SONHO DE PARDAIS (2006)
Duodecaneto de William Lagos
SONHO DE PARDAIS I
Quando abro as
prateleiras do passado,
amarelas como os livros de minha infância,
empoeiradas como o resto de fragrância
que se aspira de um frasco abandonado;
quando afasto, com cautela, o cortinado
e as rendas me estimulam “quiromância”,
contra
a palma da mão, instância a instância,
a desdobrar-se qual
trajo abandonado,
vejo
roída de traça a juventude,
esmaecido
o vigor da madurez,
no
cheiro antigo que recorda um ai:
e nada em tal papiro assim me ilude:
foi
tudo pretensão e a insensatez,
com que
"miaula" um gato no Uruguai!...
SONHO DE PARDAIS II
Vou escavar um buraco em
minha sala,
para encontrar, no impulso do momento
em que ponto se escondeu o casamento
da ilusão muda com a teimosa
fala;
vou arrancar as notas dessa
escala
e poemar por sob o encantamento,
qual feltro antigo no seio do instrumento
em que cada martelete a
corda embala;
quero ver se no espaço percorrido
por tantos pés dos vivos e dos mortos
se esconde um caldeirão de puro
ouro
guardado em vasto tempo
decorrido,
entre os ladrilhos dos estranhos
portos,
um lenço a me acenar do ancoradouro...
SONHO DE PARDAIS III
Quando assoprei a poeira
dos meus versos
um dragão alçou voo, preguiçoso;
fugaz olhar lançou-me, de astucioso,
saindo em busca de pousos mais
diversos;
anos ficara escondido nos
inversos
das escrituras de toque alvoroçoso,
sob o verso de rascunho primoroso,
talvez reverso de seus
ideais conversos;
mas não serviam mais para caverna
em que pudesse habitar esse dragão,
com suas asas de pasmado
arco-íris,
porque a palavra é só a marca
externa
e nunca expressa o sacral da evolução
desses duendes que entre os dedos gires.
SONHO DE PARDAIS IV
A porta se entreabriu e
me disse: “Estou aqui.
Por que não passas? Eu mostro a fantasia
que habita em outro mundo, a ironia
de qualquer posse que guardes
para ti;
“eu te indico as cavalgadas do
alali
soprado nas caçadas. Eu sou a pradaria
que percorriam os heróis que o sonho via;
durante a infância, o
rouxinol que ri,
“mas nunca mais ouviste. Sou acendalha
da orquestra dos elfos e das fadas,
nas danças cintilantes da
magia,
“porém vejo pela fresta uma
fornalha,
em que cremaste esperanças condenadas
só por correrem empós sonho que luzia!”
SONHO DE PARDAIS V
A porta se abre mais e
diz: “Não vens?
Por mim cruzaram todos os heróis
que saíram pelo mundo, em mil faróis,
tomando reinos e desprezando
bens,
“porque marcharam sempre a
outros aléns,
empós mulheres belas como sóis;
mesmo enredados nas sequelas dos anzóis,
sem hesitar na longa
dança dos poréns...
“Morriam cedo os bravos cavaleiros,
ainda abraçados a corbelhas de
esperanças,
sem demonstrar qualquer
arrependimento,
“suas mágoas mortas por tiros
certeiros,
enquanto dissipavam desvairanças
em troca do horizonte de um momento.”
SONHO DE PARDAIS VI
Ela se abre um pouco
mais, está zangada:
“Por que esperas tu, nessa indolência?
Não vês que logo chega a decadência
e que minha fresta será então
fechada?
“Eu te ofereço uma aventura
desvairada:
talvez te percas na luz dessa
cadência,
mas nela viverás, seguro na imprudência,
quebrando a treva da paz
morigerada,
“que irá, aos poucos, instilar o gelo
em cada uma de tuas articulações,
até te encher de cálcio o
coração!...”
De fato, eu vejo o sonho e
queria tê-lo,
mas teria de abandonar hesitações
que me encarceram, mas confortam na
prisão.
SONHO DE PARDAIS VII
Quando perdi meu braço, o
cirurgião
fez o transplante de um conto de fadas,
as veias feitas de pequeninos nadas,
dedos forjados na farinha da ilusão,
poeira de estrelas toda a pele
dessa mão,
compondo a derme quimeras
tresloucadas:
as cartilagens foram aranhas apressadas,
que ali teceram tesouros
de emoção;
as unhas feitas de madrepérola e de safira
e em cada lúnula espiava a própria
Lua,
na palma as linhas traçadas
pelo Sol;
e é só por isso que componho a
longa tira
das falanges de versos, que flutua
por toda a madrugada até o arrebol...
SONHO DE PARDAIS VIII
Mais de uma vez, se a
memória não me falha,
decidi que não queria ser poeta;
que tantos cantos que meu braço
excreta
a mim não pertenciam. Até quis à fornalha
lançar uns mil rascunhos, a
escumalha
desses sonhos a flutuar no mar do
esteta
dessas imagens de ilusão concreta
que me surpreendem após
finda a batalha;
e no entanto, aí estavam e estão agora:
correm os dedos em seu talho firme,
no estilete de minha
esferográfica;
e contudo recalcitro, nesta
hora,
mas que posso fazer, senão abrir-me
para o estridor desta corrente gráfica?
SONHO DE PARDAIS IX
Poeira de anjos eu trago
nos cabelos,
perseguido pela morte dos rochedos,
a luz da Lua reflete os meus albedos
e os coriscos me penetram, só
de vê-los;
trago alvorada em todos os meus
pelos,
tenho o gorjear das aves em meus
dedos,
por mim os mortos proclamam seus segredos:
eu sou tua indiferença e
teus desvelos;
eu sou a sombra que assola ao meio-dia,
a pobre sombra vã do sol a pino...
Eu sou o vento da mais panda
calmaria,
o pobre vento do clangor do
sino,
que neste martelar semidivino,
leva os pardais a chilrear filosofia...
SONHO DE PARDAIS X
A gente olha os pardais
esvoaçantes
e pensa: “Caçam moscas, simplesmente,
são ecológicos de forma transparente,
mas só sabem pipilar sons
triunfantes
os gorjais dos rouxinóis... Voam somente
para satisfazer a fome ou, quando
infantes,
eclodem de seus ninhos, expectantes
pelo alimento que lhes trazem,
gentilmente.”
Porém não é assim. Porque há pardais
que quadros pintam durante a noite
inteira,
sonhando cada aurora em
sortilégio;
do dealbar do Sol são os fanais
e a cada tarde tecem nova esteira,
para que o astro adormeça em florilégio...
SONHO DE PARDAIS XI
Muito mais podem tais
pardais castanhos,
com seus olhos saltitantes de fulgor,
com seus bicos entreabertos em pudor
do que essas aves e pássaros
tamanhos
a quem se dá, por motivos mais
estranhos,
valor muito maior, por multicor
que seja sua plumagem, por cantor
pousado sobre os ramos,
sem acanhos;
mas são pardais que nos gorjeiam sonhos
e nos granjeiam, por eles, o planeta,
nas asinhas da ilusão, missão
secreta
que não conseguem ouvir esses
bisonhos
seres humanos a que o orgulho afeta
e em suas vaidades, vivem tão
tristonhos...
SONHO DE PARDAIS XII
Sei muito bem que se
enganam os pardais:
eles só pensam acordar a aurora;
são inocentes, quando vai embora
a luz do sol e se escurecem os
trigais;
mas nós, humanos, presumimos
ainda mais:
que o mundo se destine à nossa hora,
centros do mundo desde antanho e outrora,
só porque vemos a morte
dos demais
e de alívio respiramos, porque ainda
alcançaremos o domínio do Universo
que conseguimos abranger com
fraco olhar
enquanto as avezinhas só essa
vinda
diária do arrebol pensam causar
com um gorjeio, qual mantra no ar
disperso...
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