A FORMIGA E A NEVE
(Folclore Europeu, na Inglaterra
atribuído a John Clay, em Portugal a João de Barro, conta com múltiplas
versões, inclusive dos ameríndios Seama, da Nação Pueblo Laguna e dos Abazulus
africanos [A Formiga e a Areia Movediça], recolhida no nordeste por Sílvio
Romero e recontada por Monteiro Lobato.
Versão poética William Lagos, 6 out 2014)
A FORMIGA E A NEVE I
Saem as formigas tão logo a primavera
começa a pôr as flores em botão;
algumas espécie apenas limpam o
chão,
pegando as folhas no solo já mofadas
e os cadáveres deixados por insetos.
Passado o inverno em sua mansa
espera.
fica a rainha com atendentes
dedicadas,
a maior parte das velhas já encolhidas;
surgem as novas dos ovos eclodidas,
nascendo adultas, por processos bem
secretos.
Em tempo frio, aparecem raramente,
especialmente nas terras de
europeus,
dos quais herdamos tantos contos
seus.
Existem outras, chamadas
Cortadeiras,
que ao invés de limpar, são mais
daninhas;
já é no outono que aparecem mais
frequente
e vão depressa depredar nossas
roseiras.
Quase sempre é de noite que se
ativam
e aos jardins com suas carreiras
crivam,
folhas cortando das plantas mais
vizinhas.
Essas dividem seu trabalho, com
certeza:
algumas sobem aos ramos, sem enganos
e cortam na hora o resultado de anos
de algum cultivo longo e cuidadoso.
Meu avô lembro, saindo com lanterna,
suas covas a encontrar com
esperteza,
a fumigar um inseticida poderoso,
única forma de livrar-se delas;
lenço no rosto e todas as janelas
bem fechadas, em que veneno não se
interna.
Já com mandíbulas nascem as
Cortadeiras
apropriadas para as folhas recortar;
algumas em pedaços, outras a
despojar
o talo inteiro, para lançá-lo ao
chão...
Ali estão à espera outras formigas
de maior força, as Carregadeiras,
que laboriosas se dedicam à função
de transportar os verdes pedacinhos,
bem mais pesados até que seus
corpinhos:
grande façanha, que decerto não
consigas!
A FORMIGA E A NEVE II
E então seguem para o formigueiro;
o vento, às vezes, vem atrapalhar,
no chão suas patas firmes a cravar,
até que alcancem seu buraco aberto,
e uma após outra ali desaparece,
para voltar ao trilho bem certeiro,
até o arbusto inteiro estar deserto;
que nunca errassem era até mistério,
mas feromônios são assunto sério:
o cheiro alheio cada uma conhece...
Ainda há formigas chamadas de
Soldados,
bem maiores que as outras,
certamente,
que contra intrusos combatem
raramente
(acredito bem mais sejam feitores,
para manter as escravas no
trabalho);
têm mandíbulas mais fortes e
pendurados
ficam às vezes no dedo de
agressores,
mas sem picarem, nem cortarem fundo:
grossa a epiderme do garoto
vagabundo
que se diverte a desafiar seu
talho!...
Dentro da cova, soltam as formigas
as flores feitas em mil fragmentos
e então retornam, sem impedimentos;
por outro grupo são substituídas,
que a colheita empilham com cuidado.
Não se alimentam dela essas aurigas:
(*)
são as peças com paciência
distribuídas
para um fungo por elas cultivado,
que ao próprio uso não se acha
destinado,
porém a um ácaro, que por elas foi
domado.
(*) Transportadoras, condutoras, carregadoras.
Há muitas gerações lhes produz mel
e é dessa secreção que se alimentam
e com esse líquido todas se
contentam
(embora eu desconfie seja urina...)
e dessa forma, funciona a ecologia,
ou antes a simbiose – dão farnel
a seus pulgões, satisfeitos em sua
sina,
que então se deixam, calmamente,
ordenhar
(ordenha mecânica será que vão
experimentar?)
nesses milênios a viver em harmonia...
A FORMIGA E A NEVE III
Há as que chamam de Formigas Loucas,
que andam sozinhas, parecendo sem
destino,
subindo por parede, torre e sino...
Mas na verdade, são exploradores,
a procurar novas fonte de alimento;
quando as encontram, lançam
mensagens moucas,
que pelos ares adejam, sem temores;
em breve outras ali mesmo surgirão,
para roubar açúcar, doce e pão
e aos proprietários causar
padecimento.
Têm vida curta essas formiguinhas
e assim, não se importam de morrer,
se a comunidade puderem defender;
porém se esforçam em repassar
imagem;
dizem que duas assim se
cumprimentam,
enquanto movimentam suas patinhas:
são feromônios a transmitir
mensagem,
sem palavras, em seu código secreto,
ou então parte do alimento, com
afeto,
regurgitam e uma a outra alentam...
Logo a mensagem chega a uma terceira
e em breve, verdadeira multidão,
sem exagero, milhares ou milhão,
já se dirigem para o lugar
determinado,
sem qualquer pensamento ou
raciocínio.
São como hemácias, do sangue numa
esteira,
em avanço veloz, mas compassado:
cada uma sente o cheiro de sua
trilha
e caso alguma caia em armadilha,
chegam as outras para igual
declínio...
As mais ferozes são as formigas
Correição,
que realmente avançam aos bilhões,
a Mãe-Formiga protegida por bastiões
formados por milhões entrelaçadas...
Chegando a um rio, elas se prendem,
como pontes,
umas às outras, em incrível armação,
para as demais atravessarem,
apressadas;
ou então formam uma enorme bola viva
a rainha com seus ovos, negra diva,
bem protegidos, de outros insetos fontes...
A FORMIGA E A NEVE IV
Por onde passam, deixam um deserto,
já que estas não procuram cultivar
e nem quaisquer pulgões alimentar,
porém tudo devoram no caminho,
sem apenas destruir a vegetação,
mas se enfiam no menor espaço
aberto,
comem os insetos em qualquer
buraquinho,
devoram cobras e aves bem maiores
e mesmo os animais, até os piores:
fogem as onças destas hordas, de
antemão!
Naturalmente, ainda há as Vermelhas,
quase todas Solenopsis, bem ferozes,
que nunca fogem ao encontrar
algozes,
mas os enfrentam no ardor de suas
picadas,
ácido fórmico injetando nas
feridas...
Elas se escondem nos assoalhos e nas
telhas,
sob as paredes, em pirâmides
formadas
por milhares de pequenos grãos de
areia;
de seu veneno todo mundo se
arreceia,
pois são pequenas porém muito
aguerridas!
Em geral, elas caçam outros insetos
e os levam para as covas aos
pedaços;
outras atrás, vem alisando os
traços,
que ninguém encontre seu vasto
formigueiro;
e é para isso que lhes servem as
picadas,
matando presas e enfrentando
desafetos;
algumas vezes em combate solareiro
podem ser vistas, embora nunca à
noite,
contra formigas pretas, duro açoite,
ou outras vermelhas não
aparentadas...
Como as demais, não comem as suas
presas,
que para afídios constituem
refeição,
dos quais depois elas bebem
secreção,
novamente uma expressão da simbiose
que há milênios também
estabeleceram.
Parecem pequeninas e indefesas,
mas é quase por efeito de acidose
que os alicerces penetram e corroem;
deixadas livres, até casas destroem
esses insetos que já teus pés
morderam...
A FORMIGA E A NEVE V
Certamente é uma história muito
antiga
a desta formiguinha que se atreve,
em dia de inverno, a mover-se sobre
a neve,
quando, em geral, encontram-se
escondidas
e aparece em infinidade de versões,
a favor ou desfavoráveis à formiga;
talvez fosse, por palavras
atrevidas,
expulsa do formigueiro confortável;
ou escapar de seu destino
imponderável
ela quisesse, quando morrem
gerações...
Pois dão lugar, no chegar da
primavera
a esses novos milhões a desovar,
para de novo o formigueiro continuar
a que a rainha só dá continuidade.
Certamente a avisaram do perigo;
quem sabe imprevidência a fome gera
e saísse para ajudar comunidade;
ou muito simplesmente se alagou
o formigueiro em que antes habitou
e se dispôs a enfrentar frio
inimigo.
O fato é que a formiguinha, bem
valente,
saiu trotando pela branca neve;
sentiu-se bem e a desafiar se
atreve:
“Neve, dizem que és forte, mas eu te
domino!”
E a Neve prendeu-lhe os pés, só de
pirraça...
“Solta meus pés, ó Neve impertinente!”
Mas riu-se a Neve, de jeito bem
ladino:
“Por que te deveria soltar, se me
ofendeste?
Puro castigo pelo mal que
cometeste!...”
“Mas me enregelo no frio que ora me
abraça!”
“Ora, disseste ser mais forte do que
eu!
Reconheces que sou mais forte
agora?”
“Sim, reconheço, mas deixa-me ir
embora!”
“É frio demais e não me posso
derreter!...
De que jeito vou tuas patas
libertar?...”
“Mas deve haver alguém ainda mais
forte!...”
“Claro que há! O Sol sempre me venceu!
Deixa-me em paz, agora vou
adormecer...”
E assim a formiguinha, obstinada,
lançou os olhos ao céu, meio
ofuscada,
ao Sol rogando que lhe mudasse a
sorte!...
A FORMIGA E A NEVE VI
“Ó Sol celeste, tu que és tão forte
que a Neve derretes que me prende,
dá-me um raio de calor ou então me
vende!”
E riu-se o Sol: “Mas com que irás
pagar?
“No formigueiro tenho um pote de
ouro!...”
“De que me serve, por maior que seja
o porte?
O ouro da terra com minhas lágrimas
criei!”
E a formiguinha orgulhosa então
pediu:
“Eu rezarei a ti por todo o
estio!...”
“Ora, de rezas já recebi um
tesouro...”
A formiguinha falou, já enregelada:
“Por favor, Sol, tem piedade de
mim!...
Chegou uma Nuvem a flutuar, assim
e a face do Sol deixou escondida...
De longe veio a voz, meio abafada:
“Nem que eu quisesse! A Nuvem atravessada
cobre meus raios e minha luz é
impedida...”
E a formiguinha transformou o seu
apelo:
“Ó Nuvem forte, que ocultas Sol tão
belo,,
sai do caminho, para que eu seja
libertada!...”
A Nuvem riu-se, em plumas esgarçada:
“Ora, mais cedo ou mais tarde, eu
sairei,
mas não depende de mim, pois voarei
para esse ponto a que me impele o
Vento...
E atrás de mim, já chegam muitas
mais...”
E a formiguinha, já bem menos
emproada:
“Ó Vento forte, do maior portento,
que a Nuvem empurras e sempre te
atende,
que tapa o Sol e a Neve que me
prende
não consegue derreter, por frio
demais!...”
“Empurra a Nuvem e destapa o Sol,
que venha, enfim, a derreter a Neve,
que minhas patinhas a prender se
atreve,
para que eu possa, enfim, me
libertar!”
E disse o Vento: “Sou forte, mas o
Muro
me segura no caminho, igual que
anzol...
Essa tua Nuvem até posso soprar,
mas atrás dela vejo grande
variedade,
acho até mesmo que virá tempestade:
vais te afogar! Esse é teu destino duro!”
A FORMIGA E A NEVE VII
Viu a formiga um Muro mais além
e com o frio já se tornara
penitente,
falando então de forma diferente:
“Ó Muro mágico, que és tão poderoso
que paras o Vento, que a Nuvem
impele
que tapa o Sol e impede assim também
que ele derreta este manto pegajoso
que contra mim formou a branca Neve
e que meu passo obrigou a entrar em
greve,
solta-me agora, antes que inteira
gele!”
Porém o Muro nada lhe respondeu
e a formiguinha ficou desesperada:
“Seu Muro, Seu Muro, não escuta
nada?”
O Muro pareceu então ter despertado:
“Desculpe-me, eu sou surdo como um
Muro...
Mas meu nome é Murat... Qual é o seu?”
“Eu sou Myrmica Rubra, do pezinho
congelado
e sinto fome...” “Mas que tem isso a
ver comigo?”
“Por favor, Seu Murat!... Mostre-se
amigo,
estou morrendo de frio no gelo
duro!...”
“Não entendi. O que posso eu fazer...?”
“Não impeça mais do Vento a sua
passagem!
As Nuvens ele força em vassalagem
E elas não deixam chegar a luz do
Sol
e a Neve na minha patinha não
derrete!...”
“Meu alicerce não consigo
desfazer...
Mas quem sabe, por uma luzinha de
farol,
caso um Rato viesse e me furasse,
um pouquinho de calor a
alcançasse...
Talvez a força da Neve então
afete...”
“Mas Seu Murat, não pode fazer mais
nada?”
“Eu sou um Muro, Myrmica, e do lugar
em que me colocaram não posso me
afastar,
senão, até com prazer a ajudaria...”
Myrmica Rubra viu a cabeça de um
Ratinho,
do Muro à sombra mal e mal
mostrada...
Esse se mexe, ela
pensou, e poderia
chegar até aqui e me auxiliar,
com unhas fortes toda a neve a escavar...
“Seu Rato, chegue aqui, só um
pouquinho!...”
A FORMIGA E A NEVE VIII
O Ratinho espetou as suas orelhas:
“Quem me fala?” – indagou, meio
assustado.
“Sou eu, Myrmica Rubra, aqui do
lado!”
“Ah, uma formiga.... E o que quer de
mim?”
“Que venha até aqui me libertar!...”
“Aqui estou bem... Há bons cacos de
telhas
e o grande Muro que me protege
assim...”
“Mas Rato, tu és tão forte que o
Muro
podes roer, até lhe abrir um furo,
para que o Vento consiga ali
passar!...”
“Então a Nuvem ele poderá soprar
e o Sol brilhar sobre o solo
novamente
e derreter esta má Neve inclemente
e minha patinha finalmente se
soltar...
Faz esse furo, por favor, antes que
eu morra!
Ou então chega até aqui, para
escavar,
senão faleço de tanto enregelar!...”
Olhou-a de longe, duvidoso, o Rato:
“E se eu vou até aí e chega um Gato?
Ele me pega! É veloz, por mais que eu corra!”
“Mas então, faça um buraco nesse
Muro,
para que passe por ali um raio do
Sol
e sobre mim recaia, qual farol
e assim corrija o meu triste
destino!”
Mas disse o Rato: “Vou meus dentes
desgastar
se for roer um material assim tão
duro!
Protege-me o Muro desde pequenino...
Se por acaso um buraco nele abrisse
e então a passagem do Vento
permitisse,
a ventania só me iria
prejudicar!...”
“Ainda se você fosse boa de comer...
Mas já provei formiga e não gostei!
Perante mim, o Gato é como um rei;
peça a ele... Se quiser, ele lhe
ajuda...
Ôpa, acabei de escutar o seu miado!
Adeus, Myrmica, eu já vou me
esconder...”
Em vão a formiguinha procura quem a
acuda,
mas escutou outro miado e viu o
Gato...
“Ó Senhor Gato, que és mais forte do
que o Rato
que rói o Muro que o Vento tem
tapado!...”
A FORMIGA E A NEVE IX
“Ele empurra a Nuvem que atrapalha o
Sol
que a Neve branca poderia derreter
e minha patinha do gelo desprender,
por favor, venha até aqui a me
ajudar!...”
Ficou o Gato lambendo o próprio
pelo...
“Quem é você, a falar com tal
farol...?”
“Eu sou Myrmica, fiquei presa por
azar!...
Desenterre a minha patinha, por
favor...”
“Ora, Formiga tem um gosto que é um
horror...
Descer do Muro não vale um fio do
meu cabelo...”
“Mas, Senhor Gato, estou para
morrer...”
“Estou aqui à espera de um Ratinho
que recém apareceu no buraquinho
e serviria de deliciosa refeição...
Se aparecer de novo, eu vou
saltar...
Depois, andar por aí não vou
querer...
Além do frio, anda por perto um Cão,
que não me come, mas pode me
morder...
Coisa deselegante, como pode
perceber...
Assim, lamento, mas vai ter de
desculpar...”
Vendo o Gato a lamber os seus
bigodes
e mais adiante, os passos de um
cachorro,
a formiguinha foi-lhe pedir socorro:
“Senhor Cão, por favor, venha e me
ajude!”
“Quem me chama?” – disse o Cão, bem
surpreendido.
“Sou eu, Myrmica Rubra – e só tu
podes
me livrar desta Neve que me ilude!
Ó Poderoso Cão, arranca a neve,
senão o frio vai me matar em
breve!...
“Não me chame de Cão, meu nome é
Fido!...”
“Ah, Senhor Fido, vós que sois tão
forte
que facilmente podeis morder o Gato,
que está à espreita para caçar o
Rato,
que lentamente poderia roer o Muro,
que ataca o Vento, que a Nuvem
domina,
que tapa o Sol, de quem depende a
sorte
para poder transformar meu fado
escuro
e derreter essa Neve que me prende,
vem, por favor, a minha prece
atende!
Arranca a Neve e me transforma a
sina!...”
A FORMIGA E A NEVE X
“Dona Myrmica, o que puder,
farei!...”
E não se negue que Fido se esforçou,
pois com as patas traseiras arrancou
uma porção de neve a seu redor...
“Seu Fido, por favor, está me
tapando!
Dessa maneira, eu me sufocarei!...”
“Sinto muito, mas então acho que é
melhor
conseguir de madeira algum Bastão
que, com cuidado, a retire desse
chão...
Eu vou fugir, que vem um se
aproximando!”
De fato, chegava aos pulos um Bastão
que haviam feito com madeira grossa;
foge depressa o Cão, antes que possa
levar nas costas meia dúzia de
pauladas!
E a formiguinha: “Bastão, tu que és
tão forte
que consegues espancar assim o Cão,
que morde o Gato, que come às
dentadas
o Rato, que rói o Muro, que tapa o
Vento,
que sopra a Nuvem, que faz
impedimento
à luz do Sol, tem pena da minha
sorte!...”
“Mas o que queres?” O Bastão se aproximou.
“Que corras o Cão, que morde o Gato,
para que medo não tenha mais o Rato
e se disponha, então, a roer o Muro
que ataca o Vento, que essa Nuvem
corre,
que sem ter pena, a luz do Sol tapou
e aqui me deixa na Neve e no escuro:
eu vou morrer aqui, enregelada!...”
“Ora, o tal Cão já fugiu e foi
embora...
Mas socorro eu tentarei te dar
agora.”
E o Bastão na dura Neve cavocou...
Mas foi inútil!... A Neve que arrancou,
igual que o Cão, só fazia acumular,
sem conseguir à Formiga destapar...
“Pobre Myrmica, vou ter de desistir,
mais forte do que eu, é o Fogo, que
me queima!”
E aos pulos, o Bastão já se
afastou...
Suplicou Myrmica ao Fogo para vir:
“Ó Fogo poderoso, que és tão forte,
que queimas o Bastão de grande
porte,
que ao Cão espanca e lhe tira toda a
teima!...”
A FORMIGA E A NEVE XI
“Esse Cão que morde o Gato, que come
o Rato,
que rói o Muro, que me tapa o Vento,
que empurra a Nuvem, que causa o
contratempo
e cobre o Sol e assim a Neve não
derrete,
vem, por favor, aqui me
proteger!...”
Chegou o Fogo, trazendo calor grato,
que a potência da Neve assim
afete...
Do solo o gelo começou a se
desfazer,
os montes ao seu redor a derreter,
mas a Formiga continuava presa ao
chão!
Pois logo a Água começou a surgir...
“Ela me apaga! Estou fugindo agora!”
Disse o Fogo e bem depressa foi
embora.
Myrmica Rubra se dirigiu à Água:
“Senhora Água, tu que és tão forte,
que apagas o Fogo, que consegue
destruir
qualquer Bastão, consola hoje minha
mágoa!
Ele correu o Cão, que espantou o
Gato,
que encheu de medo o infeliz do
Rato,
que poderia ter mudado a minha
sorte!...”
“Como assim?” – a Água lhe indagou.
“É que o Rato poderia roer o Muro,
que ataca o Vento, que limpa o céu
escuro
e espanta a Nuvem, que atacou o Sol,
que poderia a Neve fria derreter!”
Com voz plangente, Myrmica suplicou:
“Por favor, Dona Água, este branco
anzol
vem arrancar para soltar a minha
patinha!”
Mas a Água respondeu, com risadinha:
“Eu sou a Neve que o Fogo veio
desfazer...”
“E se quiseres, eu me derreto ainda
mais,
porém já estou, em parte, a te
cobrir...
Se subir mais, como poderás fugir?...
Formiguinha, vais morrer é afogada!
De quem precisas, agora, é do
Cavalo,
mais forte do que eu, pois bebe até
demais!”
E a formiguinha escutou uma
relinchada
e novamente sua longa reza dirigiu
para um lindo Cavalo, que surgiu:
“Senhor Ginete, retire-me do
valo!...”
A FORMIGA E A NEVE XII
Cruzava o Cavalo sobre a Neve,
calmamente...
“Quem me chama?” – disse, olhando
para o chão.
“Sou eu, Myrmica Rubra, meu
irmão!...
Tu que és tão forte, que bebes a
Água,
que apaga o Fogo, que queima o
Bastão,
que espanca o Cão, que morde o Gato
tão valente,
que come o infeliz Rato, ajuda a
mágoa
deste serzinho indefeso!... Afasta o
Muro,
que ataca o Vento, que do céu retira
o escuro,
quando a Nuvem impele, igual que um
furacão!”
Disse o Cavalo: “Mas que posso eu
fazer?”
“É que a Nuvem está tapando o Sol
e a Neve prende minha patinha qual
anzol!
Eu te suplico que me venhas
libertar!...”
“Formiga, és tão pequena! Mal te vejo...”
“Podes a Água que me afoga aqui
beber?”
“Bebo, pois não, mas de quê te irá
adiantar?”
Assim, de fato, toda a Água ele
sugou
e então a Neve novamente congelou,
sem que Myrmica se escapasse nesse
ensejo!...
“Pois é,” disse o Cavalo. “Foi como eu esperava...
“E não adianta agora que vá lamber a
Neve;
com minha língua o mais certo é que
te leve
para minha boca e acabe te
engolindo...
É com capim que mato a minha fome,
mas nos meus dentes, sem querer, te
mastigava...
Olha, ouço o passos do Homem, que
vem vindo
e ele consegue muitas coisas
realizar...
Costuma até no meu lombo me montar
e por amor, deixo que pense que me
dome...”
Chegou o Homem, com seus passos
apressados
e foi pegando o Cavalo pela crina...
“Ó Homem, favorece esta minha sina!
Tu que és tão forte, que domas o
Cavalo,
que bebe a Água, que todo o Fogo
apaga,
que o Bastão queima, cujos golpes
pesados
batem no Cão e assim podem
espantá-lo,
antes que morda o indiferente Gato,
que está no Muro à espera dessa
Rato,
que furá-lo poderia, igual que forte
adaga!...”
A FORMIGA E A NEVE XIII
Disse o Homem: “Não entendo essa tua
história.”
“É que o Muro o Vento está atacando,
que poderia estar a Nuvem empurrando
para deixar passar a luz do Sol,
que derrete a Neve que meu pezinho
prende!...
Desce tua mão, em poderosa glória
e afasta o gelo que me prende como
anzol!”
Mas riu-se o Homem: “Por que mudar
tua sorte?
Prefiro até que encontres logo a
Morte,
que é tão forte que até a mim me
rende!...”
Ficou Myrmica assim tão desapontada,
meio afogada, a tiritar de frio,
que a Morte ela invocou, num
calafrio,
e ela chegou a indagar: “Por que me
apressas?
Lutaste tanto, só querendo me
afastar...”
“É que estou completamente
enregelada,
sob camadas de Neve tão espessas...
Sei que és mais forte que do Homem
toda a mágoa,
que monta no Cavalo, que bebe tanta
Água,
que apaga o Fogo, que o Bastão pode
queimar...”
“Que o Cão espanca, que morde o
Gato,
que caça o Rato, que perfura o Muro,
que o Vento tapa e deixa tudo
escuro,
porque não pode à Nuvem assoprar,
ordena ao Sol que me venha
libertar!...”
“No Sol não mando, sequer por um
boato,
somente Deus o pode dominar!...
Porém eu posso tocar-te com meu
dedo:
do fim da vida só eu sei o
segredo...
Minha liberdade agora queres
aceitar?...”
“Senhora Morte, por favor, quero
viver!”
“Então, transfiro a Deus o
contratempo;
não sei se quer contigo perder
tempo!...
E num suspiro, a Morte se afastou.
Ficou a Formiga sozinha com a
Neve...
“Então, Myrmica, ninguém quis te
proteger?
Pediste a tantos e de nada te
adiantou!...
Mas dou-te agora uma final
alternativa:
ergue os olhos a Deus, em prece
viva:
talvez ele te atenda em tempo breve...”
A FORMIGA E A NEVE XIV
Somente então ela a Deus se dirigiu,
após tantos deuses falsos consultar:
“Ó Grande Deus, ouve meu suplicar!
Gelada neve prende minha patinha,
mas sou jovem demais para morrer!
Rezei a tantos e nenhum me ouviu,
ó tu que dominas a Morte tão
daninha,
que leva o Homem, que monta o
Cavalo,
que bebeu a Água que enchia o valo,
que apaga o Fogo que o Bastão pode
vencer!”
“Que espanta o Cão, que correu com o
Gato,
que estava à espera para comer o
Rato,
que o Muro não roeu, terrível fato,
que assim tapou o Vento e o impediu
que para longe a Nuvem empurrasse
e o Sol entrasse na Neve em que me
abato
e me impedisse de morrer de frio,
por tua graça, me contempla desde o
céu,
das nuvens a afastar o grosso véu,
até que a Neve enfim me
libertasse!...
Então Deus lhe respondeu, lá das
alturas:
“Acaba com essa história! Comprida está demais!
Se eu te soltar, não furtarás
jamais?”
“Juro, Senhor, por tudo quanto é
santo!”
“Até que enfim reconheces meu
poder...
Mas tudo bem, já sofreste tuas
agruras...”
E estendeu-lhe a fímbria de seu
manto,
a formiguinha então a transportar
para um telhado, onde a deixou a
suspirar,
sem de fato em arrependimento poder
crer...
Pela parede desceu a formiguinha,
sem ter como voltar ao formigueiro;
subiu a estante até o açucareiro,
esquecida da promessa, já a furtar,
na triste contingência de seus
atos...
E ali a encontrou uma criancinha;
com uma colher, depressa a retirou,
sendo de novo atirada sobre a neve,
na qual se congelou, em tempo breve,
como acontece com todos os
ingratos...
EPÍLOGO
E se um final esperavas diferente,
como relatam em mais de uma versão,
a Natureza tem pouca compaixão
por quem infringe suas inexoráveis
leis:
que ela ficasse no seu formigueiro,
durante o inverno, junto com sua
gente!
Vosso destino vós mesmos o fazeis
e cada ato tem sua própria
consequência,
por mais que o próprio Deus tenha
paciência
e até atenda o teu pedido
interesseiro...
Existe uma versão dos índios Seama,
do Oeste americano, da nação Pueblo
Laguna,
em que a Formiga indaga, uma por
uma,
às criaturas, qual delas é a mais
forte;
em vez de Bastão, aparece um
Atiçador
a que o Fogo derrete; e a Formiga
chama
não ao Cavalo, mas a um Boi de maior
porte,
para esgotar a poça em que se afoga;
e ao invés da Morte, a uma Faca
roga,
que a corta em três, para
mostrar-lhe seu valor...
E na versão de Romero e de Lobato
aparecem uma onça e um tamanduá...
Incoerência certamente há,
porque esses bichos nunca veem a
neve...
E no final, Deus se cansa da
historinha
e até a manda furtar, que triste
fato!
A Morte a invocar sequer se
atreve...
Já na África, um elefante acha a
formiga
que no final se torna dele amiga,
da areia movediça salva-lhe a
patinha...
A maioria só estava a zombar dela,
fingindo até dizer palavra amiga,
mas sem o menor interesse na
formiga,
qualquer desculpa assim a
apresentar,
igual que amigos na necessidade,
que a porta te fecham e até a
janela,
só nas baladas a te acompanhar...
E se chegaste até o final da
narração,
quem sabe inventas tua própria
versão
e aos outros contes, na maior
vaidade!...
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