terça-feira, 7 de outubro de 2014







A FORMIGA E A NEVE
(Folclore Europeu, na Inglaterra atribuído a John Clay, em Portugal a João de Barro, conta com múltiplas versões, inclusive dos ameríndios Seama, da Nação Pueblo Laguna e dos Abazulus africanos [A Formiga e a Areia Movediça], recolhida no nordeste por Sílvio Romero e recontada por Monteiro Lobato.  Versão poética William Lagos, 6 out 2014)

A FORMIGA E A NEVE I

Saem as formigas tão logo a primavera
começa a pôr as flores em botão;
algumas espécie apenas limpam o chão,
pegando as folhas no solo já mofadas
e os cadáveres deixados por insetos.
Passado o inverno em sua mansa espera.
fica a rainha com atendentes dedicadas,
a maior parte das velhas já encolhidas;
surgem as novas dos ovos eclodidas,
nascendo adultas, por processos bem secretos.

Em tempo frio, aparecem raramente,
especialmente nas terras de europeus,
dos quais herdamos tantos contos seus.
Existem outras, chamadas Cortadeiras,
que ao invés de limpar, são mais daninhas;
já é no outono que aparecem mais frequente
e vão depressa depredar nossas roseiras.
Quase sempre é de noite que se ativam
e aos jardins com suas carreiras crivam,
folhas cortando das plantas mais vizinhas.

Essas dividem seu trabalho, com certeza:
algumas sobem aos ramos, sem enganos
e cortam na hora o resultado de anos
de algum cultivo longo e cuidadoso.
Meu avô lembro, saindo com lanterna,
suas covas a encontrar com esperteza,
a fumigar um inseticida poderoso,
única forma de livrar-se delas;
lenço no rosto e todas as janelas
bem fechadas, em que veneno não se interna.

Já com mandíbulas nascem as Cortadeiras
apropriadas para as folhas recortar;
algumas em pedaços, outras a despojar
o talo inteiro, para lançá-lo ao chão...
Ali estão à espera outras formigas
de maior força, as Carregadeiras,
que laboriosas se dedicam à função
de transportar os verdes pedacinhos,
bem mais pesados até que seus corpinhos:
grande façanha, que decerto não consigas!

A FORMIGA E A NEVE II

E então seguem para o formigueiro;
o vento, às vezes, vem atrapalhar,
no chão suas patas firmes a cravar,
até que alcancem seu buraco aberto,
e uma após outra ali desaparece,
para voltar ao trilho bem certeiro,
até o arbusto inteiro estar deserto;
que nunca errassem era até mistério,
mas feromônios são assunto sério:
o cheiro alheio cada uma conhece...

Ainda há formigas chamadas de Soldados,
bem maiores que as outras, certamente,
que contra intrusos combatem raramente
(acredito bem mais sejam feitores,
para manter as escravas no trabalho);
têm mandíbulas mais fortes e pendurados
ficam às vezes no dedo de agressores,
mas sem picarem, nem cortarem fundo:
grossa a epiderme do garoto vagabundo
que se diverte a desafiar seu talho!...

Dentro da cova, soltam as formigas
as flores feitas em mil fragmentos
e então retornam, sem impedimentos;
por outro grupo são substituídas,
que a colheita empilham com cuidado.
Não se alimentam dela essas aurigas: (*)
são as peças com paciência distribuídas
para um fungo por elas cultivado,
que ao próprio uso não se acha destinado,
porém a um ácaro, que por elas foi domado.
(*) Transportadoras, condutoras, carregadoras.

Há muitas gerações lhes produz mel
e é dessa secreção que se alimentam
e com esse líquido todas se contentam
(embora eu desconfie seja urina...)
e dessa forma, funciona a ecologia,
ou antes a simbiose – dão farnel
a seus pulgões, satisfeitos em sua sina,
que então se deixam, calmamente, ordenhar
(ordenha mecânica será que vão experimentar?)
nesses milênios a viver em harmonia...

A FORMIGA E A NEVE III

Há as que chamam de Formigas Loucas,
que andam sozinhas, parecendo sem destino,
subindo por parede, torre e sino...
Mas na verdade, são exploradores,
a procurar novas fonte de alimento;
quando as encontram, lançam mensagens moucas,
que pelos ares adejam, sem temores;
em breve outras ali mesmo surgirão,
para roubar açúcar, doce e pão
e aos proprietários causar padecimento.

Têm vida curta essas formiguinhas
e assim, não se importam de morrer,
se a comunidade puderem defender;
porém se esforçam em repassar imagem;
dizem que duas assim se cumprimentam,
enquanto movimentam suas patinhas:
são feromônios a transmitir mensagem,
sem palavras, em seu código secreto,
ou então parte do alimento, com afeto,
regurgitam e uma a outra alentam...

Logo a mensagem chega a uma terceira
e em breve, verdadeira multidão,
sem exagero, milhares ou milhão,
já se dirigem para o lugar determinado,
sem qualquer pensamento ou raciocínio.
São como hemácias, do sangue numa esteira,
em avanço veloz, mas compassado:
cada uma sente o cheiro de sua trilha
e caso alguma caia em armadilha,
chegam as outras para igual declínio...

As mais ferozes são as formigas Correição,
que realmente avançam aos bilhões,
a Mãe-Formiga protegida por bastiões
formados por milhões entrelaçadas...
Chegando a um rio, elas se prendem, como pontes,
umas às outras, em incrível armação,
para as demais atravessarem, apressadas;
ou então formam uma enorme bola viva
a rainha com seus ovos, negra diva,
bem protegidos, de outros insetos fontes...

A FORMIGA E A NEVE IV

Por onde passam, deixam um deserto,
já que estas não procuram cultivar
e nem quaisquer pulgões alimentar,
porém tudo devoram no caminho,
sem apenas destruir a vegetação,
mas se enfiam no menor espaço aberto,
comem os insetos em qualquer buraquinho,
devoram cobras e aves bem maiores
e mesmo os animais, até os piores:
fogem as onças destas hordas, de antemão!

Naturalmente, ainda há as Vermelhas,
quase todas Solenopsis, bem ferozes,
que nunca fogem ao encontrar algozes,
mas os enfrentam no ardor de suas picadas,
ácido fórmico injetando nas feridas...
Elas se escondem nos assoalhos e nas telhas,
sob as paredes, em pirâmides formadas
por milhares de pequenos grãos de areia;
de seu veneno todo mundo se arreceia,
pois são pequenas porém muito aguerridas!

Em geral, elas caçam outros insetos
e os levam para as covas aos pedaços;
outras atrás, vem alisando os traços,
que ninguém encontre seu vasto formigueiro;
e é para isso que lhes servem as picadas,
matando presas e enfrentando desafetos;
algumas vezes em combate solareiro
podem ser vistas, embora nunca à noite,
contra formigas pretas, duro açoite,
ou outras vermelhas não aparentadas...

Como as demais, não comem as suas presas,
que para afídios constituem refeição,
dos quais depois elas bebem secreção,
novamente uma expressão da simbiose
que há milênios também estabeleceram.
Parecem pequeninas e indefesas,
mas é quase por efeito de acidose
que os alicerces penetram e corroem;
deixadas livres, até casas destroem
esses insetos que já teus pés morderam...

A FORMIGA E A NEVE V

Certamente é uma história muito antiga
a desta formiguinha que se atreve,
em dia de inverno, a mover-se sobre a neve,
quando, em geral, encontram-se escondidas
e aparece em infinidade de versões,
a favor ou desfavoráveis à formiga;
talvez fosse, por palavras atrevidas,
expulsa do formigueiro confortável;
ou escapar de seu destino imponderável
ela quisesse, quando morrem gerações...

Pois dão lugar, no chegar da primavera
a esses novos milhões a desovar,
para de novo o formigueiro continuar
a que a rainha só dá continuidade.
Certamente a avisaram do perigo;
quem sabe imprevidência a fome gera
e saísse para ajudar comunidade;
ou muito simplesmente se alagou
o formigueiro em que antes habitou
e se dispôs a enfrentar frio inimigo.

O fato é que a formiguinha, bem valente,
saiu trotando pela branca neve;
sentiu-se bem e a desafiar se atreve:
“Neve, dizem que és forte, mas eu te domino!”
E a Neve prendeu-lhe os pés, só de pirraça...
“Solta meus pés, ó Neve impertinente!”
Mas riu-se a Neve, de jeito bem ladino:
“Por que te deveria soltar, se me ofendeste?
Puro castigo pelo mal que cometeste!...”
“Mas me enregelo no frio que ora me abraça!”

“Ora, disseste ser mais forte do que eu!
Reconheces que sou mais forte agora?”
“Sim, reconheço, mas deixa-me ir embora!”
“É frio demais e não me posso derreter!...
De que jeito vou tuas patas libertar?...”
“Mas deve haver alguém ainda mais forte!...”
“Claro que há!  O Sol sempre me venceu!
Deixa-me em paz, agora vou adormecer...”
E assim a formiguinha, obstinada,
lançou os olhos ao céu, meio ofuscada,
ao Sol rogando que lhe mudasse a sorte!...

A FORMIGA E A NEVE VI

“Ó Sol celeste, tu que és tão forte
que a Neve derretes que me prende,
dá-me um raio de calor ou então me vende!”
E riu-se o Sol: “Mas com que irás pagar?
“No formigueiro tenho um pote de ouro!...”
“De que me serve, por maior que seja o porte?
O ouro da terra com minhas lágrimas criei!”
E a formiguinha orgulhosa então pediu:
“Eu rezarei a ti por todo o estio!...”
“Ora, de rezas já recebi um tesouro...”

A formiguinha falou, já enregelada:
“Por favor, Sol, tem piedade de mim!...
Chegou uma Nuvem a flutuar, assim
e a face do Sol deixou escondida...
De longe veio a voz, meio abafada:
“Nem que eu quisesse!  A Nuvem atravessada
cobre meus raios e minha luz é impedida...”
E a formiguinha transformou o seu apelo:
“Ó Nuvem forte, que ocultas Sol tão belo,,
sai do caminho, para que eu seja libertada!...”

A Nuvem riu-se, em plumas esgarçada:
“Ora, mais cedo ou mais tarde, eu sairei,
mas não depende de mim, pois voarei
para esse ponto a que me impele o Vento...
E atrás de mim, já chegam muitas mais...”
E a formiguinha, já bem menos emproada:
“Ó Vento forte, do maior portento,
que a Nuvem empurras e sempre te atende,
que tapa o Sol e a Neve que me prende
não consegue derreter, por frio demais!...”

“Empurra a Nuvem e destapa o Sol,
que venha, enfim, a derreter a Neve,
que minhas patinhas a prender se atreve,
para que eu possa, enfim, me libertar!”
E disse o Vento: “Sou forte, mas o Muro
me segura no caminho, igual que anzol...
Essa tua Nuvem até posso soprar,
mas atrás dela vejo grande variedade,
acho até mesmo que virá tempestade:
vais te afogar!  Esse é teu destino duro!”

A FORMIGA E A NEVE VII

Viu a formiga um Muro mais além
e com o frio já se tornara penitente,
falando então de forma diferente:
“Ó Muro mágico, que és tão poderoso
que paras o Vento, que a Nuvem impele
que tapa o Sol e impede assim também
que ele derreta este manto pegajoso
que contra mim formou a branca Neve
e que meu passo obrigou a entrar em greve,
solta-me agora, antes que inteira gele!”

Porém o Muro nada lhe respondeu
e a formiguinha ficou desesperada:
“Seu Muro, Seu Muro, não escuta nada?”
O Muro pareceu então ter despertado:
“Desculpe-me, eu sou surdo como um Muro...
Mas meu nome é Murat...  Qual é o seu?”
“Eu sou Myrmica Rubra, do pezinho congelado
e sinto fome...” “Mas que tem isso a ver comigo?”
“Por favor, Seu Murat!... Mostre-se amigo,
estou morrendo de frio no gelo duro!...”

“Não entendi.  O que posso eu fazer...?”
“Não impeça mais do Vento a sua passagem!
As Nuvens ele força em vassalagem
E elas não deixam chegar a luz do Sol
e a Neve na minha patinha não derrete!...”
“Meu alicerce não consigo desfazer...
Mas quem sabe, por uma luzinha de farol,
caso um Rato viesse e me furasse,
um pouquinho de calor a alcançasse...
Talvez a força da Neve então afete...”

“Mas Seu Murat, não pode fazer mais nada?”
“Eu sou um Muro, Myrmica, e do lugar
em que me colocaram não posso me afastar,
senão, até com prazer a ajudaria...”
Myrmica Rubra viu a cabeça de um Ratinho,
do Muro à sombra mal e mal mostrada...
Esse se mexe, ela pensou, e poderia
chegar até aqui e me auxiliar,
com unhas fortes toda a neve a escavar...
“Seu Rato, chegue aqui, só um pouquinho!...”

A FORMIGA E A NEVE VIII

O Ratinho espetou as suas orelhas:
“Quem me fala?” – indagou, meio assustado.
“Sou eu, Myrmica Rubra, aqui do lado!”
“Ah, uma formiga.... E o que quer de mim?”
“Que venha até aqui me libertar!...”
“Aqui estou bem... Há bons cacos de telhas
e o grande Muro que me protege assim...”
“Mas Rato, tu és tão forte que o Muro
podes roer, até lhe abrir um furo,
para que o Vento consiga ali passar!...”

“Então a Nuvem ele poderá soprar
e o Sol brilhar sobre o solo novamente
e derreter esta má Neve inclemente
e minha patinha finalmente se soltar...
Faz esse furo, por favor, antes que eu morra!
Ou então chega até aqui, para escavar,
senão faleço de tanto enregelar!...”
Olhou-a de longe, duvidoso, o Rato:
“E se eu vou até aí e chega um Gato?
Ele me pega!  É veloz, por mais que eu corra!”

“Mas então, faça um buraco nesse Muro,
para que passe por ali um raio do Sol
e sobre mim recaia, qual farol
e assim corrija o meu triste destino!”
Mas disse o Rato: “Vou meus dentes desgastar
se for roer um material assim tão duro!
Protege-me o Muro desde pequenino...
Se por acaso um buraco nele abrisse
e então a passagem do Vento permitisse,
a ventania só me iria prejudicar!...”

“Ainda se você fosse boa de comer...
Mas já provei formiga e não gostei!
Perante mim, o Gato é como um rei;
peça a ele... Se quiser, ele lhe ajuda...
Ôpa, acabei de escutar o seu miado!
Adeus, Myrmica, eu já vou me esconder...”
Em vão a formiguinha procura quem a acuda,
mas escutou outro miado e viu o Gato...
“Ó Senhor Gato, que és mais forte do que o Rato
que rói o Muro que o Vento tem tapado!...”

A FORMIGA E A NEVE IX

“Ele empurra a Nuvem que atrapalha o Sol
que a Neve branca poderia derreter
e minha patinha do gelo desprender,
por favor, venha até aqui a me ajudar!...”
Ficou o Gato lambendo o próprio pelo...
“Quem é você, a falar com tal farol...?”
“Eu sou Myrmica, fiquei presa por azar!...
Desenterre a minha patinha, por favor...”
“Ora, Formiga tem um gosto que é um horror...
Descer do Muro não vale um fio do meu cabelo...”

“Mas, Senhor Gato, estou para morrer...”
“Estou aqui à espera de um Ratinho
que recém apareceu no buraquinho
e serviria de deliciosa refeição...
Se aparecer de novo, eu vou saltar...
Depois, andar por aí não vou querer...
Além do frio, anda por perto um Cão,
que não me come, mas pode me morder...
Coisa deselegante, como pode perceber...
Assim, lamento, mas vai ter de desculpar...”

Vendo o Gato a lamber os seus bigodes
e mais adiante, os passos de um cachorro,
a formiguinha foi-lhe pedir socorro:
“Senhor Cão, por favor, venha e me ajude!”
“Quem me chama?” – disse o Cão, bem surpreendido.
“Sou eu, Myrmica Rubra – e só tu podes
me livrar desta Neve que me ilude!
Ó Poderoso Cão, arranca a neve,
senão o frio vai me matar em breve!...
“Não me chame de Cão, meu nome é Fido!...”

“Ah, Senhor Fido, vós que sois tão forte
que facilmente podeis morder o Gato,
que está à espreita para caçar o Rato,
que lentamente poderia roer o Muro,
que ataca o Vento, que a Nuvem domina,
que tapa o Sol, de quem depende a sorte
para poder transformar meu fado escuro
e derreter essa Neve que me prende,
vem, por favor, a minha prece atende!
Arranca a Neve e me transforma a sina!...”

A FORMIGA E A NEVE X

“Dona Myrmica, o que puder, farei!...”
E não se negue que Fido se esforçou,
pois com as patas traseiras arrancou
uma porção de neve a seu redor...
“Seu Fido, por favor, está me tapando!
Dessa maneira, eu me sufocarei!...”
“Sinto muito, mas então acho que é melhor
conseguir de madeira algum Bastão
que, com cuidado, a retire desse chão...
Eu vou fugir, que vem um se aproximando!”

De fato, chegava aos pulos um Bastão
que haviam feito com madeira grossa;
foge depressa o Cão, antes que possa
levar nas costas meia dúzia de pauladas!
E a formiguinha: “Bastão, tu que és tão forte
que consegues espancar assim o Cão,
que morde o Gato, que come às dentadas
o Rato, que rói o Muro, que tapa o Vento,
que sopra a Nuvem, que faz impedimento
à luz do Sol, tem pena da minha sorte!...”

“Mas o que queres?”  O Bastão se aproximou.
“Que corras o Cão, que morde o Gato,
para que medo não tenha mais o Rato
e se disponha, então, a roer o Muro
que ataca o Vento, que essa Nuvem corre,
que sem ter pena, a luz do Sol tapou
e aqui me deixa na Neve e no escuro:
eu vou morrer aqui, enregelada!...”
“Ora, o tal Cão já fugiu e foi embora...
Mas socorro eu tentarei te dar agora.”
E o Bastão na dura Neve cavocou...

Mas foi inútil!...  A Neve que arrancou,
igual que o Cão, só fazia acumular,
sem conseguir à Formiga destapar...
“Pobre Myrmica, vou ter de desistir,
mais forte do que eu, é o Fogo, que me queima!”
E aos pulos, o Bastão já se afastou...
Suplicou Myrmica ao Fogo para vir:
“Ó Fogo poderoso, que és tão forte,
que queimas o Bastão de grande porte,
que ao Cão espanca e lhe tira toda a teima!...”

A FORMIGA E A NEVE XI

“Esse Cão que morde o Gato, que come o Rato,
que rói o Muro, que me tapa o Vento,
que empurra a Nuvem, que causa o contratempo
e cobre o Sol e assim a Neve não derrete,
vem, por favor, aqui me proteger!...”
Chegou o Fogo, trazendo calor grato,
que a potência da Neve assim afete...
Do solo o gelo começou a se desfazer,
os montes ao seu redor a derreter,
mas a Formiga continuava presa ao chão!

Pois logo a Água começou a surgir...
“Ela me apaga!  Estou fugindo agora!”
Disse o Fogo e bem depressa foi embora.
Myrmica Rubra se dirigiu à Água:
“Senhora Água, tu que és tão forte,
que apagas o Fogo, que consegue destruir
qualquer Bastão, consola hoje minha mágoa!
Ele correu o Cão, que espantou o Gato,
que encheu de medo o infeliz do Rato,
que poderia ter mudado a minha sorte!...”

“Como assim?” – a Água lhe indagou.
“É que o Rato poderia roer o Muro,
que ataca o Vento, que limpa o céu escuro
e espanta a Nuvem, que atacou o Sol,
que poderia a Neve fria derreter!”
Com voz plangente, Myrmica suplicou:
“Por favor, Dona Água, este branco anzol
vem arrancar para soltar a minha patinha!”
Mas a Água respondeu, com risadinha:
“Eu sou a Neve que o Fogo veio desfazer...”

“E se quiseres, eu me derreto ainda mais,
porém já estou, em parte, a te cobrir...
Se subir mais, como poderás fugir?...
Formiguinha, vais morrer é afogada!
De quem precisas, agora, é do Cavalo,
mais forte do que eu, pois bebe até demais!”
E a formiguinha escutou uma relinchada
e novamente sua longa reza dirigiu
para um lindo Cavalo, que surgiu:
“Senhor Ginete, retire-me do valo!...”

A FORMIGA E A NEVE XII

Cruzava o Cavalo sobre a Neve, calmamente...
“Quem me chama?” – disse, olhando para o chão.
“Sou eu, Myrmica Rubra, meu irmão!...
Tu que és tão forte, que bebes a Água,
que apaga o Fogo, que queima o Bastão,
que espanca o Cão, que morde o Gato tão valente,
que come o infeliz Rato, ajuda a mágoa
deste serzinho indefeso!... Afasta o Muro,
que ataca o Vento, que do céu retira o escuro,
quando a Nuvem impele, igual que um furacão!”

Disse o Cavalo: “Mas que posso eu fazer?”
“É que a Nuvem está tapando o Sol
e a Neve prende minha patinha qual anzol!
Eu te suplico que me venhas libertar!...”
“Formiga, és tão pequena!  Mal te vejo...”
“Podes a Água que me afoga aqui beber?”
“Bebo, pois não, mas de quê te irá adiantar?”
Assim, de fato, toda a Água ele sugou
e então a Neve novamente congelou,
sem que Myrmica se escapasse nesse ensejo!...

“Pois é,” disse o Cavalo.  “Foi como eu esperava...
“E não adianta agora que vá lamber a Neve;
com minha língua o mais certo é que te leve
para minha boca e acabe te engolindo...
É com capim que mato a minha fome,
mas nos meus dentes, sem querer, te mastigava...
Olha, ouço o passos do Homem, que vem vindo
e ele consegue muitas coisas realizar...
Costuma até no meu lombo me montar
e por amor, deixo que pense que me dome...”

Chegou o Homem, com seus passos apressados
e foi pegando o Cavalo pela crina...
“Ó Homem, favorece esta minha sina!
Tu que és tão forte, que domas o Cavalo,
que bebe a Água, que todo o Fogo apaga,
que o Bastão queima, cujos golpes pesados
batem no Cão e assim podem espantá-lo,
antes que morda o indiferente Gato,
que está no Muro à espera dessa Rato,
que furá-lo poderia, igual que forte adaga!...”

A FORMIGA E A NEVE XIII

Disse o Homem: “Não entendo essa tua história.”
“É que o Muro o Vento está atacando,
que poderia estar a Nuvem empurrando
para deixar passar a luz do Sol,
que derrete a Neve que meu pezinho prende!...
Desce tua mão, em poderosa glória
e afasta o gelo que me prende como anzol!”
Mas riu-se o Homem: “Por que mudar tua sorte?
Prefiro até que encontres logo a Morte,
que é tão forte que até a mim me rende!...”

Ficou Myrmica assim tão desapontada,
meio afogada, a tiritar de frio,
que a Morte ela invocou, num calafrio,
e ela chegou a indagar: “Por que me apressas?
Lutaste tanto, só querendo me afastar...”
“É que estou completamente enregelada,
sob camadas de Neve tão espessas...
Sei que és mais forte que do Homem toda a mágoa,
que monta no Cavalo, que bebe tanta Água,
que apaga o Fogo, que o Bastão pode queimar...”

“Que o Cão espanca, que morde o Gato,
que caça o Rato, que perfura o Muro,
que o Vento tapa e deixa tudo escuro,
porque não pode à Nuvem assoprar,
ordena ao Sol que me venha libertar!...”
“No Sol não mando, sequer por um boato,
somente Deus o pode dominar!...
Porém eu posso tocar-te com meu dedo:
do fim da vida só eu sei o segredo...
Minha liberdade agora queres aceitar?...”

“Senhora Morte, por favor, quero viver!”
“Então, transfiro a Deus o contratempo;
não sei se quer contigo perder tempo!...
E num suspiro, a Morte se afastou.
Ficou a Formiga sozinha com a Neve...
“Então, Myrmica, ninguém quis te proteger?
Pediste a tantos e de nada te adiantou!...
Mas dou-te agora uma final alternativa:
ergue os olhos a Deus, em prece viva:
talvez ele te atenda em tempo breve...”

A FORMIGA E A NEVE XIV

Somente então ela a Deus se dirigiu,
após tantos deuses falsos consultar:
“Ó Grande Deus, ouve meu suplicar!
Gelada neve prende minha patinha,
mas sou jovem demais para morrer!
Rezei a tantos e nenhum me ouviu,
ó tu que dominas a Morte tão daninha,
que leva o Homem, que monta o Cavalo,
que bebeu a Água que enchia o valo,
que apaga o Fogo que o Bastão pode vencer!”

“Que espanta o Cão, que correu com o Gato,
que estava à espera para comer o Rato,
que o Muro não roeu, terrível fato,
que assim tapou o Vento e o impediu
que para longe a Nuvem empurrasse
e o Sol entrasse na Neve em que me abato
e me impedisse de morrer de frio,
por tua graça, me contempla desde o céu,
das nuvens a afastar o grosso véu,
até que a Neve enfim me libertasse!...

Então Deus lhe respondeu, lá das alturas:
“Acaba com essa história!  Comprida está demais!
Se eu te soltar, não furtarás jamais?”
“Juro, Senhor, por tudo quanto é santo!”
“Até que enfim reconheces meu poder...
Mas tudo bem, já sofreste tuas agruras...”
E estendeu-lhe a fímbria de seu manto,
a formiguinha então a transportar
para um telhado, onde a deixou a suspirar,
sem de fato em arrependimento poder crer...

Pela parede desceu a formiguinha,
sem ter como voltar ao formigueiro;
subiu a estante até o açucareiro,
esquecida da promessa, já a furtar,
na triste contingência de seus atos...
E ali a encontrou uma criancinha;
com uma colher, depressa a retirou,
sendo de novo atirada sobre a neve,
na qual se congelou, em tempo breve,
como acontece com todos os ingratos...

EPÍLOGO

E se um final esperavas diferente,
como relatam em mais de uma versão,
a Natureza tem pouca compaixão
por quem infringe suas inexoráveis leis:
que ela ficasse no seu formigueiro,
durante o inverno, junto com sua gente!
Vosso destino vós mesmos o fazeis
e cada ato tem sua própria consequência,
por mais que o próprio Deus tenha paciência
e até atenda o teu pedido interesseiro...

Existe uma versão dos índios Seama,
do Oeste americano, da nação Pueblo Laguna,
em que a Formiga indaga, uma por uma,
às criaturas, qual delas é a mais forte;
em vez de Bastão, aparece um Atiçador
a que o Fogo derrete; e a Formiga chama
não ao Cavalo, mas a um Boi de maior porte,
para esgotar a poça em que se afoga;
e ao invés da Morte, a uma Faca roga,
que a corta em três, para mostrar-lhe seu valor...

E na versão de Romero e de Lobato
aparecem uma onça e um tamanduá...
Incoerência certamente há,
porque esses bichos nunca veem a neve...
E no final, Deus se cansa da historinha
e até a manda furtar, que triste fato!
A Morte a invocar sequer se atreve...
Já na África, um elefante acha a formiga
que no final se torna dele amiga,
da areia movediça salva-lhe a patinha...

A maioria só estava a zombar dela,
fingindo até dizer palavra amiga,
mas sem o menor interesse na formiga,
qualquer desculpa assim a apresentar,
igual que amigos na necessidade,
que a porta te fecham e até a janela,
só nas baladas a te acompanhar...
E se chegaste até o final da narração,
quem sabe inventas tua própria versão
e aos outros contes, na maior vaidade!...

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com



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