O RETRATO
MISTERIOSO & MAIS
(Folclore
chinas, versão poética de William Lagos,
13/18 agosto 2017)
O RETRATO MISTERIOSO ... ... ... 13 AGO 17
FURTANDO SONHOS ... ... ... 14 AGO 17
ESTRELA-GUIA ... ... ... 15 AGO 17
DESMAIO DA TARDE ... ... ... 16 AGO 17
MUTANTES ... ... ... 17 AGO 17
ALTERNÂNCIA ... ... ... 18 AGO 17
O RETRATO MISTERIOSO I
Em uma pequena aldeia recolhida
entre as montanhas setentrionais da China,
vivia gente mais ou menos esquecida,
calmamente a cuidar da própria sina...
Nenhum espelho conheciam até então,
seus rostos só entrevistos na ocasião
na água pura que se põe numa bacia
ou na lagoa que por ali havia,
trêmulas sempre, em detalhes imperfeitas...
Certo dia, ali passou uma carruagem
que transportava uma formosa dama,
sem no local interromper a sua viagem,
cujo destino bem distante a chama
e enquanto o próprio rosto contemplava,
num solavanco e sem querer, jogava
o espelhinho da janela pelo vão,
partido o cabo quando bateu no chão,
vidro e moldura perdidos no capim.
Ao ver o cabo no ar se projetar
que seu espelho se quebrara ela pensou;
mesmo assim, a carruagem fez parar
e o cocheiro pelo objeto procurou,
os dois lacaios e a sua acompanhante
também o buscaram por um longo instante,
mas a carruagem já bastante havia avançado
e o espelhinho não pôde ser achado,
até que a dama ordenou seguir viagem.
“Eu tenho outros espelhos,” disse ela
“e já está ficando muito escuro...
Se fosse dia, brilharia como estrela,
mas deve ter rachado e estar impuro...
Vamos agora seguir nosso caminho,
sem mais atrasos só por espelhinho,
que a noite se aproxima bem depressa
e no escuro de espreitar não cessa
qualquer desastre ou perigo de assaltantes!”
O RETRATO MISTERIOSO II
Ficou afinal o espelhinho abandonado,
perdido entre cem tufos de capim
mas no outro dia, um camponês atarefado
para seu campo caminhava assim,
quando viu um lampejo sorrateiro
e foi pensando: Alguém
perdeu dinheiro!
Foi depressa procurar no capinzal,
tateando aqui, mexendo ali e, no final,
a sua mão se fechou sobre o espelhinho!
Ora, é preciso que nos recordemos
que nunca espelho aparecera nessa aldeia!
Ao encontrá-lo, não nos espantemos
que o camponês, que a tradição nomeia
como Kiki Tsu, nessa ocasião, de fato,
pensasse fosse apenas um retrato!
Viu ali homem com o olhar amendoado,
moreno e jovem, bem apessoado,
sem pensar nele estar fitando a própria face!
Bem ao contrário, o rosto lhe lembrou
os traços de seu pai, já falecido...
Quem o retrato de meu pai pintou?
Por que no mato o deixaram
esquecido?
Será um aviso de que eu vou morrer?
Será que o morto vai me aparecer?
Mas eu cumpri os funerários
ritos,
não há razão para espíritos
aflitos!...
Se for um aviso, o que de mim
exigirá?
Destarte, o espelho ele enrolou num pano
e o guardou, com cuidado, na sacola;
mas durante seu trabalho, sem engano,
a estranha dúvida a sua mente esfola...
Por que encontrei o retrato de
meu pai?
Quem nas macegas jogá-lo um dia
vai?
Há pouco tempo o fez, é coisa
certa,
a fisionomia está clara e bem
desperta,
não houve tempo para ela
desbotar!...
O RETRATO MISTERIOSO III
Por ter ficado assim tão perturbado,
não quis mostrar o objeto à sua mulher.
Esse retrato foi só por mim
achado
e não por outro camponês
qualquer.
Não sei se Lili Tsu o respeito
mostrará
devido ao honrado pai que aqui
está!
Talvez julgue ser feitiço e até o
destrua!
“Esse retrato que você achou na
rua
boa coisa não é!” – me
afirmará!...
E assim pensando, ao retornar a casa,
escondeu-o na areia de um jarrão
em que se expunham peônias cor-de-rosa
recortadas em papel, fabricação
da própria esposa; e com o máximo cuidado
as retirou, deixando o espelho ali enterrado,
sem outra vez contemplá-lo pretender;
porém a dúvida foi impossível de conter
e volta e meia ia olhar de novo o pai!
Quando os filhos e a mulher adormeciam,
ele até ia com essa imagem conversar!
E então pensava, ao ver que os lábios se moviam:
Quem pôde a alma de meu pai
aprisionar?
Sempre antes de sair, verificava
e erguia as flores do jarrão quando chegava...
Sempre a figura parecia ser do pai,
mas em sua mente outra dúvida recai:
Sua testa franze e suplicar-me
até parece!...
Mas Lili Tsu, sua esposa, percebeu
e quis saber por que tanto se encerrava
naquela sala da casa em que nasceu,
mas responder a suas perguntas evitava!
Naturalmente, a boa esposa desconfiou,
mais de uma vez as perguntas reiterou,
mas ele nunca lhe queria responder:
tinha medo que seu pai fosse sofrer,
se por acaso ela o retrato destruísse!
O RETRATO MISTERIOSO IV
Mas quem resiste à curiosidade
ainda mais Lili Tsu sendo mulher!?
Só com seus filhos ela ficava, na verdade,
quando o marido ia tratar do seu mister...
E assim se pôs a senhora a investigar
por que o marido ia na sala se encerrar,
mas não achava ali a menor pista,
por mais que revistar a peça insista,
até que um dia notou certa diferença...
As peônias de papel estavam tortas...
Por que Kiki Tsu as colocara mal?
Examinou com cuidado as flores mortas,
pois não queria estragá-las, afinal;
e vendo a areia por baixo remexida,
seus dedos enfiou, bem precavida,
e um objeto quadrado ali encontrou,
que facilmente para fora retirou...
Santos Deuses! É um retrato de mulher!
Que de sua própria face se tratava
nem suspeitou, só que a mulher era bonita...
Logo seu rosto, de raiva, se enrugava
e a imagem toda a mesma raiva agita...
Mas como é feia, de fato, essa
mulher!
Não há razão para a admirar
sequer!
Por que Kiki Tsu vem contemplá-la
tanto?
E seus olhos se toldaram com seu pranto,
Sem nem notar que a imagem lacrimava!
Foi totalmente tomada por ciúme:
Esse infeliz arranjou uma
namorada!
Só toma banho para ocultar o seu
perfume,
não se contenta em encontrá-la
pela estrada,
mas seu retrato foi trazer ao
nosso lar!
Será que intenta de fato me
afrontar?
E o guardou dentro do jarro, cuidadosa,
recolocando as peônias, prestimosa...
Esse bandido vai ter que se
explicar!
O RETRATO MISTERIOSO V
Tão perturbada estava, que nem fez
o jantar habitual para o marido
e nem seu banho preparou, desfaçatez
que Kiki Tsu percebeu, mal acolhido...
Ele mesmo o seu banho preparou;
logo a seguir à mesa se
assentou,
mas esperou em vão pelo jantar...
Disse à mulher: “Por que me estás a maltratar?
Qual a estranha razão desse desleixo?”
Inicialmente, ela nem queria falar...
Pão e queijo para si ele arranjou,
pois realmente, não queria brigar,
até que os filhos na cama ele arrumou.
Só então indagou: “Por que motivo sou tratado
tão diferente do que estou acostumado?
A ti eu trato com respeito e com carinho
quando após árduo trabalho me avizinho,
por alimento ansiando e por repouso!...”
“Eu não mereço ser tratado com maldade!”
Lili Tsu em sua mudez insiste...
“Tratei-te sempre com a maior bondade!”
“Mas agora, de repente, me traíste
depois dos cinco filhos que geraste!”
“Mas, como assim? Não entendo o que falaste!”
Eu sou fiel e nunca me afastei,
bem ao contrário, só amor te demonstrei,
muito mais que a maioria dos maridos!”
“Confessa logo que pretendes me trocar
e que arranjaste uma nova namorada!”
“Mas de onde foste tal ideia retirar,
se eu passo a vida no trabalho e na morada!
Trago o sustento pelo meu cansaço
e quando chego só desejo o teu abraço...”
“Mentiroso! Eu descobri o
seu retrato,
lá no jarrão enfiado sem recato!...
E o pior é que é mulher bem feia!...”
O RETRATO MISTERIOSO VI
“Queres dizer que mexeste no jarrão...?”
“Mexi, sim, e descobri o teu segredo!”
“Por que o retrato te faz tanta comoção?
É o retrato de meu pai!
Eu tinha medo
que acreditasses ser feitiçaria,
e o quisesses destruir, em antipatia!
Foi só por isso que não disse quando o achei
e sob as peônias do jarrão o resguardei...
Mas é o meu pai!... Não é
nenhuma namorada!”
“Claro que é um retrato de mulher!
Eu olhei bem!... Então pensas que sou cega?”
“Estas maluca, mulher!
Para te satisfazer,
eu vou buscar!...” Em sua
mão o espelho entrega.
“Viste só como é o retrato de meu pai?”
“Mas pensas que sou louca?” Logo Lili Tsu vai
apontando para um rosto feminino...
“Teu pai, é claro, tinha rosto masculino!
Mas para mim isso já cheira a bruxaria!”
“Ela arregala os olhos e arreganha
os dentes!... Então
pretendes me matar?
Nunca pensei que tivesses essa sanha!
Se não me queres, basta apenas me deixar!”
Kiki Tsu a contemplou, sem compreender.
Tomou-lhe o espelho, novamente a ver
o rosto de homem que pensava ser do pai!
Outra vez Lili Tsu ao objeto pegar vai,
de novo vendo ali só um rosto de mulher!...
Nenhum dos dois conseguia compreender
porque o outro assim teimava em contrariar,
pois o marido a seu pai pensava ver,
e a mulher outra mulher a contemplar!...
E prosseguiram nessa altercação,
já pela rua os seus gritos fortes vão,
indo aos ouvidos de um bonzo que passava,
cheio de paz no açafrão manto que envergava,
que foi então sendo tomado de surpresa!
O RETRATO MISTERIOSO VII
E revestido de religiosa autoridade
já enveredava pela porta aberta,
sem licença pedir, pois, na verdade,
nem seria escutado, nessa incerta
confusão, já quase em luta corporal,
já em ameaças de dano material!...
Mas se interpôs entre os dois, com mansidão:
“Meus filhos, mas por que essa discussão?
Belo casal, que serve até de exemplo!...”
Assim o monge interrompeu a altercação:
“Por favor, fale um de cada vez...”
“Ele escondeu um retrato em meu jarrão
da namorada, mulher até de feia tez!...“
“Não é verdade! É o retrato de meu pai!”
fala o marido.
Abençoá-los então vai
o gentil monge, mas primeiro busca ver
qual o motivo de tal discórdia acontecer
e Kiki Tsu lhe alcança o espelhinho...
“Veja bem! As feições são
de meu pai!”
“Mas Lili Tsu o arrebata por sua vez:
“Não estou louca! Essa
mulher contrai
a boca inteira e ainda enruga toda a tez!”
Tomou o bonzo nas mãos o espelhinho.
“Mas vejam só!... Este é o retratinho
de um santo e venerável sacerdote,
de Confúcio a transmitir o manso dote,
até envergando o sacro manto de açafrão!”
Ficam os três na maior perplexidade:
cada qual olha e avista rosto diferente!
Rezou o monge para a sua divindade
e logo inspiração lhe chega à mente,
pois já ouvira falar em certo espelho...
Falou, ajeitando seu manto vermelho:
“Cara Lili Tsu, nos traga uma bacia,
cheia de água límpida da pia
e a deixe ali parada sobre a mesa!...”
O RETRATO MISTERIOSO VIII
Ele esperou que a água se acalmasse
e disse à esposa: “Vá olhar-se agora:
veja essa imagem que na água nasce
e olhe o retrato nessa mesma hora!...”
Lili Tsu os contemplou, surpresa,
murmurando a seguir, já sem defesa:
“É o mesmo rosto, na água e no retrato...”
“Seu próprio rosto, minha filha, simples fato...
Seu marido não arranjou outra mulher...”
Logo a seguir, fez o marido contemplar
o reflexo de seu rosto na bacia
e com o retrato então o comparar:
sua dupla imagem em ambos então via!
“Não é seu pai, meu filho, é você mesmo,
toda essa briga foi travada a esmo.
Isso é um espelho e reflete cada imagem...
Desculpem-se os dois agora com coragem:
os dois erraram, sem dúvida qualquer!”
“Mas de onde você tirou esse objeto?”
“Achei na estrada, padre, onde brilhava...
Pensei ser de meu pai dote secreto...”
“Quando era moço, a você se assemelhava,”
disse o monge. “Foi um
erro natural,
não precisava que causasse tanto mal!
Mas como a tal discórdia deu abrigo,
acho melhor levá-lo, então, comigo...
Vou colocá-lo no altar, perto do gongo!...
Assim que ele saiu, falou Lili Tsu:
“Caro marido, irá perdoar-me esta tolice?”
E respondeu-lhe, de pronto, Kiki Tsu:
“Não, meu amor, perdoe a minha burrice!
Eu deveria ter-lhe mostrado mais confiança
e lhe mostrado o tal “espelho” sem tardança...”
“Não, meu querido! Eu
seguiria a ver mulher,
mas tu verias um homem, sem concordar sequer...
No fim das contas, foi real feitiçaria!...”
EPILOGO
“Graças aos
deuses, veio o bonzo aconselhar
e acabou com
nossa briga tão idiota!...
Desculpe agora,
vou servir o seu jantar
e jamais torno
a seguir por essa rota!...”
Assim os dois,
alegremente, se beijaram
e nunca mais
por ciúmes disputaram...
Contudo o monge
pensou... e em cem pedaços
reduziu o
espelhinho, pois seu traços
insistiam a
contemplá-lo em zombaria!...
FURTANDO
SONHOS I – 14 AGO 17
Espero que a
Lua esta noite deseje
que tenhas
apenas seis sonhos de paz,
que a um
sono dolente o amor também traz
a Lua em
brancura que aos ventos bafeje;
que o cinto
de Órion também te lampeje
três sonhos
isentos do mal que perfaz,
a lavar
pesadelos na mais pura aguarrás,
três sonhos
de luz em que a alma te adeje.
Que algum
meteoro mais três te complete
uma dúzia de
sonhos sem medos fatais,
a poeira de
estrela a flutuar-te em confete
que em
páramos doces permita-te andar,
tristeza
banida de tais dons siderais,
iridescência
pairando sobre teu repousar...
FURTANDO
SONHOS II
Que
encontres duendes para ti benfazejos,
que ao
pontos indiquem em que crescem maçãs,
totalmente maduras,
porém sempre sãs,
paladar
adoçando ao pingar dos desejos;
e que num
segundo, borboletas aos beijos
os ramos
percorram de castanha e avelãs,
que ponham
ovinhos tais quais fios de lãs,
nos caules
macios ao fremir dos ensejos.
Que seja o
terceiro sobre dunas de areia
de praia
tranquila, sem qualquer poluição,
as conchas
em baile com estrelas do mar;
no quarto
sequer algum mal se receia,
pois nele
percebes em gentil procissão
hipocampos
marolas pelas vagas formar!...
FURTANDO
SONHOS III
Que o quinto
sonho te mostre sete anões
a
transportarem sacola e picareta
para sua
mina de diamantes mais secreta
tais jóias
colhendo sem ganga ou senões.
No sexto
sonho te apareçam multidões
de elfos
entoando as suas canções de esteta,
gaitas de
fole, cornamusas e a dileta
flauta
transversa ao sopro dos pulmões.
Que seja o
sétimo só um sonho de cometas,
em cujas
caudas te permitam cavalgar
depois
joaninhas, com asas em aletas,
tapetes
móveis a crescer sob teus pés,
abracadabras
do teu lado a murmurar
tão
dadivosas quanto forem as tuas fés.
FURTANDO
SONHOS IV
No oitavo
sonho ao reino irás das fadas,
vendo Oberon
e Titânia a te sorrir,
depois
Polegarina em vagem a dormir,
degraus de
teia a te servir de escadas.
No nono
sonho mansas gôndolas levadas
sobre o
orvalho, em lavanda a reluzir,
cachos de
uvas teu coche a conduzir,
pelo teu
décimo sonho encarregadas.
Que venha em
trança de sol o sonho onze,
na luz
mortiça de um tom crepuscular,
não mais de
ouro, mas de cromado bronze,
e no décimo
segundo os mais queridos
de teus
parentes e amigos a abraçar,
tanto os que
lembras quanto os já esquecidos...
Estrela-Guia
1 – 15 AGO 17
O Hoje
é uma mágica do tempo,
Conectando
o Passado com o Futuro,
Cada
minuto a tombar logo de maduro,
Para o
minuto que o precede pouco atento,
Para
ao minuto que o segue dar alento,
Cada
intervalo com igual destino duro,
Acumulados
como estrelas em monturo,
Pingos
de tempo em manso desalento.
Nada
mais breve que a vida dos Minutos,
Com a
exceção apenas dos Segundos,
Sendo menores,
se houvessem, os Terceiros!
Sem
que ninguém por eles ponha lutos,
Por
mais que em paz e amor sejam fecundos,
Na
longa pista de skate os
parelheiros!...
Estrela-Guia
2
Cada
minuto uma prateada correntinha,
Fina e
macia. igual que teus cabelos,
Tentaculares
na força de seus elos,
Em
diuturno balbuciar de ladainha.
Quando
algum passa, o seguidor já vinha
A
empurrá-lo, apesar de seus apelos;
A
ampulheta não guarda seus desvelos,
Foice
de ouro que das uvas se avizinha.
Cada
minuto é num cofre armazenado,
Formando
as horas e dias do passado,
A
transformar-se, devagar, em gelatina,
Na
tessitura de um sonho complicado,
Que se
perfura, às vezes, feito mina,
Para
encontrar um instante já olvidado.
Estrela-Guia
3
O
tempo é amor, congelado como amora,
Ou
qual morango, mil pequenos bagos,
Após
sorvido cada instante em breves tragos,
Sem
que interrompas, fluindo sem demora.
Cada
minuto que nos chega nos espora,
Mas
sem doer, segundos são afagos,
Cada
dia em refluir formando lagos,
Um
por-do-sol acoplado a cada aurora.
Nele
contida encontrarás cada lembrança,
Coalescida
em intangibilidade,
Memória
apenas... sendo nossa estrela-guia,
Bem lá
no fundo as coisas de criança,
Da
adolescência, após as da maturidade,
Teu
microcosmo de que nada se perdia.
Estrela-Guia
4
Pois
nunca afunda esta tua Arca de Noé,
Sobre
o dilúvio a flutuar do esquecimento,
Catalisado
ali o total do pensamento,
Cada
hora de vigília e o sonho até;
Na
inundação fica difícil tomar pé,
Que o
dia presente impõe o seu momento
Nesse antanho
de minuto em passamento,
Interligados
por semente de tua fé.
Estrela-guia
o teu espírito somente,
Tecla
de atalho para os cantos de tua alma,
Para
os segundos do futuro um sorvedouro,
Longa
planície, que desmesuradamente
Engloba
tudo de tua vida em calma
Em
comunhão classificando o teu tesouro...
DESMAIO DA
TARDE I – 16 AGO 17
O Sol girava,
afirmavam os antigos,
ao derredor da
Terra, num pairar,
cada crepúsculo
no horizonte a se ocultar,
sobre os picos
das montanhas nos jazigos.
Se iluminasse os
povos inimigos,
algum feitiço
viera lhes roubar
a claridade que
nos traz a luz solar,
seu conforto
limitado a seus abrigos.
Mas também
criam ser a Terra plana
e então o Sol
precisava se acalmar
e de algum modo
ao nascente retornar
desses limites
que impunha a crença insana,
tal qual se a
Terra possuísse alguma adega,
bebendo vinho o
Sol nessa bodega!...
DESMAIO DA
TARDE II
Depois pensaram
que a Terra giraria
em torno de seu
eixo e não do Sol
e nesse giro
provocasse o arrebol,
quando o Sol
bêbado então se acordaria!
Durante séculos
essa crença persistia
de que ao redor
da Terra esse farol
diariamente
percorresse um vasto rol,
a iluminar-lhe
cada fímbria que existia!
Sabemos hoje
que não seja mais assim:
prende-se a
Terra ao Sol em filamento,
invisíveis
esses nós da gravidade...
domina o Sol os
cantos do sem-fim,
sem tomar no
horizonte nunca assento,
enquanto a
Terra é que o busca em ansiedade!
DESMAIO DA
TARDE III
Mas nesse tempo
de antanho a gente cria
que o Sol
dormia na bainha do horizonte
e ali do Éter
captava a fonte
para brilhar
depois, já repleto de energia!
A cada píncaro
chamado “meio-dia”,
os seus raios
distribuía como ponte,
chuva de luz
nos prendendo em seu reponte,
enquanto aos
poucos para oeste ele descia,
já desgastada a
fonte do luzir,
meio exausto do
trabalho de alumiar,
buscando a
tenda que lhe fôra armada,
para após cada
crepúsculo dormir,
sua luz
vespertina a desmaiar,
rósea primeiro,
depois roxa e acinzentada!
MUTANTES I – 17 AGO 17
(Cumprimentos a O Obelisco Negro, de Erich Maria
Remarque!)
Têm os veículos inconstante proporção:
quando se afastam, vão logo se encolhendo,
seu som gritante e fantasmal perdendo,
já obscurecido por diversa auscultação.
Ou se aproximam com menor ocultação:
eram pequenos, mas quando vêm movendo
nas avenidas, a caçar-nos vêm crescendo!...
Você dirá: “Isso não passa de impressão!...”
“O tamanho que possuem é permanente...”
Mas como um Doppler
lhes funciona o estridor,
seu som aumenta com a aproximação
e diminui quando partem para o ausente...
Prova precisas que tenha mais valor
que o som perdido ou que tem ampliação?
MUTANTES II
Quando seu som assim aumenta ou diminui,
o que te diz que não muda o seu tamanho?
Nesta percepção então vês algo de estranho?
Para em esquina na qual trânsito flui!...
Seus passageiros então sofrem igual amanho:
quem entra neles a encolher-se anui
(em tal processo, confesso, eu mesmo fui
quando aumentei e encolhi no mesmo lanho!...
São leis, supõe-se, só da perspectiva,
que te provocam tais ilusões de ótica...
Crês mais nas leis que no teu próprio olhar?
Esse conjunto de leis sabes de oitiva,
tuas reações em constrição robótica,
que só os humanos escravizam a aceitar!
MUTANTES III
Pior que os carros, as casas também movem:
chegas mais perto e as paredes vão subindo;
se vais mais longe, aos poucos vão sumindo
e nas travessas... em lateral se locomovem!
Atrás de ti, todas as coisas se removem:
certamente não as vês te perseguindo,
fogem de ti, pouco a pouco diluindo,
sentem tua falta, de algum modo se comovem...
Mas caso olhes para trás, voltam depressa,
se bem menores do que quando ali passaste
e se recuas, dão um jeito de aumentar...
Se da paisagem após cruzar se esqueça,
onde se encontram as coisas que avistaste
ou mesmo as casas... estarão noutro lugar?
MUTANTES IV
Por que precisas de leis de perspectiva?
Já não te basta a lei da gravidade?
Será mais certo quem está na insanidade
ou quem razão aparente ter cativa?
Será a visão racional então nociva?
Será que o mundo tem consanguinidade
com o que concebes na mais tenra idade,
quando essa tal realidade em ti se ativa?
Também pessoas crescem ou encolhem...
O mais estranho é que, se o mencionares,
que quem encolhe és tu, vão te dizer!...
Tua própria imagem será que outros engolem
quando te afastas assim desses lugares
nos quais insistem os demais permanecer?
MUTANTES V
Vou te contar: quando olhas para trás,
para tais coisas que dali haviam sumido,
e então percebes como haviam encolhido,
é que tempo para crescerem não lhes dás!...
Mas quando aos poucos, calmamente, voltarás
para esse ponto que meio havias esquecido,
toda a paisagem que se havia recolhido
já ganhou tempo para ali se apresentar!...
Porém, se olhares depressa para um lado,
verás que tem limites indistintos,
quando o passado foi pego de surpresa!
Que o mundo inteiro só por ti é imaginado
e os contornos se diluem nesses quintos,
até de novo se instalarem com firmeza!...
MUTANTES VI
Ocorre o mesmo que em teu computador,
que oculta arquivos por economia:
mostrar-te tudo requer muita energia;
vão para a “nuvem” os arquivos sem pendor
que não lembres de acessar com mais vigor
e quando os chamas, a memória os cria,
digitalmente, onde ali nada existia:
depende o ritmo de teu processador!...
E que te diz que o mundo a teu redor
não é igualmente um conjunto de memória,
que precisas acionar para enxergar?
De qualquer modo, nesse mundo constritor
há tanta informação feita de escória,
que melhor mesmo é que possa se apagar!
ALTERNÂNCIA I – 18
AGO 17
Sempre haverá algum
outono e primavera,
nesse eloquente
murchar das estações,
sempre um inverno
após tantos verões
e após o inverno o
rebrotar de nova espera...
Bem escondidos se
achavam os botões,
em deiscência a
eclodir da antera,
que espalha pólen
em âmbito de esfera,
espalhado pelo
vento em borbotões...
Assim amor períodos
tem também
de brotações e de
aquecimento,
para depois, aos
poucos, se amainar...
E nesse inverno do
amor a gente tem
a impressão de um
total esfriamento,
amor gelado, sem
nada nos deixar...
ALTERNÂNCIA II
Contudo, meses de
amor também perpassam
e pouco a pouco já
se faz primaveril,
o amor de inverno
novamente juvenil,
nas emoções que
novamente nos repassam...
Vem percepção de
mais viver, se nos abraçam,
em sensação
empoderada e varonil,
igual anseio em um
peito mulheril,
nesses retornos de
estio que nos compassam...
Mas é preciso
recordar-se a precessão
dos equinócios...
Já não vêm no mesmo dia
as estações, tal
qual era antigamente,
pois se intercalam,
em fugaz agitação:
dias quentes há no
inverno; e o tempo esfria
durante o tempo que
se esperava quente.
ALTERNÂNCIA
III
Assim
amor tampouco segue um protocolo:
suas
regras mudam indiferentemente
ao
que suplica o coração da gente,
os
feromônios a deixar em desconsolo!
Eros
se apanha e coloca-se no colo,
porém
Hécuba já nos morde, gentilmente,
até
que Perséfone secreta se apresente,
fugindo
a Hades para nos trazer consolo!
Antigamente,
eu houvera pretendido
a
palavras limitar-me e as alusões
evitar
de qualquer mitologia...
Porém
amor é um metafísico bandido
e se
intromete em tantas ocasiões,
nos
suaves beijos de sua velha melodia...
Recanto das Letras
> Autores > William Lagos
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