MUCHARINGA – William Lagos
(Dança portuguesa da região de Abrantes)
MUCHARINGA I – 20 JUL 2010
Sei muito bem que não há mais
razão
por que rascunhe e passe a limpo
nada;
de fato, já descartei essa
paixão,
após lançar a minha longa
revoada...
Só o guano se contempla pelo
chão,
cada pena esquecida na alvorada,
cada mágoa olvidada do condão,
vazia a cripta que fora antes
lotada.
Não mais na tumba dalma hoje me
jazem
os melhores de meus sonhos
transmitidos,
só rascunhos que de poeira ainda
se fazem,
lembranças de momentos já
perdidos,
longas quimeras de que não mais
recorde
na luz que fulge para que me
acorde...
MUCHARINGA II
Eu já fiz mais que quantos eu
conheço,
que a vida devorei a tracanazes;
os dias eu biquei quais arganazes
e mais quero fazer e mais eu
peço.
O lucro do que fiz jamais
esqueço:
prendi meu coração entre
tenazes!...
Eu faço mais que tudo quanto
fazes
E não me adianta, porém não
esmoreço.
Traduzo livros em múltiplas
dezenas;
caracteres dançando diariamente;
baixo a cabeça ante o visor
luzente,
e artigos traduzi em suas
centenas,
além dos versos secos, mas
contente
por ver crescer tal pilha de
poemas...
MUCHARINGA III
Eu não pretendo dizer que a alma
chora.
Milhares já o disseram e não me
agrada
apenas repetir feito copista. Eu
busco cada
expressão nova delinear na hora
em que me ocorre a inspiração,
embora
já tenha admitido, em outra
balada
que tudo já foi dito e não há
nada
que se possa dizer além do
outrora...
Mas novamente, pouco importa o
que se diz,
só como o dito é dito. Pois vale só a pequena
reviravolta que então se aplica
ao tema
e o torna original, tal qual já
fiz
vezes sem conta, na certeza amena
de transformar o vulgar em nobre
gema...
MUCHARINGA IV
Para isto ao menos serve o
formulário
que se desatualizou. Mais um rascunho
para os poemas brotados de meu
punho,
que tão depressa fogem do
berçário...
Nenhum deles me trará o numerário
de que preciso, neste mês de
Junho,
para os impostos de federal
cunho,
que me esgotam sem fim o
dispensário...
Mas igual que o formulário, este
soneto
se desatualizou. Hoje preferem
linhas sem rima e sem
significado.
Contudo, em tal sendeiro não me
meto,
por mais fácil que pareça, pois
me ferem
a cocleia de um ouvido
cultivado!...
MUCHARINGA V
Estou em toda parte e em parte
alguma,
como um fantasma na infância
assassinado;
cá está meu corpo, minhalma é que
mataram,
nesse atentado ao que tinha de
mais puro.
E enquanto pretendiam, em tonta
bruma
ensinar-me o seu caminho
acidulado
que ao céu conduz, ao contrário,
me podaram
e meu espírito lançaram no
monturo.
Eu sei que retornou, depois de
anos
e em parte habita em mim, mas é
esticado
por todos esses andares em que
esteve,
até que me pudesse, tal qual
deve,
novamente encontrar, esfarrapado
por tantos erros partilhados com
humanos.
MUCHARINGA VI
Quando morreu, até sei
exatamente;
faz pouco tempo que apenas
desisti
de ter toda a esperança; e nem
sofri
ao perceber que me tornara
indiferente.
Quando morri, eu sei
perfeitamente;
nada sentia ao me lembrar de ti,
nem sequer mágoa ao ver que te
esqueci,
depois de lembrar tanto,
diariamente.
Eu me esquecia de ti vezes sem
conta,
durante todo o dia e então
lembrava
e a lembrança ocultava em outro
esboço
de verso numinoso... A luz que
aponta
da ponta de meus dedos resvalava,
porém captá-la agora não mais
posso.
MUCHARINGA VII
Depois que eu for cremado,
voltarei
a presidir meu próprio funeral;
convocarei um velório sem igual
e em tudo que já fui, lá
estarei...
Como criança, eu comparecerei,
também como o menino já sensual,
o adolescente que não ia a
carnaval
ou como adulto e quando viajei...
Será a convocação de antigos eus,
para olhar o ataúde em que não
estou;
olhos nos olhos, todos se
fitarão,
arrepiados de si, desgostos seus,
simples passado que há muito se
esgotou
e sem ressentimentos... sumirão.
MUCHARINGA VIII
Estranha coisa é a vida da
memória...
Voltamos ao passado, realmente?
São os momentos de recordar
frequente
os mais cheios de vida nessa
história?
Ou apenas palmilhamos essa
inglória
rede neural no cérebro jacente
que as impressões revisa
diariamente
a cada vez que a lembrança ali se
escória?
Onde se encontram os mortos que
lembramos?
Fazem parte de nós e nos devoram,
tanto mais quanto mais os
recordamos?
Ou existem alhures, quando os
vemos
em sonhos ou em transes que nos
douram,
de leve apenas, as centelhas que
tivemos?
MUCHARINGA IX
Eu mesmo sou mistério metafísico,
por mais que represente o drama
humano;
embora coma e beba o ente físico,
não é este que sofre o desengano.
Sou eu, mais que meu corpo, que
me empano
pela lembrança de mim, em medo
tísico;
e mais teria, se não fosse o
soberano
desdém que sinto, no meu pendor
crítico.
Há anos me tornei somente túnel
para o pensar dos outros,
inconstante;
minha narrativa é pouco
previsível;
quanto mais retraído, mais eu
vulne-
rável me torno, em verso
delirante,
que me arrebata além do
permissível.
MUCHARINGA X
Eu não pretendo revisar o meu
passado:
cada momento dele hoje pertence
a outrem que não eu; e uma outra
sombra
já se acumula nos fólios de mim
mesmo.
Eu não desejo reviver esse
acabado
refúgio de zumbi, que em mim se
adense,
porque os mortos de mim, na
oculta alfombra
se digladiam, combatendo ali a
esmo.
Houve momentos de alegria e de
tristeza;
tudo contado, só aceito o meu
destino
de forma inversa, que não posso
mais mudar.
Porém o meu futuro, com certeza,
depende ainda de mim. Eu toco o sino
para minha própria missa de
finados celebrar.
MUCHARINGA XI
Se a vida é um rio, cada momento
é estuário,
pois nele se acumula toda a vida...
Não ficamos para trás. Nosso fadário
é lembrar constantemente e dar
guarida
ao que devíamos deixar na
despedida,
mas que nos acompanha qual
ossuário;
do turbulento rio nos traz
ferida,
suas mil dores e alegrias em
sacrário.
Nessa promíscua memória a luz
diária
em que incestuosamente
coabitamos,
com tantos outros caracteres do
passado.
Somos nós mesmos, nesta
multifária
visão canibalística que amamos,
por recordar da infância sem
cuidado.
MUCHARINGA XII
No canto obscuro da imaginação,
eu sempre percebi uma presença,
que me servia, tal era minha
crença,
de protetora em cada situação...
Não permitia que entrasse em
confusão,
sempre que ouvia sua mensagem
tensa:
Não vás em tal lugar! Lá
desavença
encontrarás e igual perturbação!...
Nem sempre obedeci à voz amiga,
mas até hoje não sofri fratura,
nem qualquer mal que me
assaltasse a esmo.
Pois quase sempre divisei a luz
antiga,
protegendo meus atos, sem
loucura,
como um anjo da guarda de mim
mesmo...
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