Bocas
Cristalinas
Duodecaneto
de William Lagos
BOCAS CRISTALINAS
I (2/10/10)
mulheres há que se querem
desejadas,
por se sentirem assim
mais femininas;
e quanto mais para a
paixão te inclinas,
tanto mais elas se sentem
cobiçadas,
como um favor
à sua vaidade;
que, na verdade,
qualquer amor
sempre combate a sua
insegurança;
às vezes, as mais belas
são assim:
precisam ter “lustrado o
ego”, enfim,
como prova mais concreta
de esperança.
BOCAS CRISTALINAS II
outras existem que são
justo o contrário:
são seguras de si, melhor
escolhem
e não permitem que
quaisquer desfolhem
sobre elas seu desejo
multifário
e seus olhares
até ofendem;
somente atendem,
em seus vagares,
o desejo desse homem que
escolheram;
esse lhes basta para a
segurança,
até onde seu prazer igual
alcança,
em que por vez primeira
se aqueceram.
BOCAS CRISTALINAS III
vamos supor que a ânsia
do desejo
assim imaginado, em sonho
vão,
algo retire do alheio
coração
e algo reponha, em
abstrato beijo,
esse pedaço
já retirado
bem arrancado
do seu regaço:
é como transfusão em
peito alheio
e permanece firme e
transplantado
enquanto se conserva
desejado
enraizada a flor em cada
anseio.
BOCAS CRISTALINAS IV
e muito embora seja assim
algo arrancado
para criar a imagem desse
mito,
vive a quimera em seu
querer bendito
ou então maldito,
conforme queira o fado.
ela não morre,
porém rebrota
em cada grota
por onde escorre:
vive no olhar de cada
apaixonado,
vive nos rins de quem
mais a deseja,
vive no coração de quem
não beija,
vive na carne em que o
nada é consumado.
BOCAS CRISTALINAS V
ao mesmo tempo, pela
força do desejo,
no próprio coração também
rebrota
o velame multicor da
imensa frota
das bocas cristalinas
para o beijo.
e não importa
que nunca o dê:
seu peito crê
na paixão morta
e assim se fortalece a
adoração
dessas divas de vida
transitória,
enquanto dura o sonho
dessa glória
e enquanto reverdece o
coração.
BOCAS CRISTALINAS VI
fazia parte do ritual
antigo
que Astarteia fosse
desejada
fisicamente, mais do que
adorada,
útero mágico no verdor do
velho abrigo
e nos seus templos,
toda mulher
o ritual quer
que dê exemplos
da luxúria caridosa de
sua deusa,
uma vez entregando-se, em
nobreza,
a troco de moedas, com
certeza,
para o santuário que o
sexor endeusa.
BOCAS CRISTALINAS VII
já de Afrodite a boca
cristalina
não sorria de maneira
assim tão crua;
ela surgia, inteiramente
nua,
mas imortal, inatingível
e divina
que não pedia
que suas devotas
cobrassem quotas
por cada orgia,
de fato urgia até mais
fidelidade,
que despertassem o desejo
dos amantes,
que se entregassem a
esposos, bem confiantes
no esplendor de total
felicidade.
BOCAS CRISTALINAS VIII
e a cada vez que se
cumpria o sexo,
um pouco de energia era
lançada
no altar dessa deusa
consagrada
ao ideal reprodutivo, em
puro nexo:
nos corações
ela vivia
e renascia
sem orações,
que era o ato de amor que
a consagrava,
mais do que incenso ou
vela ou sacrifício,
conceder fertilidade o
seu ofício
em troca da potência que
ganhava.
BOCAS CRISTALINAS IX
e quem te diz que não
seja verdadeira
esta lenda que nos desce
desde os gregos?
os deuses não contemplam
de olhos cegos:
sabem lançar-nos a bênção
mais certeira
ou a maldição
ou a indiferença
conforme a crença
e a indevoção.
lembra esse mito derivado
de Afrodite,
a quem chamavam Vênus os
romanos:
significados possui bem
mais arcanos
do que estes a que a
razão talvez te incite...
BOCAS CRISTALINAS X
são os altares bocas
cristalinas
que te devoram na força
dos desejos
e só devolvem os
fantasmas de teus beijos
em diferentes, majestosas
sinas.
todos os homens
lançam olhares
a tais manjares,
cheios de fomes
e se pudessem, cada uma
que passasse
seria um vaso para sua
semente,
assim sente o ateu e
assim é o crente,
por mais que seus
impulsos dominasse.
BOCAS CRISTALINAS XI
e coisa igual ocorre com
as mulheres,
seus desejos ocultados
com cuidado
ou apenas afastados com
enfado,
enquanto trataram de
outros afazeres,
mas a cobiça
do amor sensual
é natural
e encontradiça
em cada um de nós, mesmo
inconsciente,
mesmo que apenas como
chispa da vaidade,
na busca de um olhar com
liberdade,
ao interpretar o futuro
no presente.
BOCAS CRISTALINAS XII
pois é assim que nutrimos
mil fantasmas
que vagam por aí, sem pão
nem teto,
na maioria espantados,
sem afeto,
tal qual se fossem
ossadas e miasmas...
nesse descaro
uns sobrevivem,
outros se extinguem,
ao desamparo;
mas às vezes, ao
mergulhar do céu,
conseguem despertar um
tal desejo
que após ser consumado
pelo beijo,
a gente diga: “Não sei o
que me deu!...”
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