PESADELO DO ÊXTASE & MAIS
William Lagos – 26 set
/ 5 out 14
PESADELO DO ÊXTASE I – 26 SET 14
Na cadência do sono apenas dorme
uma ilusão secreta e passageira,
quanto é consciente o sonho em sua
ligeira
bemquerença a modelar desejo informe.
Mas no fluxo do sonho que se torne
durante o sono a vida verdadeira,
a ilusão é mais potente e mais
certeira,
o peito a controlar que assim adorne.
Pois que adormeça o sonho que hoje
penso!
Muito mais intangível do que aquele
que em meu sonho com vigor
vivenciarei.
Que alcance o sonho nesse arco tenso
que se iguala à vida, que nos torna
dele,
no devaneio assim pleno que te dei...
PESADELO DO ÊXTASE II
Na cadência do sono assim disforme
da vida ignoro a atual realização;
nessa potência esgoto minha paixão,
nuvem de sonho em cintilar conforme.
Na cadência do sonho que me amorne
existe um êxtase em tal degradação,
no puro desprezar de cada ação
que do sonho nos roube o gosto enorme.
Sem dúvida, é uma fuga esse jazigo,
um prenunciar da própria sepultura,
mas desfazer-me do sonho não consigo,
porque é brilhante, enquanto a vida é
obscura;
a noite aclara e torna o dia em
inimigo
e nos recônditos da mente assim
perdura.
PESADELO DO ÊXTASE III
Mas que fazer quando o êxtase domine,
qual dominou às santas e aos ascetas?
Não se entregaram eles a tais diletas
elocubrações sobre o ente que ilumine
a influência do mundo e a terra mine,
na busca celestial de dons secretos,
na privação tornando-os em esqueletos,
mesmo destino de quem à carne incline?
E se no fim o resultado é o mesmo,
é no viver que se acha o pesadelo,
enquanto o êxtase percorre o devaneio,
nirvana pobre, degustado a esmo,
como um derviche rodopiando em seu
novelo
tombando ao solo em seu último
meneio...
PESADELO DO ÊXTASE IV
Quando criança, também girava em torno
enquanto a mim os familiares
repreendiam,
mas no momento em que mais tonto me
viam,
sabiam-me acolher em colo morno...
Nunca tombei sobre animalesco corno,
de quando em vez as tijoletas me
acolhiam,
então meus membros só aos poucos se
moviam,
formigando em um calor quase de
forno...
Se fosse a vida puramente um rodopio,
girando o mundo ao meu redor, sem
zelo,
na direção a contrariar meu
desafio!...
O mundo inteiro a zombar do corrupio,
faces disformes em luz de pesadelo,
qual um ciclone que de mim somente eu
crio...
LADÁRIO I [processo de penitência] – 27 set 14
O amor sexual é pura biologia,
atuando sobre nós em majestade;
não quer a natureza a castidade,
porém reprodução do que ela cria.
Que seja apenas para isso não diria,
mas quando existe compatibilidade,
deve a carne ser mais uma, em validade
da armadilha que à vida nos trazia.
São feromônios que nosso amor nutriam,
seu cheiro nas narinas penetrando,
embora a mente consciente os rejeitasse
e sob a capa do amor os disfarçasse,
nessa ânsia a que as membranas impeliam,
até o zigoto se forjar em fogo brando...
LADÁRIO II
Mas tantas vezes tal ato pratiquei,
para gerar seis filhos, tão somente,
à mortandade do esperma indiferente:
pequena culpa, porque evitar não evitei.
E a maior parte das vezes desejei
ter a imagem da criança frente à frente,
algo de mim, da parceira algo aquiescente
a esse único soldado que lhe dei,
enquanto os regimentos pereciam
na longa marcha por seu organismo,
para no esgoto acabarem expelidos,
pois num jato de luz assim jaziam
fantasmas aos milhões em paroxismo,
sem por um óvulo serem escolhidos...
LADÁRIO III
E quantos óvulos vermelhos faleceram,
sem nunca receber sua corte branca!
Ou quanta vez a fertilidade tranca
e os fluidos alvos em vão a percorreram!
E quantos outros gritos expeliram,
diariamente, tantos milhões que arranca
qualquer orgasmo, até que o ventre estanca
sem conexões que nele se nutriram,
na busca pura e vazia do sexual,
na abolição do fluxo seminal
por capa elástica totalmente indiferente;
Não sou melhor que os outros, mas pensei
constantemente em seu fado e lamentei
essa inútil deiscência da semente!...
LADÁRIO IV (2005)
Mas nada significa assim que a corte
deva acabar somente porque amores
compartilhamos e, em mútuos estertores,
nos fizemos um só, duplo consorte,
que penetra e é penetrado, abre e preenche.
O amor é dom da outra, o corpo se faz um:
é como carne una, sem que poder nenhum
pudera separar-nos, tal qual se o Übermensch
se gerara de nós, filho da mesma carne,
sem que vivesse fora, não fruto da semente,
nem do óvulo fecundo, em meiga escuridão,
filho só de nós dois, que em dois corpos se encarne,
que forme o corpo antigo, bem antes que, inclemente,
Zeus nos tenha rasgado a mente e o coração.
FALÊNCIA I – 28 set 14
In Memoriam Andréia da
Silva Macedo
Quando a encontrei, a outro pertencia
De corpo e alma -- e como havia sofrido!
Por ser sincera e por ter pretendido
Que ele aceitasse em calma a sua agonia;
Porque ela percebera, no inconsciente,
Que aquele homem a que tanto se entregara
Não era verdadeiro e que julgara
Dominá-la poder indiferente.
E assim buscou noutra experiência um beijo.
Para matar saudades de um desejo
Que ressumbrava das brumas do passado;
E ao revelar, tremendo, a seu amante
O que fizera apenas num instante,
Tudo perdeu que havia conquistado...
FALÊNCIA II
Raro é o homem cuja maturidade
Para perdoar tal erro é suficiente
Que em nossa sociedade se apresente,
Se revelado com sinceridade.
Pesados na balança, são vaidade,
Como escrito já foi antigamente
Por Salomão, sentença que igualmente
Nos dias de hoje tem plena validade.
E destarte, de tal beijo a confissão
Cortou fundo no orgulho masculino,
Ansioso assim por exclusividade,
Mesmo a tendo roubado de antemão
De quem a recebera sob o sino
De uma igreja, a aguardar felicidade.
FALÊNCIA III
Assim a recebi com meu carinho,
Mais como filha que somente amiga
Num amor espiritual, na pura viga
Da oliveira e de seu óleo contra espinho.
Nunca a abracei e até o beijo comezinho
Que hoje nas faces derramar qualquer consiga
Foi muito raro; e é certo que se diga,
Nunca a beijei por sob um azevinho
Em qualquer festividade de Natal;
Dei-lhe consolo apenas digital:
Ombro eletrônico para sua tristeza...
E contudo foi amor, à sua maneira
Quando uma alma a outra, bem certeira,
Abraça ao longe, por delicadeza...
FALÊNCIA IV
Nada me deu, exceto gratidão;
Se amor tivesse, é certo que o escondeu,
Mais como alívio de quanto padeceu
Que em amizade por quem lhe deu a mão.
Foi realmente a mais rara relação:
Qualquer outra quereria como seu
O coração que se compadeceu
E a quem daria retorno em devoção.
Mas foi assim. Eu sei que
bem lhe fiz,
Suas lágrimas a secar pelo teclado,
Sem nos meus ombros um só fio de cabelo.
Amor respingo, amor de chafariz,
Cola lançada em coração quebrado,
Como seiva indulgente de desvelo.
GEADA AZUL I – 29 SET 14
Esse orvalho que brotou
na madrugada
e nos verões me acaricia
os pés,
percorre o coração como
marés,
cada artéria ressumbrando
de encantada.
Já nos invernos cai bem
diversa a geada
em mil espinhos brancos
escorre em sés,
velas votivas de
diferentes fés,
círios de prata
pendurados desde o nada.
Geada de inverno, rocio
de primavera,
que interpreto como
queira o sentimento;
luz de garoa em minha
janela vejo
e retorno a meu leito
nessa espera,
do racional suspendendo o
julgamento,
enquanto o mundo se
interrompe em nosso beijo.
GEADA AZUL II
Também dos lábios da mulher amada
brotam orvalho, geada ou então rocio,
nessa saliva que escorre como um rio
e contra o sonho se revolve, misturada
com lágrima de orvalho, de rocio, de geada,
em mim pingentes a conjurar-me ao cio
ou beijos pálidos como um dia de frio,
de sol ocioso que não te aquece em nada.
Existe geada também em seu olhar,
seja ele verde, azul ou acastanhado,
colando anseios em meu rosto perturbado,
qual um inseto em âmbar a afogar...
Que cor a gota que banha essa corola
E num repente minha própria alma esfola?
GEADA AZUL III
Vermelha a geada que vem
do coração,
leitosa a geada que
escorre do suor;
é transparente o orvalho
desse amor,
tão incolor quanto beijos
em botão,
que não são dados e só
sussurrarão
como um arco-íris em
geada furtacor,
caleidoscópio de singular
pendor
e só do céu o azul
refletirão...
Geada da vida em pura
refração
que me requeima e a
seguir me aquece
na geada seca da
diuturnidade,
geada candente que lhe
brota do pulmão
e que me envolve em sua
brumosa prece
quando me afogo em sua
vasta claridade.
FÚRIA I – 30 SET 14
Dependiam dos augúrios os antigos,
pondo sua fé em presságios e agouros,
voo dos pássaros ou vísceras dos touros,
zigue-zagues de coriscos em perigos,
até nas manchas de alheios vitiligos
contemplados de passagem, os desdouros
das nuvens que passavam, os estouros
dos trovões, das corujas pios e abrigos...
Mas penso em ti como agouro do destino
que meus pulmões e rins auscultariam,
não no percurso do Sol em vastos sólios,
nem no luar a nos flechar com pente fino,
quando as estrelas, de pudor, não sairiam,
nem brilhariam, com inveja de teus olhos.
FÚRIA II
Por certo existe um furor nessa centelha
que me prevê a duração do dia:
o olhar alegre paixão indicaria
e o olhar nublado algum rancor espelha
e olhar escuso sob a sobrancelha
a me indicar se nesse dia sofreria;
se qualquer lágrima num canto se alumia,
a incerteza revela-se de esguelha...
Cada prenúncio voltado para mim,
não porque fosse o centro de seu mundo,
mas porque me indicariam reações,
do bem ou mal em profecia assim,
muito mais certa que qualquer som iracundo
do palpitar de meu próprio coração.
FÚRIA III
Por que, afinal, que importância o horizonte
traz para mim em seu formato peculiar?
Por que o canto da cigarra bem ou azar
contra meu próprio fadário se remonte?
Por que a estrada que no céu desponte
teria surgido para me contemplar?
Por que o sangue de um fígado estudar
de um animal, como da sorte a fonte...?
Eu bem sei não ser ela pitonisa,
que as ocorrências do amanhã não saberá,
mas meu presente se aninha em seu humor
e quando a luz de seu olhar minha face alisa
futuro próximo assim dominará,
ao conceder-me ou negar-me o seu amor.
PIRÂMIDES DE BARRO I – 01 OUT 14
Na vida o sonho não se realiza
de forma alguma, pois é feito do
jamais;
mesmo almejando coisas materiais,
mesmo alcançado o alvo que se visa.
Quem trabalha do concreto o solo
pisa;
quem só deseja o mesmo que os demais:
usufruir os bens possíveis naturais
e se conforma com pétalas de brisa...
Por mais que o resultado desse anseio
se assemelhe àquele um dia sonhado,
nunca é igual e nunca satisfaz,
que apenas o consolo é nosso esteio:
trocamos a ilusão pelo alcançado,
na tempestade só mais um balão de
gás...
PIRÂMIDES DE BARRO II
Pois a vida nos assopra aonde quer
e não aos pontos que mais
desejaríamos;
quando o almejado então concretizamos
é a realidade e não sonho sequer.
A vida nos entrega de colher
o quanto em pratos fundos quereríamos;
e se um banquete afinal devoraríamos,
só é o concreto que a gente pôde ter.
E mesmo o sonho que se julga
realizado
é um dom de vidro, suor cristalizado,
que não caiu do céu por nossas
preces,
mas nos domina, divino esse pecado,
até que um dia vê-se espatifado
no próprio instante em que do leito
desces.
PIRÂMIDES DE BARRO III
É só pirâmide de barro o nosso
esforço,
cada vitória apenas agridoce;
não há plástica que realmente te
remoce,
só a máscara de argila de um escorço.
E cada prêmio conquistado nesse
corso,
que no instante do triunfo nos adoce,
roubou parte do tempo que teu fosse,
acrescentando novos anos no teu
dorso.
Não construímos templos de granito,
são pura areia os nossos hipogeus,
da eternidade melíflua é a esperança,
acompanhados tão só por sonho aflito,
ainda envidando os horizontes seus
que te fizera vislumbrar quando
criança.
PIRÂMIDES DE BARRO IV
Contudo, bem melhor balão de gás
que qualquer celofane mal inflado;
melhor o dom assim cristalizado
que o sopro quente que branco se
desfaz;
melhor tuas flechas teres no carcás,
para lançar ao alvo assim buscado
que uma aljava vazia do teu lado,
com sonhos mortos a descansar em
paz...
Pois que sejam tuas pirâmides
materiais
e nas mastabas os sonhos a dormir
para aquecer os momentos teus finais
e não pandeiros de escasso reluzir,
mostrando ritmos de pequenos
temporais
que logo cessam no cessar do
percutir.
GEADA NEGRA I – 02 OUT
14
A geada quando chega é
pura alva,
como um manto reluzente
de cristal,
percorre a mata e cobre
o cipoal,
a grama a revestir em
branca calva.
Círio invertido de santa
que nos salva,
pende dos galhos o
pingente natural,
temporária estalactite
em seu final,
qual do teto da caverna
em leite malva.
Logo depois que derrete,
cada haste,
aos poucos, se levanta e
reverdece,
mas foi queimada e logo
se enegrece,
como a geada dos anos
cobre a bela
e vai queimando aos
poucos tal donzela:
beleza eterna que logo
se desgaste...
GEADA NEGRA II
Estranha bênção que nos
cai do céu,
embora digam que, de
fato, sobe o orvalho;
condensação a soprar de
cada galho
que então se espelha,
bruma feita em véu.
A minha própria
expiração espalho,
fraca demais para se
erguer ao léu;
mesmo que brado eu lance
em escarcéu,
não contribuo para a
geada que esmigalho.
Ela crepita alegremente
sob os pés,
igual que lenha
queimando a meu calor;
não são as hastes de
relva que eu esmago,
mas somente o pala
branco nos sopés
de minhas coxilhas, em
fogo sem odor,
salvo o da seiva no
capim do pago...
GEADA NEGRA III
Conheço neve por tê-la visto
no estrangeiro
e sei que cai também nas
altas serras
que se erguem ao norte
de minhas terras,
por mais que ao sul eu
esteja derradeiro...
Aqui só cai granizo, em
som brejeiro,
como os cravos nos
cascos, quando os ferras;
mais raramente vem
saraiva e em medo berras
por tua colheita ou o
jardim de teu terreiro!
Porque o granizo tão só
machuca as folhas
e se acumula no colo das
bromélias,
mas a saraiva vem com
força desmedida
e teu trigo destrói,
antes que o colhas,
cada pétala arrancada
das camélias,
toda corola quebrada e
desvalida...
GEADA NEGRA IV
Mas o orvalho acaricia
no verão
e até há mulheres que
batizam de Rocio,
por gentileza e por
carícia, não por cio,
nessa esperança de que
amor distribuirão.
Eventualmente, cai a
geada em pleno estio
e traz a morte para a
aveia de teu chão
e teu gado e os cavalos
esfomearão,
no inesperado desse
tempo frio...
Mas em geral lembra a
doce madrugada,
em que as estrelas, lá
do céu, me espiarão,
que nos parece tão mais
perto em cada inverno.
Por entre a cerração,
saúdo a geada,
de meu poncho e meu boné
em proteção,
no meu engano de que o
pampa seja eterno!
MARFIM NEGRO I – 3 OUT 14
Hoje é costume, por vergonha do racismo,
protestar contra expressão que a alguém
inquieta,
como dizer que “a coisa está ficando preta”,
igual que expresse desprezo esse modismo
contra a cor de alheia pele e não truísmo:
preta é a borrasca que tua trilha afeta,
negra a ferida em que a gangrena a carne
infecta,
conservada a expressão por saudosismo.
Como as costas de um antigo pergaminho,
enegrecidas ao segurar de tanta mão,
de que deriva o verbo “denegrir”
ou o alimento esquecido no armarinho,
com fungos pretos a comer tua refeição,
sem a raça qualquer se referir...
MARFIM NEGRO II
De fato, a sociedade escravagista,
sobre a qual se embasou romano império,
tão só por lendas que ninguém levava a sério
os negros conhecia, que ninguém então
avista.
Eram milhões de escravos brancos nessa pista,
às miríades trazidos, em refrigério
da camada superior no despautério:
sobreviventes encadeados da conquista.
Escravos germânicos, franceses, espanhóis,
escravos gregos, as filas mil de eslavos,
escravos britânicos, sírios, escandinavos,
mais raramente de iranianos arrebóis
e quando vinham dos povos africanos
sempre eram egípcios ou suprasaarianos.
MARFIM NEGRO III
Só nos filmes hollywoodianos há escravos
de pele negra, por puro preconceito,
a escravidão um universal conceito:
morriam na arena os prisioneiros bravos;
e mesmo filhos se vendiam ou, em agravos
de dívidas ou outra quebra do direito,
as leis previam que alguém escravo fosse
feito:
antes ser servo que da tortura os cravos.
Foi abolida a escravidão da Inglaterra
em 1780, já no século dezoito;
seguiu-se a França, em sua Revolução;
só em 1917 abolida em russa terra...
Que ninguém venha, por ignorância afoito,
falar mal de nossa própria Abolição!...
MARFIM NEGRO IV
Entre nós não custou o sangue de ninguém;
o problema foi muita gente acreditar
não precisar nunca mais de trabalhar:
que a sociedade os deveria sustentar...
E qual total desilusão lhes vem,
porque instrução ou profissão não têm,
forçados aos ruins empregos que obtêm,
vão a miséria igualmente suportar...
Que nos trabalhos que exerciam nas fazendas
por imigrantes foram substituídos,
italianos e alemães na maioria;
ou japoneses, ou libaneses em suas tendas...
Deixados a vaguear, bem desnutridos,
a mão de obra que já ninguém queria...
MARFIM NEGRO V
Mas entre nós essa foi só contingência;
costumam escravos ser da mesma cor
desse povo que deles é o senhor,
tribos inteiras submetidas à potência
de outras mais fortes. E pouca gente tem ciência
de que durante a Idade Média, havia vigor
no leste da África e os árabes, sem pudor,
traziam europeus como escravos de
experiência
que ali introduziram a metalurgia,
embora fossem só braçais na maioria...
E ainda hoje, entre os povos africanos,
muita gente em escravidão se encontraria,
tendo outros pretos e mulatos por seus amos
ou até em canibalismos desumanos.
MARFIM NEGRO VI
Também existem escravos lá no Oriente
e vemos esses que pretendem califado,
seus irmãos brancos massacrarem sem cuidado
ou reduzirem à escravidão a pobre gente,
em pleno século Vinte e Um descrente,
querendo impor leis provindas do passado...
Cá no Brasil quase ninguém é informado
que quem impôs a escravidão mais inclemente
foram os comerciantes holandeses
e não os caluniados portugueses,
que preferiam de fato escravidão branca
de judeus convertidos à força franca,
que chamavam aqui de degredados,
de marfim negro não podendo ser chamados...
TRANSMIGRAÇÃO I (2006)
Uns trinta anos atrás,
me apaixonei
por um tronco de árvore,
derrubada
durante a
ventania. Assim, tombada,
a cerca de cem metros
contemplei.
Um galho erguido para o
alto, eu sei,
contra o tronco desnudo
e reclinado...
Mas eu sentia que ainda
era habitado
pela hamadríade. E
o tronco preservei,
até que consentisse,
após dois meses,
que em lenha o
transformassem, por calor.
Há poucos dias, vi outra
árvore e já
roxas estavam as flores
e os talvezes...
Seria possível que meu velho
amor
morasse agora em um
jacarandá...?
TRANSMIGRAÇÃO II – 4
OUT 14
Naqueles anos eu
empregava picareta,
de abrir uma piscina
na intenção,
paleando a terra com
toda a devoção;
de escoamento abri
também uma valeta;
de mim zombavam por
escavação direta:
com qualquer
escavadeira nesse chão
bem mais depressa se
abriria o buracão!...
Porém eu tinha
intenção bem mais secreta...
O que eu queria era
desenvolver
o conjunto muscular,
pernas e braços,
e do tronco retirar
toda a gordura,
julgando assim melhor
me parecer
e conquistar número
maior de abraços,
pelo desgaste desta
investidura...
TRANSMIGRAÇÃO III
Eventualmente, tive
esses resultados,
mas a piscina nunca
completei...
Duas paredes de pedra
até aprontei,
dois pedreiros a meu
lado contratados...
Depois viajei,
deixando abandonados
cova e valetas em que
tanto trabalhei;
anos depois, porém,
quando voltei,
já eram outros os
alvos acertados...
E comecei a podar
vasto jardim,
hastes cortando dos
pés amarelados,
enquanto mudas traziam
para mim;
foi só então que a
conhecer eu vim
essa minha ninfa dos
galhos derrubados,
que só de longe me
abanava, enfim...
TRANSMIGRAÇÃO IV
Pois cada vez que a
foice abandonava
e por entre os pés de
xirca ia chegando,
do seu abano me ia
desesperando:
pura madeira de perto
contemplava...
E até de noite, quando
ali chegava,
na vã esperança de que
sob luar mais brando
a hamadríade estivesse
me esperando,
madeira seca somente eu
encontrava...
De qualquer modo,
conservo meu amor
por cada árvore que
encontre no caminho;
igual que ave quisera
fazer ninho
e lá encontrar essa
ninfa com calor
a me acolher, como se
fosse passarinho,
qual novo galho
enroscado no anterior...
RENÚNCIA
I (2006)
Falhar
sempre é humano e aceitável...
Questão
de revelar equanimidade
perante
os imprevistos. E a desejável
vitória
ser surpresa e liberdade,
sem que
haja o compromisso de vencer.
A vida é
um filme para se assistir.
E o bem e
o mal apenas parecer
de quem
recebe e a dor tem de fruir...
Ou
usufruir do gozo: são iguais,
pois o
sucesso do fracasso é irmão
e ambos
são fantasmas sem valor.
E o bem e
o mal, miasmas temporais,
não nos
devem afetar o coração,
nem vale
a pena sofrer penas de amor...
RENÚNCIA
II
Porém se
às penas de amor eu renunciasse,
as penas
físicas ainda teria de sofrer;
na
zombaria do seu padecer,
nada
seriam os prazeres que gozasse...
E se
apenas por instante os olvidasse!...
Mas é inexorável sobre mim seu exercer
qualquer
que fosse o mal a conhecer,
é
independente de aquiescência que mostrasse.
É tão
mais fácil renunciar penas de amor,
já que
alegrias de amor são transitórias
e de
fato, não se as pode conservar...
Porém
queria dos espasmos ser senhor
ou das
fisgadas nas juntas, peremptórias,
toda a
dor física podendo renunciar!...
RENÚNCIA
III
Pois certamente,
sequer o anacoreta
que aos
prazeres do mundo renunciou
e que em
múmia afinal se transformou,
bem lá no
fundo da caverna mais secreta,
por mais
tivesse sua nutrição discreta,
encolhido
no burel que remendou,
na oração
a penitência que adotou,
não
renunciava à dor que o corpo afeta.
Decerto,
sob seu manto de oração,
na
rigidez com que nunca se queixava,
as cruas
dores humilde suportava,
só de sua
fé aguardando a proteção,
nesses
instantes de êxtase que abraçava,
para das
dores ter depois retaliação...
RENÚNCIA
IV
E
numerosos monges existiram,
que
julgando merecer algum martírio,
para a
estadia abreviar no purgatório,
tremendas
dores a si próprios infligiram...
Eram
cintos de cilício em que dormiram
ou as
mãos queimavam na flama de algum círio,
sobre
colunas longo rezar peremptório
ou então
jejuaram até que consumiram...
Pois
renunciaram não só a penas de amor,
porém a
todos os prazeres materiais,
o paraíso
julgando assim comprar...
Mas sem
poder renunciar a qualquer dor,
que só
faquires, a dominar nexos neurais,
poderiam
em seu orgulho desafiar...
RENÚNCIA
V
Estou
levando as minhas juras e perjuras
para
qualquer lugar do purgatório,
se é que
existe um ambiente assim inglório
para
acolher as minhas purezas tão impuras;
estou
levando a sanidade das loucuras,
envolvidas
em mental emunctório,
oferecidas
quais hóstias em cibório
para um
além das mais doces amarguras;
e
renuncio assim à penitência
e a
qualquer tipo de arrependimento:
sou o que
sou e assumo o meu passado,
na plena
força de meus atos de impotência,
réu de
meus erros e não de julgamento,
sobre o
fundo multicor de meu pecado!
RENÚNCIA
VI
Pois
renuncio a qualquer prêmio concedido
como um
perdão por que me cobram tanto;
já
renunciei a cada lágrima de pranto
e a cada
riso por meu queixo perseguido;
em minha
própria natureza eu tenho crido:
sou como
sou, não escolhi meu canto;
sou o que
sou e não me oculto em manto
de
religião, clube atlético ou partido...
Renuncio
a tudo mais, menos a mim,
por mais
quebrada minha autenticidade;
e a meu
lugar na procissão da humanidade.
E à
própria morte renunciaria assim,
mas só à
vida eu posso renunciar,
em dor e
amor partilhando o meu altar.
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