A FADA DO RIO (02 jul 11)
(Conto popular eslavo, recontado por William Lagos.)
Em tempos que já lá vão, erguia-se um moinho
às margens do grande rio Dnieper, que até hoje atravessa a Rússia, a
Bielorrússia e a Ucrânia. Era atendido há muitas gerações pela mesma família,
que assim gozava de uma relativa prosperidade.
Os camponeses traziam o trigo, a aveia, o centeio, a cevada, a espelta e
outros cereais ao moinho em seus carroções e os moleiros os transformavam em farinha. Em geral, os camponeses nada pagavam em
dinheiro, porém uma percentagem do cereal ou da farinha pronta era separada
pelo moleiro para seu uso pessoal ou para vender a clientes regulares. O negócio convinha a todas as partes e o
sistema ocasionou um surto de prosperidade por toda a Europa, a um ponto que os
historiadores se referem a este período como “a revolução dos moinhos” ou mesmo
“a primeira revolução industrial”, que permitiu um grande aumento à população
europeia. Tornou-se possível plantar
vastas extensões de terras antes devolutas, produzindo alimento abundante para
os humanos e seu gado.
Na época em que se passa esta história, o moleiro chamava-se
Vassily, mas era conhecido por todos por Vássia, que era o diminutivo de seu
nome. Vassily significa em português
Basílio, portanto Vássia é o mesmo que “Basiliozinho”. Ele herdara o moinho de seu pai, mas trocara
por uma maior a roda acionada pelas águas do rio e adquirira um novo conjunto
de mó, a pedra superior que gira, acionada pelo mecanismo do moinho movido a
água sobre a pedra de baixo, chamada de arial.
Em outros lugares, o moinho era acionado pelo vento e, em tempos mais
primitivos, bois ou escravos caminhavam sem cessar ao redor da mó e do arial,
fazendo com que o trigo fosse sendo esmagado e transformado em farinha. Quando Vássia instalou as novas pedras, teve
a ideia de construir ao lado um salão menor, onde colocou as antigas para moer
centeio, cevada ou outros cereais, reservando a nova instalação apenas para o
trigo, que era muito mais volumoso.
Deste modo, não só duplicava a produção como não perdia tempo lavando as
mós e as tulhas para não misturar a farinha de cereais diferentes.
Vássia tinha uma filha, a quem chamou Rusalka, num
desafio às superstições locais e contra as objeções do pope, o padre ortodoxo que chamou para batizá-la. Acontece que os camponeses e marinheiros
eslavos chamavam rusalka (ou rusalki, no plural) às ninfas do rio,
que diziam puxar pessoas para dentro da água a fim de afogá-las. Acontece que Vássia passara a vida toda à
beira do Dnieper e nunca vira uma rusalka,
nem conhecia ninguém que as tivesse visto pessoalmente. Pessoas se afogavam no rio, era certo, mas os
infelizes eram logo encontrados e não havia aparecido nenhum monstro ribeirinho
para atraí-los até o fundo das águas.
Eram somente lendas de comadres ou de amas-de-leite para assustar as
criancinhas e fazê-las dormir mais cedo ou criarem um medo bastante saudável da
correnteza, nunca brincando no fundo nem andando por lá sozinhas.
Além disso, existia também um festival de verão, chamado rousalka, no período em que as rosas
estavam em plena floração, quando as meninas e moças solteiras dançavam horas a
fio e, se alguém dizia alguma coisa e ele estava de bom humor, o moleiro explicava
que o nome de sua filha se devia à dança.
Mesmo assim, achavam que ele estava mexendo com coisas que não
devia. A lenda era muito espalhada, da
Rússia e Ucrânia até a Polônia e a Boêmia, como se chamava então a República
Tcheca. Era repetida também nos países
bálticos e escandinavos e até mesmo na Alemanha e os mais velhos (os quais,
diga-se de passagem, nunca haviam visto qualquer rusalka ou outra criatura sobrenatural) diziam que onde há fumaça,
há fogo.
Corria a lenda que as jovens que se jogavam no rio por
terem brigado com o noivo ou o namorado se transformavam em rusalki.
Esse também era o destino de mulheres grávidas que se afogassem por um
acidente qualquer e até mesmo de crianças mortas nas águas antes de serem
batizadas, embora isso fosse muito mais raro.
Na maioria dos lugares, contavam que a rusalka perdia toda a cor e ficava muito branca, com longos cabelos
platinados, embora em outros dissessem que eram louras ou tinham cabelos
verdes. Seus olhos também se
transformavam, ficavam muito brancos e sem pupilas ou então eram iluminados por
um brilho interior que parecia uma chama verde. No extremo norte, na Carélia ou na
Finlândia, diziam que ficavam cobertas de um pelo branco dos pés a cabeça, mas
a história mais comum era a de que andavam nuas, recobertas por longos cabelos
que lhes chegavam até os joelhos.
O que as rusalki faziam
também variava de acordo com o narrador.
Em alguns lugares, saíam para a terra somente no verão, durante a semana
da rusalnaya, no princípio de junho e
dançavam e cantavam pelos prados a noite inteira, fugindo quando alguém se
aproximava. As suas danças tinham até um
nome especial, korowody, que era
usado principalmente na Polônia, onde afirmavam que, no caso de alguém as
avistar, que se afastasse rapidamente, porque a visão de sua nudez podia deixar
as pessoas cegas. Outros diziam que
podiam sair das águas durante qualquer noite em que a superfície não estivesse
congelada e então seduziam os rapazes para namorarem durante algumas horas ou
as crianças para brincar com elas, mas fora isso, não faziam qualquer mal. Elas costumavam assentar-se nas forquilhas de
bétulas, abetos ou carvalhos, onde ficavam penteando os longos cabelos e
cantando canções em louvor à Lua.
Falavam em outras partes que as rusalki eram os espíritos de mulheres assassinadas nas proximidades
do rio ou do lago e que vagueavam soluçando.
Não eram maldosas e descansavam quando sua morte fosse vingada de uma
forma ou de outra. Mas havia versões
mais assustadoras. Elas vinham à margem
só para fazer o mal, seduziam os homens ou as crianças e os afogavam no rio,
arrancavam os pescadores de seus barcos, puxavam para o fundo os nadadores e,
quando o rio estava baixo, no final do verão, derrubavam as pessoas que
atravessavam as águas a vau. Nos raros lugares
em que havia pontes, dizem que eram capazes de saltar do fundo e agarrar alguém
que passasse depois de certa hora, carregando a pessoa consigo pela outra
amurada. Mas a maior parte das pessoas
afirmavam que estas não eram as rusalki,
mas as buditchkas, espíritos malignos
e sem alma que odiavam os seres humanos.
Também se contava que não podiam ficar muito tempo na
superfície, somente algumas horas, porque seus cabelos se ressecavam e isso
lhes causava a morte, uma vez que faziam parte das águas do rio e deveriam
estar sempre molhados. Mas cada rusalka possuía um pente mágico, alguns
de ouro, prata ou outro metal, outros de madrepérola, âmbar, ônix ou mesmo de
esmeralda. Enquanto tivessem o pente
consigo, podiam pentear pelo menos uma parte dos cabelos e permanecer por mais
tempo em terra. Dizia-se ainda que, caso
alguém encontrasse uma rusalka e
conseguisse tirar-lhe o pente, ela não somente não lhe poderia fazer mal algum,
como obedeceria a todas as suas ordens. Pelo
sim, pelo não, todos os anos, em junho ou julho, os aldeãos se reuniam e
queimavam ou enterravam uma boneca representando uma rusalka, como precaução para que não os viessem perturbar nesse
ano, costume que perdurou na Rússia até a década de 1930, até que fosse
reprimido violentamente pelo governo, que via com muito maus olhos tudo quanto fosse
catalogado como superstições.
Tudo isso Vássia escutara em sua infância e adolescência
e até mesmo adulto, em reuniões de família no inverno, quando escurecia muito
cedo e o moinho parava de funcionar ou nas tavernas e estalagens em que ia
levar farinha e se demorava bebendo um copo ou dois ou fazendo uma refeição quente,
nas ocasiões em que se achava muito longe de casa. Mas sempre fizera troça dos contadores de
histórias, que invariavelmente falavam ter conhecido alguém morto ou seduzido
por uma rusalka ou alguém que
conhecia alguém que o fora e assim por diante, mas que nunca as haviam
encontrado pessoalmente. Um dia, por bravata, disse que sempre tivera vontade
de ver uma dessas fadas ou bruxas do rio, não importa o que de fato fossem e
que, caso nunca o conseguisse, iria chamar de Rusalka a primeira filha que
tivesse, o que realmente fez.
Três anos depois,
sua esposa morreu após dar à luz outra menina.
Tanto falaram, que Vássia se ressabiou e a batizou com o simples nome de
Ana. Durante alguns anos contratou
amas-de-leite e governantas para cuidar das meninas e fazer os serviços da
casa, mas finalmente se decidiu a casar novamente com uma camponesa que morava
a muitas verstas de distância (uma
versta corresponde a 1,067km.). Sua
noiva se chamava Natasha, tinha olhos verdes e cabelos muito negros e lisos e
era de uma beleza extraordinária.
Tomou-se de amores por Rusalka e Ana, a um ponto que ninguém jamais
diria que era a madrasta, mas sim sua mãe verdadeira. E também amava profundamente a seu Vassily,
que procurava tratar sempre da melhor maneira possível, atendendo a suas menores
vontades.
Mas acontece que Natasha não era bem humana. Três noites a cada mês, quando a Lua estava
no apogeu, sua pele rosada se enchia de pelos negros, ela encolhia e criava uma
cauda entre as pernas, fugindo para o mato.
Não era um lobisomem como se poderia supor, nem tampouco uma bruxa. Natasha virava uma gata, com os mesmos olhos
verdes e o pelo muito negro. Como nunca
confiara o suficiente em seu marido para lhe contar a respeito, combinara com
ele desde o princípio que nesse período iria visitar sua mãe viúva, que morava
sozinha. Subia então em uma carroça e
realmente se dirigia para a casa de sua mãe Nadezhda, por que esta também se
transformava em gata, somente com o pelo branco e olhos muito azuis e as duas
corriam juntas, subiam pelos telhados, ficavam cantando um dueto de miados para
a Lua e saciavam a fome caçando coelhos e passarinhos. Passado esse período, ela voltava calmamente
para o moinho, como se nada houvesse transcorrido, cheia de amor pelo marido e
pelas meninas, a quem tratava, se fosse possível, ainda melhor do que antes.
Só numa coisa ela não atendia a Vássia. Este queria ter um filho, para que o menino
herdasse seu moinho quando ele morresse, como o herdara de seu pai e este de
seu avô, por gerações sem conta. Natasha
nunca o contrariou, mas evitou sempre engravidar, porque sabia que só teria
meninas e que estas seriam gatas como ela, durante aqueles três dias em cada
mês e que seria muito difícil esconder a verdade de seu marido ou de suas
enteadas. Os anos foram passando e
Vássia perdeu as esperanças, mas consolou-se no amor que tinha pelas filhas,
que via crescer fortes, alegres e saudáveis.
Porém uma noite, o destino interferiu. Natasha e Nadezhda, as duas gatas, saíram a
perseguir uma perdiz ao longo de muitas verstas
e quando finalmente a caçaram e a comeram, tinham ficado ambas exaustas da
corrida e perceberam que estavam nas vizinhanças do moinho. É
claro que, enquanto gatas, elas não pensavam como seres humanos e, com toda a
naturalidade, subiram ao teto do moinho, onde ficaram a miar para a Lua, como
sempre o faziam. Mas desta vez acordaram
Vássia e o moleiro, que precisava se levantar cedo, saiu para a rua com um
facão na mão esquerda. Ao ver que eram
somente gatos, pegou uma pedra e a lançou com pontaria certeira, acertando em
cheio a gata branca, que caiu do telhado.
Ao ver a mãe nessas condições, Natasha pulou em cima de Vássia,
pretendendo defendê-la, mas o resultado foi que este lhe cortou a pata direita
com um golpe do facão.
Natasha e Nadezhda, feridas e estropiadas, fugiram com a
maior dificuldade, mas Vássia somente as perseguiu por algum tempo, lavou-se do
sangue e foi dormir. No outro dia de
manhã, para seu horror, ao sair para o pátio, viu uma mão humana ensanguentada
e caída no lajedo. Reconhecendo uma das
mãos da esposa, atirou-a dentro do fogão, em desespero, antes que as meninas a
vissem. Findo o prazo de costume, chegou
Natasha, com uma bandagem avermelhada cobrindo um dos pulsos. Ela ainda tentou explicar-se com ele, contou
sobre sua maldição, disse que o amava muito, que não fazia nada de mal enquanto
gata, mas de nada adiantou. Movido pelo
medo e pelo remorso, Vássia correu-a de casa.
As meninas choraram, mas não mudou de ideia. Natasha, que o amava sinceramente, ficou tão
desesperada que se lançou às águas do Dnieper, afundando instantaneamente.
Quase de imediato, Natasha morreu de frio nas águas
geladas, mal chegando a se afogar e seu coração ficou tão gelado quanto o
rio. Em vez de rusalka, tornou-se uma buditchka,
um espírito da morte, dominando de imediato as ninfas do rio. Mas quando o Rei do Rio, um gênio chamado
Kulebowy, veio indagar que tipo de perturbação estava ocorrendo entre suas rusalki, ela prontamente se fez meiga,
curvou-se perante ele e se demonstrou tão carinhosa que logo o seduziu. Kulebowy não era um espírito nem bom, nem
mau, era mais indiferente... mas quando se achava de mau humor, por ver gente
demais nadando ou atravessando ou quando despejavam algum tipo de sujeira nas
águas, ele se enfurecia e provocava tempestades ou aumentava as correntezas e
redemoinhos, o que causava a morte dos que não se refugiavam bem depressa em
uma das margens. Natasha, que se tornara
um espírito maligno, puxava os pescadores dos barcos, ia até as praias seduzir
rapazes e crianças e chegava a se atirar contra as pontes para capturar os que
estivessem atravessando por ela, porque seu coração estava cheio de mágoa e de
ressentimento pelo seu amor traído.
Vássia montou em seu cavalo e foi até a cabana em que
morava a sogra, para lhe dar a triste notícia.
Mas a porta estava aberta e, quando entrou, Nadezhda estava fria e morta
no chão, com uma feia ferida na testa.
Vássia sentiu um grande arrependimento, mas o mal estava feito: quem
mandara as bruxas se intrometerem em sua vida?
Mesmo assim, mandou enterrar a sogra em uma cova dupla, com lugar também
para Natasha, embora seu corpo nunca fosse achado. Ele pediu ao sacerdote da aldeia que
abençoasse o túmulo. O pope, que era supersticioso, se recusou
a princípio, mas foi facilmente convencido por um punhado de rublos.
Como
o corpo não fosse encontrado, o sacerdote da aldeia, aconselhou a Vássia: “A
tua esposa se afogou no Dnieper, porém seu corpo nunca foi encontrado, deve estar
transformada em uma rusalka e talvez
venha também buscar a tua filha... O melhor é te mudares para a aldeia. Escolheste um feio nome para a menina e o
Rei do Rio pode achar que ela lhe foi consagrada; ele tem fome de mais rusalki e pode ordenar que a venham
capturar...” Porém Vássia respondeu que
era moleiro e tinha de trabalhar na beira do rio. Se fosse para a aldeia, teria
de fazer um longo trajeto até o moinho e levantar ainda mais cedo que de
costume... E ajuntou, de brincadeira: se
eu chegar no moinho noite fechada, será a mim que uma rusalka vai pegar...
Contudo, recomendou severamente a Rusalka e a Ana que
nunca se aproximassem do rio desacompanhadas.
Passou-se o tempo e Rusalka, então com uns quinze anos, achou que já era
grande o bastante e foi ao rio sozinha lavar umas roupas. Quase em seguida apareceu Natasha. Rusalka assustou-se, mas Natasha sempre fora
praticamente uma mãe para ela e a bruxa do rio lhe falou de forma tão delicada,
que Rusalka perdeu o medo e quando deu de si, Natasha já a puxara pela mão,
carregando-a para as profundezas, a fim de tornar-se mais uma rusalka, como seu nome já a havia
predestinado... A princípio, estava confusa demais para perceber o que lhe
ocorrera, mas quando o notou, começou a queixar-se amargamente. Natasha, embora fosse agora uma buditchka, arrependeu-se do que fizera,
porque a menina não tinha culpa da raiva com que seu pai a expulsara e somente
a havia atraído para vingar-se dele. Mas
nada havia a fazer. Procurou consolá-la,
dizendo que uma rusalka vivia muito
mais que uma jovem humana, quase eternamente, nunca adoecia e nem se
feria. Como prova, mostrou sua mão
direita, que Kulebowy fizera crescer de novo.
Mas Rusalka não se conformava e passava dizendo que tinha saudade de seu
pai.
Vássia tinha ficado desesperado com o acontecido e desta
vez mudou-se prontamente para o povoado, arrendou o moinho, comprou terras e a
melhor casa da aldeia e passou a viver da renda de suas propriedades. Enquanto isso, Kulebowy se afeiçoara à pureza
da menina e lhe explicava ser muito difícil a uma rusalka recobrar a forma humana. A única maneira era apaixonar-se
por um homem da terra que retribuísse seu amor completamente, o que era muito raro,
porque os homens são muito volúveis e vão atrás da primeira mulher que lhes
sorri... Porém Rusalka não perdia aquele fio de esperança e, durante todas as
noites em que o rio não estava congelado, tomava seu pente e subia à praia,
empoleirando-se na forquilha de uma bétula, de um carvalho ou de um salgueiro e
ali ficava horas a fio, penteando os cabelos e cantando em louvor à Lua.
Um dia, o príncipe Levko, o kniazy, isto é, o senhor daquelas terras, ouviu falar na Corça
Branca, que diziam ser uma princesa encantada, e decidiu caçá-la. Muitas vezes perseguira os gamos e as corças,
que serviam para a alimentação do castelo e que só podiam ser mortos pelos
nobres. Um dia, realmente divisou a
Corça Branca, que fugiu velozmente.
Levko a perseguiu tão depressa que se afastou de seus acompanhantes,
porque não queria perder-lhe o rastro.
Já era noite quando chegou à beira do Dnieper.
A Corça Branca deparara com Rusalka e deu uma guinada,
embrenhando-se no mato em uma direção bem diferente da que seguira até
então. Levko chegou até a bétula em que
estava Rusalka, sua pele branca e nua resplendendo à luz do luar, seus longos
cabelos de um louro platinado lhe descendo até os joelhos e seus olhos que
brilhavam com um fogo verde e pensou que fosse a Corça Branca
desencantada. Sacou a espada, porque a
lenda dizia que tinha de misturar o seu sangue com o sangue dela para completar
o desencantamento. Mas Rusalka achou
muito belo aquele príncipe alto e louro e imediatamente se apaixonou. O príncipe sentiu o amor que vinha dela e
seus sentimentos imediatamente se excitaram.
Embainhou a espada e abriu-lhe os braços... Rusalka saltou da árvore,
cheia de confiança.
Ela admitiu que era encantada, mas sem mentir que fosse a
Corça Branca. O príncipe a beijou
apaixonadamente e lhe pediu permissão para dar um talho em seu braço, a fim de
misturarem seu sangue. O sangue de
Rusalka era agora verde, mas no escuro Levko não notaria a diferença e
consentiu. O príncipe cortou de leve os
braços dos dois e encostou os talhos para misturar o sangue... Rusalka viu-se tomada de um amor
incontrolável e permaneceu nos braços de Levko até de madrugada. Então, levantou-se e disse que estava na
hora, que procuravam o príncipe por toda parte e que ele tinha de ir encontrar
seus companheiros. Levko disse que
queria casar com ela e como não tinha um anel, tirou um leque de seu bornal e
lho deu. Rusalka ficou encantada e
recomeçou a pentear seus cabelos ressequidos, dizendo que tinha primeiro de
pedir permissão a seus pais, que tinham sido encantados como ela. Mas marcou encontro com Levko no mesmo lugar e
na noite seguinte.
Assim que o príncipe montou em seu cavalo e partiu,
Rusalka mergulhou no Dnieper e foi diretamente pedir a ajuda de seus pais
adotivos. Kulebowy disse ser uma péssima
ideia, mas Rusalka insistiu e a própria Natasha, movida pelo remorso, instou
com o seu rei. Kulebowy soltou então um longo suspiro e declarou: “Ainda acho
ser uma péssima ideia, mas se queres tanto, vai procurar Yezibaba, a bruxa...
Ela conhece todos os feitiços e ervas e sabe a cura de todas as maldições. Só não te esqueças de que tudo tem seu preço,
até mesmo os amores mais sinceros!...”
Mas Rusalka não deu ouvidos ao rei e indagou do endereço
da bruxa. Foi até sua caverna submarina
e Yezibaba se recusou a ajudá-la. Mas
novamente, Rusalka insistiu tanto que a feiticeira concordou. Ela realmente sabia como retornar uma rusalka à forma humana, ainda mais uma
que fora afogada à força. Infelizmente,
não podia castigar a Rainha do Rio e teria de fabricar uma poção, cujo
resultado era muito mais arriscado. Para
começar, ela perderia a fala humana, embora não sua inteligência e isto
dificultaria muito a sua vida entre a gente da terra... Mas a parte pior era que o seu príncipe não
poderia nunca esquecer-se dela, caso contrário, ambos morreriam e seriam
condenados à eterna danação como criaturas do mal.
Rusalka, na ingenuidade de seus quinze anos, achou que
Levko jamais a trairia e tomou prontamente a poção. Sentiu dores terríveis pelo corpo todo e, de
repente, alguma coisa lhe subiu à boca e ela teve a impressão de que estava
vomitando a própria garganta... Era a fala de Rusalka! Yezibaba pegou o pequeno objeto vermelho e o
guardou dentro de uma concha nacarada.
Assim que se recuperou, Rusalka percebeu que se afogava uma segunda vez
e nadou depressa até a superfície, alcançando a margem com algumas
braçadas. Subiu à praia e viu que seus
cabelos haviam encurtado e sua pele recuperara o tom rosado anterior... Mas
estava nua! Suas roupas haviam ficado
na praia, no dia em que se afogara...
Surgiu então Natasha das águas, com um séquito de rusalki e a vestiu ricamente, com um
trajo de gala de seda e brocado verde, sandálias de madrepérola nos pés, uma
tiara de ouro e um colar de âmbar no pescoço.
Depois lhe pediu o pente que ela
sempre carregava e Rusalka o entregou.
Natasha lhe disse: "Se algum dia precisares retornar, o meu afeto
poderás reconquistar, junto a este pente que em minha mão luziu." E
mergulhou novamente no rio, seguida por suas donzelas. Logo a seguir, chegou o príncipe e achou
Rusalka ainda mais bela à luz do dia do que lhe parecera de noite. Só estranhou que ela não falasse, mas quando
indagou se tinha a permissão dos pais para se casar, ela concordou com a
testa.
Levko
a colocou na garupa de seu cavalo e a levou até o palácio. No caminho, explicou-lhe que, embora achasse
o nome “Rusalka” muito bonito, havia gente supersticiosa no palácio que poderia
começar a falar em bruxaria... Então a chamaria de Liubliana, podia ser? Novamente, Rusalka acenou com a cabeça,
apertando o queixinho contra o ombro do príncipe. A sua chegada causou furor no castelo, todos
a acharam extremamente bela e o príncipe já contara na véspera haver
desencantado a Corça Branca. Só
estranharam que ela não falasse, mas o príncipe disse que ela era muito
tímida.
Assim
que ficaram a sós, Rusalka viu uma folha de pergaminho e uma pena de ganso e
começou a escrever o que lhe acontecera.
O príncipe entendeu e mandou chamar o sacerdote do castelo para abençoar
os dois. O pope leu o que ela escrevera e perguntou se era batizada. Rusalka respondeu que o fora, antes de seu
encantamento e o sacerdote decidiu que ficaria melhor aos olhos de todos se ele
a batizasse na capela antes de celebrar o casamento... E assim transcorreu e
Rusalka e o príncipe Levko não cabiam em si de felicidade!...
Ora,
aconteceu que o leque que Levko dera a Rusalka era presente de uma princesa que
estava hospedada no castelo e que já se considerava noiva do príncipe. A
princesa conhecia artes mágicas e o seduzira, segundo pensava,
completamente. Mas o amor verdadeiro de
Levko por Rusalka havia superado o encanto... Quando a princesa viu que os dois
iriam realmente se casar, mordeu os lábios de raiva e de despeito, jurando que
se vingaria daquela humilhação. E
rogou-lhes uma praga de esquecimento. A
maldição não fez efeito sobre Rusalka, mas quando o pope disse ao príncipe que podia beijar sua noiva, ele estremeceu,
olhou para Rusalka e não a reconheceu. Embora
o sacerdote e as testemunhas tentassem dissuadi-lo, ele jurou que nunca vira
aquela mulher antes e que estava apaixonado era por sua princesa, hospedada no
castelo. Rusalka saiu correndo da capela
aos prantos, fugiu do castelo e foi de volta até o rio.
O
casamento foi anulado, porque não fora consumado e o príncipe foi imediatamente
apresentar-se à sua primeira noiva, que lhe indagou de saída onde estava o
leque que lhe havia dado? Levko não foi
capaz de responder, porque nem sequer lembrava e a princesa lhe disse uma
porção de palavras humilhantes, mandou transportar suas arcas e baús para a
carruagem, partindo com suas servas e escolta, após soltar gargalhadas
zombeteiras diante dos protestos de amor do príncipe.
Naturalmente,
o banquete foi cancelado, mesmo que não houvera tempo suficiente para preparar
muita coisa... Levko foi deitar-se, humilhado pela princesa e sem fazer a menor
ideia do que fizera. Seu esquecimento
votara sua alma à perdição eterna, mas ele nem sequer lembrava de Rusalka,
embora sentisse uma vaga inquietação, como se, realmente, tivesse se esquecido
de alguma coisa. Na madrugada seguinte,
levantou-se, depois de decidir que aquilo de que se havia esquecido era caçar a
Corça Branca. Deu ordens a seus
estribeiros e heiduques e outra vez partiu em caçada.
Entrementes,
Yezibaba sentira um forte arrepio, tomara a concha nacarada e fora avisar Natasha
e Kulebowy do que havia sucedido. Os
dois foram esperar Rusalka na margem e a tomaram em seus braços; ela voltou a
ser uma rusalka e a respirar embaixo
da água. Yezibaba abriu a concha com um
espinho e sua fala saiu nadando até entrar novamente em sua boca, enquanto
Natasha lhe devolvia o pente mágico. Mas
Yezibaba lhe disse que a maldição se cumprira: ela não era mais uma rusalka, porém uma buditchka, um espírito do mal e tinha de afogar muitos rapazes e
crianças. Mas Rusalka protestou não se
sentir assim, olhava seu coração e não encontrava nele maldade alguma. Então, Yezibaba lhe falou que havia uma
solução. Entregou-lhe uma adaga e disse
que ela deveria ir procurar o príncipe e matá-lo. Ela voltaria a ser uma rusalka do bem, mas ele, que tanto mal lhe fizera, seria condenado.
Ora,
Levko perseguira de novo a elusiva Corça Branca até o mesmo ponto do rio em que
conhecera Rusalka. Quando a viu, toda a
sua memória retornou e ele quis beijá-la.
Mas este seria o beijo da morte... A boa Rusalka recusou-se a matá-lo e
lançou a adaga nas águas do rio... Mas
foi inútil. Um clarão deslumbrante os
envolveu, Rusalka foi empurrada para dentro do rio e o príncipe caiu morto no
mesmo lugar, tornando-se então em um espírito da floresta, sem alma e sem amor,
sem pouso ou paradeiro, sempre vagueando para pagar a terrível falta que nem
sabia ter cometido. Rusalka encolheu-se
em uma caverna, recusando-se a matar para continuar vivendo e foi definhando
aos poucos. O Rei do Rio balançou a
cabeça, dizendo como eram fúteis os sacrifícios dos humanos, pois ninguém podia
lutar contra os desígnios do destino...
*** ***
***
Levko perdera todo o acordo de si, caminhando noite e
dia, sem parar, invisível para todos.
Seu corpo foi sepultado e um de seus primos tornou-se o kniazy, o príncipe daquele lugar. Por muito tempo Levko perambulou pelos
bosques, sem sentir fome nem frio, inverno e verão, sem precisar de dormir ou
descansar. Um dia, porém, ao atravessar
uma senda, deparou com o cadáver de um homem, a garganta aberta e todo ensanguentado. A terrível visão lhe trouxe de volta o
entendimento. O infeliz deveria ter sido
vítima de ladrões ou salteadores... E a
memória começou a lhe voltar aos poucos.
Naquela noite, Levko escutou um choro muito triste e não
conseguiu localizar de onde vinha. Mas
já no dia seguinte, escutou uma conversa lamuriosa no caminho e projetou-se
rapidamente até lá. Sendo um espírito,
podia facilmente sair de um lugar e aparecer em outro... E viu um homem um
pouco assustado, conversando com um garotinho, que teria no máximo dois
anos. O menino repetia sem parar que
queria ser batizado e o homem se desculpava, por não ser padre nem pope, nem monge nem abade. Subitamente, o menino perdeu a paciência e se
lançou à garganta do homem aterrado.
Mais que depressa, Levko saltou sobre os dois e tanto fez
que conseguiu desprender o menino da garganta do homem, que ficou ainda mais
assustado, pois somente via o menino esperneando no ar, sem poder enxergar
Levko. Ergueu-se depressa e saiu
correndo pela estrada a fora. O menino
desatou a chorar e Levko o encostou no ombro.
O menino disse que ele lhe havia negado o batismo! “Como assim?” quis saber Levko. “Eu sou um espírito da floresta, nem sequer
tenho alma, como poderia te batizar?”
Mas o menino, entre prantos, explicou que precisava ser batizado e
queria beber o sangue do viajante. “Mas
por quê?” indagou Levko, confuso. “Porque ele já foi batizado e traz o batismo
no sangue!... Eu beberei o batismo com o sangue dele!... Agora me solta, vou ter de procurar um outro
caminhante!...” E ao ver a direção que Levko tomava, começou a berrar: “Não me
jogues no rio! Perderei a minha última
chance de salvação!...”
Mas Levko não o soltou e transportou-se com ele até a
margem do rio, onde invocou Rusalka várias vezes, até que ela apareceu. Como também era um espírito, podia ver Levko
perfeitamente, que conservava um aspecto igual ao que tivera em vida, apenas transparente
e invisível para os olhos mortais.
Levko lhe explicou a situação e ela respondeu: “Esse que tens aí é um
bebê rusalka. Foi afogado antes do batismo e só descansará
depois de receber o sacramento.” “E o
que posso fazer?” perguntou Levko.
“Terás de ir até uma igreja que tenha um campanário e tocar o sino sete
vezes... Então, te tornarás visível e poderás pedir ao sacerdote que realize o
batismo desse infeliz menino.” Mas como
a criança continuasse a chorar e a se debater, ela tomou uma decisão muito
corajosa. Retirou o pente que a protegia
e a mantinha viva e o enfiou nos cabelos sujos da criança. Imediatamente, ele se aquietou e Rusalka fez
mil recomendações a Levko para que lhe trouxesse seu pente de volta o mais
breve possível.
Levko avistou ao longe um campanário e foi até a
capela. Tocou o sino sete vezes e o pope encarregado apareceu. “O que você quer, fazendo todo esse
estardalhaço a esta hora da noite? “Eu
vim trazer este menino para ser batizado.”
“O quê, a esta hora?” O pope examinou
o rosto do menino e falou: “Ele não me parece doente. Traga seu filho amanhã de manhã pelas dez
horas.” Mas Levko insistiu: “Ele não é
meu filho, eu o encontrei abandonado na floresta e ele têm de ser batizado
agora mesmo.” O padre suspirou: “Está
bem, já estou acordado mesmo... São dez kopieki...”
Levko explicou que não tinha sequer uma dessas moedinhas de cobre, que dirá dez!... O sacerdote o encarou e disse que não
trabalhava de graça. “Já que não tem
dinheiro, então me dê esse pente!...”
O espírito da floresta hesitou, porque prometera devolver
o pente a Rusalka... Mas achou que o menino era mais importante e entregou o
objeto ao padre, que o pôs no bolso da batina e levou os dois até o interior da
capela, destampou a pia batismal e celebrou o sacramento, resmungando de má
vontade. Mas o sacramento é apenas um
sinal externo e visível de uma graça interna e espiritual, sagrado mesmo quando
o sacerdote é indigno. O rosto do menino
se iluminou ao final da cerimônia e então se desprendeu dos braços de Levko,
começando a flutuar. Para assombro dos
dois, subiu até o teto da capela, que atravessou, de certo a caminho do
paraíso. O padre ficou tão embasbacado,
que nem protestou quando Levko pegou o pente de volta e quase morreu de susto
quando este também desapareceu sem deixar qualquer sinal.
Levko transportou-se para a margem do Dnieper, onde
Rusalka o aguardava ansiosa. De certo
modo, ela percebera estar correndo o risco de perder seu pente inestimável, o
que significaria uma morte por desidratação.
Mas Levko entregou-lhe o pente, sem nada dizer, embora ambos, sendo
espíritos, soubessem o que se passava na mente um do outro. Antes que discutissem o que fariam daí para a
frente, Yesibaba emergiu das águas, parecendo muito satisfeita e afirmando que
o encanto da poção fora quebrado pela generosidade que ambos haviam
demonstrado, Levko por se esforçar tanto pela criança abandonada e Rusalka por
se arriscar a perder a vida ao ter-lhe emprestado seu pente mágico.
Mas Rusalka sabia que não podia ser assim. Nenhum deles era um ser maligno, mas os
corpos de ambos se haviam perdido e só poderiam viver como espíritos, ainda que
fossem espíritos do bem. Então se dispor
a fazer um último sacrifício. “Não,
Yezibaba, não pode ser assim. Eu sou uma
rusalka e fui assassinada, mas minha
morte não poderá ser vingada, portanto, só poderei ser libertada quando chegar
a data que o destino marcara para meu falecimento no dia em que eu nasci. Mas Levko não. Eu não o matei, apenas lhe dei o beijo da
morte sem pretender fazê-lo, porque você mesma me induziu a erro, dando-me
aquela adaga. Eu não precisava dela
para que ele morresse e se o matasse de propósito, aí sim, teria provado ser
uma criatura do mal e me tornaria uma buditchka. Além disso, quem cometeu a falta fui eu, ao
beber aquela poção. Levko é inocente,
por mais volúvel que seja o seu coração... Você não me enganará de novo. Dar-lhe-ei minha bênção inteira e ele
ressuscitará. Terá uma nova vida e
poderá ser feliz, ainda que não seja mais um príncipe. E sei muito bem que me esquecerá de novo.”
Levko protestou que nunca mais a esqueceria e tentou
beijá-la, mas Rusalka se desviou, lançando-se no rio. Yezibaba olhou para o espírito do bosque e
fez alguns sinais cabalísticos, resmungando palavras em uma língua
desconhecida. Então, tudo se apagou ao
redor dele.
*** ***
***
Levko se acordou na margem, junto ao moinho do Dnieper e
sabia ser o moleiro, embora apenas arrendasse o local e tivesse de pagar a
maior parte do que ganhava ao proprietário.
De que fora um príncipe e que amara Rusalka se havia esquecido
totalmente, conforme ela lhe dissera que iria acontecer. Acontece que o proprietário do moinho era o
mesmo Vássia, pai de Rusalka, mas a quem ele só se dirigia como Gospodin Vassily, ou seja, Sr.
Basílio. A combinação era que ele
entregaria toda a farinha pertencente ao moinho para Vássia vender e receberia
somente uma pequena percentagem em troca de seu trabalho.
Mas Levko, quando ia deixar a farinha no armazém de
Vássia, que ficava ao lado de sua casa, encontrava-se com Ana, a irmã mais moça
de Rusalka, e os dois se apaixonaram profundamente. Ele foi pedir a mão de Ana a seu pai, que
negou seu consentimento. Com todo o
dinheiro que ganhara da exploração de suas terras e com as vendas de suas
lojas, tornara-se muito rico e fora escolhido como prefeito da aldeia. Sua ambição era casar sua única filha
sobrevivente com um nobre ou, pelo menos, alguém de igual fortuna. Levko disse que era pobre, mas poderia trabalhar
arduamente e juntar algum dinheiro.
Vássia riu-se dele: “Meu caro Levko, eu sei que você trabalha arduamente
e o respeito por isso... Pensa que pode acontecer com você o mesmo que
aconteceu comigo. Mas você esquece que
eu enriqueci trabalhando porque o moinho já era meu, enquanto você é apenas um
arrendatário.”
E quando Ana foi suplicar-lhe que revogasse sua decisão,
ele foi peremptório: “De forma alguma quero que você chegue perto daquele
rio! E se eu consentisse em seu
casamento, iria morar na casa do moinho, onde se criou!... Nem sequer pense em
me falar de novo nesse assunto!” E
disse a Levko que fosse embora e não chegasse de novo perto de sua filha, caso
contrário, romperia o arrendamento e ele ficaria sem casa e sem emprego. Os dois se separaram muito tristes e Levko
voltou para o moinho, caminhando lentamente pela estrada escura. Era de noite, mas havia lua e ele conhecia
bem o caminho. Ao chegar perto do moinho,
deitou-se na grama, para descansar e pensar.
Quando se acordou, viu luzes no moinho! Primeiro pensou que estava pegando fogo,
depois viu que as luzes brilhavam pelas janelas da casa... Pé ante pé, foi até a janela mais próxima e
viu que a sala estava toda iluminada, com uma dúzia de mulheres lindas
dançando, jogando e brincando em seu interior.
Então reparou em uma jovem triste, a mais bela de todas, realmente, que
estava encostada na parede oposta, sem participar das brincadeiras e sentiu que
uma pureza intensa se emanava dela. Mas
a mais velha das mulheres, de olhos verdes e cabelos negros lisos, subitamente se transformou em um corvo
e saiu a perseguir as outras, de brincadeira, entre gritinhos e risadas. Mas Levko teve a sensação oposta de que aquela
mulher estava cheia de maldade.
Subitamente, Levko percebeu que aquelas eram as rusalki do rio e que decerto estavam ali
para lhe tirar a vida!... Apesar do
medo, controlou-se e começou a recuar bem devagar, para não ser visto. Contudo, a jovem triste o enxergara e saiu
disfarçadamente, vindo em sua direção. Levko
ia correr, mas ao ver o sorriso no rosto dela, sua memória voltou de
repente. Era Rusalka! De que modo a
esquecera? Mas e agora se apaixonara por
Ana! O que poderia fazer? Mas tomado pela intensidade de seu amor
antigo, abraçou-a e tentou beijá-la.
Rusalka colocou-lhe as mãos no peito e o empurrou com delicadeza: “Não,
meu querido, seu coração mudou; além disso, sei que minha irmã o ama e não irei
magoá-la.
"Eu quero apenas a sua
felicidade
e não me venha mais falar de
amor.
Isso eu lhe peço como um último
favor.
Seu coração é bem volúvel, na
verdade...
Esta é a última vez que me verá,
porém de longe, eu sempre
vigiarei
e fique certo de que o
castigarei,
se minha Ana por você se
magoará...
Só vim aqui para dar-lhe um
pergaminho,
que de meu pai irá mudar o
pensamento.
Ele então consentirá no
casamento,
portanto, trate minha mana com
carinho!"
Rusalka
então lhe pôs na mão uma carta lacrada e correu de novo para dentro do salão,
soltando um assobio agudo. No mesmo
instante, as lamparinas se apagaram e houve absoluto silêncio. Levko não viu ninguém sair e teve medo de
entrar no escuro da noite. Voltou ao
ponto em que estivera antes, deitou-se e logo adormeceu. Acordou-se com a luz da Lua a lhe bater nos
olhos. Ergueu-se lentamente, olhou a carta
em sua mão, mas não sabia como fora parar ali.
Caminhou até o moinho, viu que estava tudo em ordem, passou pela porta
interna e entrou na cabana. Tudo estava
exatamente como havia deixado, nenhum sinal de que houvera alguma festa durante
a noite. Colocou a carta sobre a mesa,
distraidamente, tomou um banho e foi deitar-se.
O outro dia era domingo e não precisava trabalhar.
Acordou-se já na metade da manhã,
com o sol entrando pela janela. Tinha
uma vaga noção de um sonho muito estranho.
Ao sair para a cozinha, a fim de preparar um chá quente e cortar pão e
queijo, deparou com uma carta escrita em pergaminho e claramente endereçada ao
“Sr. Prefeito Vassily”. Sem pensar duas
vezes, vestiu-se, atrelou seu cavalo à carroça e foi até a aldeia. Vássia estava acordado, mas o recebeu
friamente. Levko explicou simplesmente
que lhe haviam dado aquela carta para lhe entregar. O prefeito o encarou e abriu o lacre.
Enquanto lia, seus olhos se arregalaram, sua boca se entreabriu e prendeu a
respiração. Levko nunca soube o que estava escrito na missiva, mas agora Vássia
o olhava com outros olhos... Pigarreou,
sacudiu a cabeça e disse: “Pois muito bem!
Consentirei no seu casamento com Ana, mas com uma condição: Não vou permitir que Ana more no moinho, novamente!...
Serás, portanto, o meu superintendente.
Já estou velho e tenho os negócios da aldeia para cuidar. Ficarás com a responsabilidade de tudo e
virás morar nesta casa, com tua esposa e comigo. Ana de todos os meus bens é a herdeira: quando
chegar minha hora derradeira, terás de tudo a posse permanente...”
E foi assim. Levko e Ana se casaram e viveram por muitos
anos juntos, amando-se ternamente. A
velhice do velho Vássia foi consolada por seis netos lindos, robustos e
saudáveis. Negociante habilidoso, logo
arrendou o moinho para outro encarregado, dentro das mesmas condições... E se de alguma coisa Levko se recordava,
nunca falou nem à esposa e nem ao sogro.
Mas certamente se esforçou ao máximo para tornar Ana feliz. Porém Rusalka continuou em solidão, penteando
seus longos cabelos sobre um galho
robusto de um velho carvalho, sem esquecer nunca de quem lhe partira o
coração...
Passados anos, quando chegou o tempo predestinado
para a conclusão de sua vida natural, sem que uma única ruga se lhe mostrasse
ao rosto e seus cabelos continuassem tão louros como antes, conforme seu
costume de décadas, foi cantar uma canção à lua em uma bela noite de verão,
calando-se subitamente ao ver um raio sólido de luar descer até a terra e
pousar diretamente em frente dela. E
uma mulher de extrema beleza, pele, olhos e cabelos muito prateados,
estendeu-lhe os braços e lhe falou: “Vem, Rusalka, eu sou a Lua e vim te
buscar. Irás viver comigo e te darei a
bênção que um dia me pediste e que não te dei então, pois nem mesmo a Lua é
capaz de garantir a felicidade de alguém, quando seu amor é impossível...”
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