sábado, 27 de julho de 2013


JOÃO E MARIA DE HUMPERDINCK
(Hansel und Gretel, sobre texto de Adelheid Humperdinck Witte)
Versão poética de William Lagos, 23 JUN 13

JOÃO E MARIA I

Numa clareira no meio da floresta
vivia um fabricante de vassouras,
por nome Peter, em cabana miserável,
com seus dois filhos, duas crianças louras,
e sua esposa, que ao menos uma cesta
trançava a cada dia, com esforço,
todos passando privação insuportável...

Subia a mata pelos flancos da montanha
de Ilsenstein, mas lhes dava poucas frutas,
eram mais algarrobas e pinhões,
algumas bagas mais ou menos brutas,
para enganar-lhes a fome que se assanha.
Sofriam muito assim as criancinhas,
quando não eram dessas frutas estações... 

João aprendera a fabricar vassouras
e Maria as roupas velhas costurava,
mas estômago vazio não há quem dome:
de seu trabalho o menino se queixava;
e a menina deixou linha e tesouras,
com suas vassouras foram dançar os dois,
sempre uma forma de esquecer a fome...

Porém no auge de seu divertimento,
abre-se a porta e a mãe lhes aparece,
furiosa por não vê-los trabalhar...
Ela vendera seus cestos, mas nem prece
nem discussão mudara o sentimento
do mordomo que cuidava da mansão:
só pagaria após o patrão voltar!...


JOÃO E MARIA II

Contudo, ao contemplar seu sofrimento,
tivera pena uma criada do castelo,
que às escondidas lhe deu jarro de leite.
Era pesado, mas o trouxe com desvelo,
a fim dar a seus filhos alimento,
mesmo cansada, sem tomar uma só gota,
queria guardar para os meninos tal deleite...

Porém ao ver as crianças a brincar,
Frau Gertrud, exausta do caminho,
começou a bater nos dois meninos,
que, ao defender-se de seu abespinho,
acabaram por fazê-la tropeçar:
a jarra tomba e o leite todo entorna!
Ficam os três em tristes desatinos...

Frau Gertrud só chorava sem parar
e as crianças aumentaram a choradeira:
“Ai, meu Deus!  O que nós vamos comer?”
Secou a mãe sua lágrima derradeira:
“Ao invés de beber, irei limpar!...
Esta vida de pobre, como é triste!...
Nada mais tenho para lhes oferecer...”

“Ainda bem que não quebrou o jarro,
pois o peguei emprestado na mansão...
Ainda é cedo.  Vão colher frutinhas...”
“Mas não é tempo... E já acabou o pinhão,”
disse Hansel.  “Choveu e virou barro...”
(Ele entre nós é conhecido por Joãozinho.)
“Vão assim mesmo!  E encham duas cestinhas!”

JOÃO E MARIA III

“Quando seu pai chegar, o que vou dizer?
Ele saiu para buscar macega,
vai voltar carregado feito mula!
Não há vassouras novas para entrega!
Vocês ficaram o dia inteiro sem comer!
Deixaram o chão todo grudento e sujo!
Saiam daqui!” – ela gritou, de raiva fula.

Saíram as crianças, assustadas,
Gretel pegou Joãozinho pela mão.
Seu nome quer dizer “Margaridinha”,
mas entre nós tem diversa tradução:
é “Mariazinha”, nas histórias relatadas
de João e Maria, como se acostumaram
contar os velhos para cada criancinha.

E lá se foram os dois, pela floresta,
cada um a sua cestinha balançando,
enquanto a mãe ia limpar o chão.
Cada restinho de leite foi secando,
para depois ir trançar mais uma cesta.
“Se ao menos Peter conseguisse algum dinheiro!”
Depois, exausta, foi deitar-se no enxergão...

Caindo a noite, uma outra voz se escuta,
cantando alegremente pela mata...
Chega Peter, um tantinho embriagado,
carregando duas cestas e uma grande lata,
feliz da vida, apesar de sua labuta...
É que vendeu suas vassouras e escovas!
Fez um bom rancho com o dinheiro assim granjeado!


JOÃO E MARIA IV

Foi acordar sua esposa com um beijo.
Ela se ergueu, em bocejos resmungando:
“Não tenho nada para o teu jantar!...
Mas o marido responde, gargalhando:
“Ô, mulher velha, acaba o cacarejo!
Olha o que trago nas cestas e na lata!
Boia de sobra para nos alimentar!...”

Gertrudes foi olhar os mantimentos;
com tanta coisa fica maravilhada.
“Toucinho, manteiga, salsichas e farinha!
Queijo e cebolas e café de cambulhada!
Quatorze ovos, arroz, feijão e condimentos!
Mais cinco quilos de pão a acompanhar!...”
E a lata!... Cheia está com bolachinhas!...

“E ainda trouxe schnapps na garrafa!
Não só vendi, me pagaram os atrasados!
Esta semana comeremos bem...!
Cadê os garotos?  Trouxe bolo pros safados!...”
Gertrudes cai em si, de pura estafa:
“Mandei colher morangos pelo bosque!
E até agora estão por lá,  meu bem!...”

Peter ficou completamente apavorado:
“Mas, mulher, pois ninguém te contou?
Uma bruxa mudou-se para cá!
Quase uma dúzia de crianças devorou!...”
Os dois, talvez, ela tenha já apanhado!
Anda logo, vai buscar a minha garrucha!
Vamos depressa procurá-los acolá!...”


JOÃO E MARIA V

Hansel e Gretel tinham tido sorte,
pois encontraram um renque de framboesa:
comeram a fartar, as cestinhas encheram:
“Mamãe fica contente, com certeza!
Vai nos perdoar por nosso mau esporte,
por termos todo o leite derramado!...
E alegres pela mata os dois correram...

Mas Mariazinha quis tecer ramos de flores:
colocou na cabeça uma coroa
e pôs um colar no pescoço de Joãozinho,
brincando juntos enquanto a luz se escoa...
E de repente a noite e seus pavores
caem na mata, sob a copa do arvoredo!
Nenhum dos dois já encontra seu caminho!...

Eles penetram num renque de salgueiros,
cujos ramos compridos e flutuantes
lhes causam muito medo e morno pranto;
os dois se encolhem, mais perdidos do que dantes!
Usam raízes como travesseiros
e então, de um tronco, sai o Homem do Sono!
Toca em suas testas, sussurrando um acalanto...

E assim ambos adormecem, abraçados,
as cestinhas no meio das raízes,
veem fogos-fátuos, depois veem pirilampos...
O Homem do Sono os protege nessas crises,
toca uma flauta e os anjos são chamados,
para impedir lhes sobrevenha qualquer mal...
Por sobre as árvores vêm, cruzando os campos...

JOÃO E MARIA VI

Quatorze anjos velam sobre eles:
dois à cabeça e dois junto a seus pés,
dois à esquerda e dois à sua direita,
dois os acordam para antigas fés,
dois os protegem, pairando acima deles,
dois os conduzem ao país dos sonhos,
para as crianças a terra mais perfeita...

E nela os dois caminham, de mãos dadas,
por entre nuvens de alegres borboletas,
a estrada a seus pés limpa e macia;
cantam os pássaros mil canções secretas,
criam as flores paragens perfumadas
e sob o brilho luminoso dos arcanjos
some-se a fome e o cansaço se esvaía...

Estão deitados sobre o musgo, na verdade,
e os anjos formam escudo impenetrável:
eles nem sentem qualquer frio, qualquer perigo,
o sorriso nos seus rostos é adorável,
nessa ilusão de total felicidade,
na Terra do Cuco das Nuvens, fantasia
que traz à alma e ao corpo doce abrigo...

E assim dormem, durante a noite inteira...
Seus pais, porém, vagam doidos pela mata,
uma lanterna nas mãos, em sobressalto,
sem que o cansaço a cada um abata,
nesse temor que a ausência mais ligeira
faz emergir no paterno coração,
a percorrer do chão cada ressalto...

JOÃO E MARIA VII

Amanhece...  E a gentil Fada do Orvalho
derrama pingos de geada nas suas testas.
As duas crianças acordam e percebem,
pelo canto dos pássaros em festas,
que só dormiram sob espesso galho,
sem o teto habitual de sua casinha:
gotas de orvalho nas mãos juntam e bebem.

Só então se lembram de que estão perdidos...
Durante a noite murcharam as framboesas,
mas há esperança nova no arrebol...
Começam a andar, em incertezas,
por arredores até então desconhecidos...
Nunca estiveram nessa parte da floresta,
mas é mais fácil marchar à luz do sol...

Quando as brumas se dissipam por completo,
à frente deles aparece uma casinha...
Por um momento, até pensam ser a sua,
mas a ilusão se esvoa, depressinha...
Bem diferente é dessa casa o teto,
marrom escuro, igual que chocolate...
Duas janelas de alcaçuz dão para a rua...

Paredes lisas, parecendo massapão,
massas folhadas, biscoitos incrustados,
a chaminé é toda feita de glacê...
O caminho é de pasteis bem encaixados,
De um lado se ergue um forno com fogão
e dele escapa um cheiro delicioso,
que sua gula desperta, ora se vê!...

JOÃO E MARIA VIII

Ao redor, há uma porção de bonequinhos,
todos feitos de merengue e massapão,
do seu tamanho, garotos e meninas,
os seus enfeites e até cada botão
são feitos de gemada e de docinhos
e os seus rostinhos desenhados em confeitos,
iguais que os bolos de confeitarias finas...

Eles pensam ainda estar sonhando;
bem devagar, vão tocando nas paredes,
mel e açúcar sai na ponta de seus dedos...
Em igual situação, também não cedes?
Logo pedaços os dois vão retirando,
cada um deles com melhor sabor...
Quais serão dessa casa os seus segredos?

Abre-se a porta e sai a feiticeira;
joga uma corda, buscando prender João;
porém ele se desvia, já assustado...
“A corda é açúcar-cândi”, diz-lhe então,
numa voz bem melíflua e chamadeira...
Mas quando os dois começam a fugir,
um mau encanto sobre eles é lançado...

A bruxa, assim, as crianças paralisa
e empurra os dois pela porta da cabana;
Enfia João dentro de uma gaiola
e põe Maria a varrer a sua choupana.
Depois os braços de João, gentil, alisa
e considera o menino bem magrinho,
com pouca carne para a sua esfola...


JOÃO E MARIA IX

Começa, então, a enchê-lo de comida,
para deixá-lo, bem depressa, mais gordinho...
Maria, contudo, lhe parece em bom estado,
faces rosadas, já está bem mais fofinha...
Então a leva para o forno, sem mais lida
e lhe dá ordens de trazer lenha para o fogo,
pois nem sequer quer trabalhar pesado!...

Enquanto espera que seu forno aqueça,
em que pretende jogar Maria inteira,
ela lhe ordena dar mais comida a João!...
Mas esquecera sua varinha a feiticeira
e aproveitando a agradável distração,
Maria quebra o encanto da gaiola,
assim dando liberdade a seu irmão!...


Ela sai, deixando João com a varinha...
Mas acha o fogo estar pronto a feiticeira!
Abre sua porta e diz à garotinha:
“Olhe de perto, se o calor dessa lareira
já está bom para se assar galinha...”
Porém Maria finge não saber,
enquanto João por detrás dela se avizinha...

E quando a bruxa chega junto à porta,
os dois juntos lhe dão forte empurrão!
Trancam a porta com a magia da varinha
e enquanto a velha suplica por perdão,
os dois se abraçam, pois nenhum se importa
com os gritos da feiticeira canibal
e em torno ao forno, fazem uma dancinha!...

JOÃO E MARIA  X

E de repente, ocorre uma explosão!
A bruxa morta se faz em mil pedaços,
some a choupana e surgem dez crianças
a sacudir merengue de seus braços:
eram os bonecos que pareciam massapão!
Pedem que nelas toquem com a varinha,
pois voltar para seus pais têm esperanças!...

Quando tocadas, recobram movimento
e se põem a dançar com os dois irmãos...
Pedem depois que as toquem novamente
e então somem, quais pequenos furacões.
Voltam às casas de seus pais nesse momento
e a varinha se quebra e torna em poeira,
mal não fará no futuro a qualquer gente!...

A explosão atrai a mãe e o pai,
que encontram sãos e salvos João e Maria!
E então se abraçam, no maior alívio...
Mas nas ruínas da choupana algo luzia
e a remexer nas cinzas o casal vai,
onde encontra um panelão cheio de ouro!
É o suficiente para anos de convívio!...

João e Maria retornam para o lar
e Peter monta uma fábrica de vassouras,
para aplicar melhor esse dinheiro.
João conheceu uma mulher de tranças louras
e Maria encontrou um garboso cavalheiro
e no devido tempo, vinda a idade,
foram os dois bem felizes se casar!...

EPÍLOGO

E quanto à bruxa?  Existe até quem diga
que um feiticeiro recolheu os seus pedaços
e como tanto doce ela fizera
até guardava dentro em si certa doçura...
O feiticeiro, com condão e grande figa
uma pasta preparou, deu uns amassos,
a mistura foi assando, igual que pão,
mel e hortelã na massa acrescentara,
cravo e canela e especiaria pura,
e para sua despensa a transportara,
virada em bolo de doce massapão!...



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