paralelas.

SORRISOS AZUIS XIX

E nem se trata de volver a ser menino:
não fui alegre nem quando era criança,
nunca gozei de calma vida mansa,
só repousava até o tocar do sino

que badalava o final de tal bonança,
um campanário erguido no mais fino
ponto do cérebro, um calvário pequenino,
mais um dobre de finados que esperança.

Pois sempre soube quão falsa é a alegria
e quanto a dor é igualmente transitória:
sempre encarei a vida tal qual era:

que epopeia eu não teria bem sabia
e que a elegia da batalha inglória
melhor descreve o mundo que nos gera.

SORRISOS AZUIS XX

Tudo contado, melhor um sério viso
para as caretas dos outros afrontar,
acalentando meigo e simples divagar,
que ainda elicia um certo grau de siso.

Sempre conserva o rosto bem mais liso
que um esgar de amargura o faz rasgar
e algum sorriso sempre pode consolar
quando pisamos escorregadio piso.

E igual que eu, te recomendo afivelar
um breve soerguer na boca, hospitaleiro,
mesmo não sendo em nada verdadeiro,

que simpatia pode aos outros demonstrar,
guardando a sete chaves desagrado,
sem revelar toda a agonia do teu fado.

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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