quarta-feira, 30 de agosto de 2017





A VISITA DA MUSA &+
Novas séries de William Lagos, 28 JUN / 2 JUL 2017

A VISITA DA MUSA I – 28 junho 17

A sacra Sappho visitou-me nesta noite,  (*)
seus dentes aguçados pelo amor,
seus dedos percutidos de candor,
seu corpo inteiro em magistral rebanho.
(*) Leia “Safo”.

A sacra Sappho fez em mim pernoite,
meu corpo despertando em seu clamor:
sáfica graça em gritos de estridor,
meu coração fecundando em beijo estranho.

Como era sonho, recobrei a juventude,
robusto o corpo, com limpidez o olhar:
ante seus olhos foi plena a mocidade;

mas por um sonho, minhalma não se ilude:
dois mil quinhentos anos viu passar,
antes de em mim depositar fecundidade.

A VISITA DA MUSA II

Sob as cutículas guardei o seu pendor:
mostrou-me a musa altar em santo sexo,
de sua poética administrou-me o nexo,
em seu quíton transparente o despudor.  (*)
(*) Trajo feminino grego.

A sacra Sappho meu coração de ator
tomou nos dentes em odor perplexo,
nova aurícula ali deixando como anexo,
a palpitar-me novos preitos de calor.

Assim morri e renasci nos braços
dessa que foi de Musa Décima chamada;
não fui Alkayos, tampouco seu pastor, (*)
(*) O poeta Alceu, seu mentor e seu amante.

por quem matou-se, no desprezo de seus traços:
jamais por mim teria sido desprezada,
nem morreria por tresloucado amor.

A VISITA DA MUSA III

Meus ventrículos regurgitam sangue verde,
do lar antigo de Lesbos olivais,
mas permaneço nos páramos atuais,
por mais que desse antanho o verbo herde.

Toque de artelhos que meu peito cerde,
os que pisoaram as uvas estivais
e o vinho dionisíaco em bornais
esvaíram – gota alguma ali se perde.

Nem toda noite Sappho me visita,
pois jamais me jurou fidelidade;
um vaso apenas eu fui de seu amor,

que esta manhã com mais rigor concita
a expor-me sem vergonha e sem vaidade
nos versos lésbicos de seu intenso ardor.

A VISITA DA MUSA IV

Não que escreva somente quando chega,
porque as artérias trançou-me nessa cena,
lega em minhalma sua imortal verbena
que à embriaguez dionisíaca se apega.

A sacra Sappho de esplendor me cega
e a um perpétuo escrever assim condena;
bastante certo é que existe amarga pena
bem mais cruel que os mil versos que congrega.

Pois vinho algum é assim embriagador
como o vinho que se verte num soneto:
é a musa antiga que fala por minha boca,

que não pretendo ser da estrofe possuidor;
seu é o talento que permeia o meu afeto,
só em seu retorno a minha espera louca!...

A VISITA DA MUSA V

Destarte, embora os anos se acumulem,
também a ela o são acrescentados
e se redija quaisquer versos encantados
são os seus dedos que a mente acariciem,

são os seus dentes que minha boca adulem:
nada que escrevo é meu – são emprestados
os modos sáficos e os alcaicos embalados:
mais que morfina que as estrofes me viciem!...

Em mim percebo Dionysos no controle;
contaminado já fui por mensageira;
de seu poema sou apenas transmissor

que a mente tua sem piedade esfole
quando revejas a palavra passageira:
teu próprio instante de dionisíaco esplendor!

A VISITA DA MUSA VI

Nada me resta a dizer – Sappho chegou
e a noite inteira estendeu-se no meu leito;
amor fazer de certo modo ajeito
com esse espírito que de novo se encarnou

sob minha pele e seu canto me legou,
nenhum ato de amor dom mais perfeito
que este sonho em onanismo aceito,
em que esta musa inteiramente se entregou!

Nada me resta a dizer – porém te digo
que para receber-me abras canal,
que cante o verso em marcha triunfal,

em recompensa doce de castigo,
que o verso é teu e da musa – eu não sou nada
senão a faixa de luz de tua alvorada.

DECEPÇÃO I – 10 mar 2006

Já estou tão sóbrio ao fim desta quinzena...
Tanta esperança doida que eu sentia
Eu vi desvanecida em quarentena,
Na quintessência apenas da euforia...

Que não espero agora o meu desejo
Tornar-se material, fazer-se vivo,
Nem jamais ver dos olhos quanto almejo,
Num triunfar de aroma redivivo...

E nem anseio mais: estou vazio --
Emurcheci: o sonho meu de estio
Acidulou-se em gargalhar de inverno;

E agora só me resta em meu retiro
Que possa contemplar-te em meu suspiro,
Sem nunca mais te ver no mundo externo.

DECEPÇAO II – 29 JUNHO 17

Se em inglês fosse, decepção seria “engano”
e não somente um desapontamento,
o meu cantar apenas fraudulento,
qual miosótis em despudor ciano.

Fosse em inglês, se voltaria o meu afano
para uma burla, em deliberadamento
ou vigarice perante um julgamento,
que fosse o verso versado em tom profano,

na pretensão de ser canto sagrado;
que por alguém que em nada me prendeu
eu pretendesse ter o íntimo enlutado;

porém é português e o desaponto
de nunca mais te ver foi todo meu,
do perspírito desfiado o seu pesponto...

DECEPÇÃO III

Seria minha tristeza nada mais que um alinhavo,
no fingimento de um cerzir mais permanente;
que meu amor não passasse de indecente,
pequeníssima traição de um falso escravo;

que meu amor pretendesse ânimo bravo,
em covardice apenas insolente,
meu amor imperpétuo e complacente,
traços de sangue que do peito eu lavo;

que fosse amor apenas de alfaiate,
algum cliente mais vaidoso no adular,
só para dele receber um pagamento,

que tal confecção alegre acate,
embora nela fosse de fato me esforçar,
tanto quanto me permitisse o julgamento.

DECEPÇÃO IV

Mas como disse, isto escrevo em português,
marcado assim por desapontamento
apodrecido sem amadurecimento,
o pobre amor pelo amor que não se fez;

amor de pobre, esculpido em triste grês,
contra a parede do céu em portamento,
contra a parede do sonho mais atento,
nessas perdidas linhas que me vês;

menor de fato que qualquer decepção,
porque jamais se aprestou em tentativa,
seu próprio desaponto em frustração;

mas por mais que fora apenas falsidade,
por um momento devorou-me o coração,
falso esse verso, mas virente minha saudade!

MILAGRE I – 1963?

eu hoje trabalhei num solo de esmeraldas,
onde o limo da terra, ao saibro misturado,
tornou-se como jóia, qual da montanha às faldas
é arrancado à rocha o prêmio cobiçado.

estranho assim gerasse a negra podridão,
desta argila sem vida um sonho de beleza...
qual de alma humana a força da oração
arranca as nuas cores em toda a sua pureza.

assim em nossas vidas o Santo Operador
afunda os sábios dedos e molda a Sua vontade,
tornando-nos benditos: em Seu poder nos cria...

pudéssemos também assim moldar magia:
em cada coração gerando o santo Amor,
forjado desde a lama que forma a humanidade...

MILAGRE II – 30 JUN 2017

quando escrevi desta série a inicial,
estava abrindo uma piscina a picareta;
não é piada ou informação secreta,
tão somente o meu esforço natural;

mais que ao solo ferir ou fazer mal,
mais que a piscina qual final coleta,
a intenção que nutria mais dileta
era meus músculos acrescer em triunfal

consequência de um digno trabalho
e não apenas de frequência a academia,
que na verdade, por dentro nunca vi;

mas no alvião e na pá a areia espalho
então a terra arrancada à rocha fria,
nessa tarefa espantosa que empreendi.

MILAGRE III

e realmente, após rugir de tempestade,
em verde limo a lama rebrotou;
a inspiração em verde igual jorrou
dentro em meu coração, sem falsidade;

corri a casa, temendo que a vaidade
dos verdes versos que a musa me enviou
se perdesse com a lama que afastou,
mostrando abaixo ulterior tonalidade.

regime algum meu corpo transmutou,
nem série de exercícios calculada:
da força muscular guardei o orgulho

bem mais legítimo que assim se demonstrou,
obtida com machado, pá e enxada,
enquanto o solo submetia a meu esbulho.

MILAGRE IV

poucas vezes vi um verde tão formoso,
embora baço, em seu tom esmeraldino;
à luz do sol, certa vez, escutei sino:
insolação em seu início vagaroso...

não foi em dia igual – mas prestimoso
ao chuveiro do lar então me inclino;
sequela alguma deixou de que me atino,
deu-lhe a água fria um combate vigoroso.

mas esse solo de esmeralda registrei
em algum ano da distante mocidade,
sequela essa que em mim foi permanente;

brotou em sonetos e aos versos me curvei,
jamais tal senda abandonando de verdade,
na insolação poética da mente.

FATALIDADE I - Irmão Parmenas, JAN 30, '69.
(Para Mauro Diogo Jardim, o “Irmão Matias”).

Se quiséssemos todos andar de fronte erguida,
Permeando destemidos as vagas do infortúnio,
Na certeza de que o sol ou claro plenilúnio      *
Denúncia não dariam da falta cometida;

Se nossos sentimentos, desejos e ilusões
Pudéssemos aos outros, bem claros, revelar,
Quão mais fácil seria o nosso perpassar
Pela estrada da vida – na paz dos corações!...

Por que tão falsamente se tratam os humanos?
E se burlam; e escondem os nobres sentimentos
No sarcasmo; em ciúme; no cinismo mais mordaz!...

Se na sinceridade o homem fosse audaz,
Tanto ideal revelara à luz dos pensamentos,
Quanta pena poupara ao longo de seus anos!...

FATALIDADE II – 1º JUL 2017

Naturalmente, eu sou o Irmão Parmenas,
Um dos primeiros diáconos de antanho,
Os versos que escrevi, em ideal amanho,
Sua autoria esconder querendo apenas.

Que de outrem fossem as lúcidas verbenas,
Pensava eu, em timidez tacanho,
Sem desejar aos irônicos dar ganho,
Que maculassem, por despeito, as açucenas

Que me punha a redigir no tempo antigo,
Inspiradas nas Sagradas Escrituras:
Fossem de um monge que somente eu traduzia;

Que o desvendassem sequer houve perigo;
Quem leu tais versos mostrou tão só ternuras,
Sem desconfiar que inteiramente os redigia.

FATALIDADE III

Certa ocasião, pertenci à Irmandade
De Santo André, ao apóstolo homenagem;
Éramos sete – e em gesto de passagem
Ao diretor sugeri, sem falsidade,

Que adotássemos os nomes, na verdade
Daqueles Sete que serviam na estalagem
As refeições submetidas à voragem
Dos primeiros cristãos dessa cidade,

A secular capital, Jerusalém,
Que tanto sangue viu verter, também,
Sob pretexto de defender a religião;

Foi assim realizado tal sorteio;
Tirei o nome de Parmenas, sem receio,
Desapontando quiçá meu coração.

FATALIDADE IV

Esperava um nome ter mais conhecido,
Do que Parmenas, um herói pouco lembrado;
A outro coube o Estêvão apedrejado;
O Irmão Prócoro como bispo foi ungido.

Soube depois já terem falecido
Diversos desses jovens que ao pecado
Pretendiam combater no instante asado,
Trágica morte o novo Estêvão padecido.

Talvez apenas por mim seja lembrada
Do pseudônimo a esquecida origem,
Que nesses versos do antanho registrei,

Quer seja apenas a memória desvelada,
Dessa falsa modéstia dos que fingem
Não fazer versos, como então os meus calei.
 
VOLTA  I – 12 abril 81

Entendes o que quero...?  Vez primeira
Não era o descair da casuarina,
Mas a escorreita imagem na rotina
A se esvair da mente...   derradeira.

Essa visão melíflua da memória,
Perdida apenas em lembrança morna,
Empolgada de olvido...  Só retorna
Quando a modorra superpassa a glória.

Intermitência apenas...   cintilante,
Que ressurgira em tépido e intrigante
Instante meigo de luz e expectação:

Que me contasses tudo...   sem reserva,
Qual se abre a flor e qual nos cresce a erva,
No [e]terno rebrotar... do coração. 

 VOLTA II – 2 JULHO 17

Existe em nós bem mais vasta intimidade
no palpitar dos lábios em palavras,
no redigir das mais sinceras lavras,
que no cumprir da ritual sensualidade,

que existe nessa oferta a veleidade
de segredos transmitir-se como larvas,
na exposição ingênua de horas parvas,
que no outorgar-se para a sexualidade.

Do corpo inteiro o sexo se lava,
sem marcas nos deixar, se for normal,
sem equimoses que gerou brutalidade,

mas a palavra que na boca não se trava,
não sairá com qualquer banho lustral,
mas solta fica por toda a eternidade.

VOLTA III

Hoje em dia isto é certo mais ainda,
a gravidez feita em deliberação,
tantas defesas em total disposição,
no fim do sexo, só a luxúria finda;

mas no fim da confissão, a voz infinda
sempre nos pode condenar sem proteção,
não mais segredo as coisas que se dão,
não mais secreta cada verdade vinda,

que não podemos ungir nossas cocleias
como se lava ouvido externo e labirinto,
os verbos bailam no cérebro do ouvinte

e mesmo sem traição das epopeias,
quando em orelha compartilho quanto sinto,
parte de mim se esvai sem mais requinte.

VOLTA  IV

Na confidência sob a casuarina
abriu-se o ventre de forma passageira,
abriu-se a boca em revelada esteira,
a compartir-me teus sonhos de menina

e dessa forma, confundiu-se a sina
muito mais que por cópula ligeira,
nessas tranças de vime e de videira,
aberta assim da alma a mansa mina

e o que retorna é muito mais que orgasmo,
que se completa no nitrir das explosões,
algo de santo, de mel e de animal,

mas é o interior da alma que nos pasma,
quando se fazem num só dois corações
e a carne inteira se rende ao imaterial.

DENIAL    -- 13 April 2006

when shall i see You?
Your face is dew
over a dry patch,
Your smile a batch

of promises untold,
Your mind a manifold
trove of bliss ahead,
'tis wine, ‘tis a meal of bread

to still my hunger,
a spring for longer
quenching of thirst

and yet, not a merest
filament, although i grope,
for threadbare wisps of hope.

MULETEERS – 19 abr 2006 (translated)

Angels expelled from a heavenly shelter
Are all of us whom you dub, 'the artists';
We all mistuned while playing the harpists
And our beryl-made wings a-swelter

Were burnt down and blown away by winds,
In such a way that as wings they became
So useless, they so flawed and wispy came,
That we fell down, bringing no awe to minds.

For one purpose only: to find out
Whether we could, from our predicament,
Stealthily harvest a new contentment,

Collecting all pain life afforded us about,
Only to change it in feathers, uttermost,
To recompose the wings once we lost. 

Minha própria tradução de meu soneto
bem mais antigo que retranscrevo abaixo:

ALMOCREVES (1969?)

Anjos expulsos do celeste asilo
Somos nós todos que chamais de artistas;
Desafinamos no mister de harpistas
E nossas asas, feitas de berilo,

Foram queimadas ao sabor dos ventos,
A ponto tal que tais asas imperfeitas
Tornaram-se; a tal ponto rarefeitas
Que aqui tombamos sem causar portentos,

Somente para ver se aos sofrimentos
Pudéramos furtar contentamentos,
Ao coletar das dores que sofremos;

Da vida recolhendo amargas penas
Que, recolhidas, servirão apenas
Por recompor as asas que perdemos.

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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