sexta-feira, 19 de setembro de 2014






MUCHARINGA – William Lagos
(Dança portuguesa da região de Abrantes)

MUCHARINGA I – 20 JUL 2010

Sei muito bem que não há mais razão
por que rascunhe e passe a limpo nada;
de fato, já descartei essa paixão,
após lançar a minha longa revoada...

Só o guano se contempla pelo chão,
cada pena esquecida na alvorada,
cada mágoa olvidada do condão,
vazia a cripta que fora antes lotada.

Não mais na tumba dalma hoje me jazem
os melhores de meus sonhos transmitidos,
só rascunhos que de poeira ainda se fazem,

lembranças de momentos já perdidos,
longas quimeras de que não mais recorde
na luz que fulge para que me acorde...

MUCHARINGA II

Eu já fiz mais que quantos eu conheço,
que a vida devorei a tracanazes;
os dias eu biquei quais arganazes
e mais quero fazer e mais eu peço.

O lucro do que fiz jamais esqueço:
prendi meu coração entre tenazes!...
Eu faço mais que tudo quanto fazes
E não me adianta, porém não esmoreço.

Traduzo livros em múltiplas dezenas;
caracteres dançando diariamente;
baixo a cabeça ante o visor luzente,

e artigos traduzi em suas centenas,
além dos versos secos, mas contente
por ver crescer tal pilha de poemas...

MUCHARINGA III

Eu não pretendo dizer que a alma chora.
Milhares já o disseram e não me agrada
apenas repetir feito copista. Eu busco cada
expressão nova delinear na hora

em que me ocorre a inspiração, embora
já tenha admitido, em outra balada
que tudo já foi dito e não há nada
que se possa dizer além do outrora...

Mas novamente, pouco importa o que se diz,
só como o dito é dito.  Pois vale só a pequena
reviravolta que então se aplica ao tema

e o torna original, tal qual já fiz
vezes sem conta, na certeza amena
de transformar o vulgar em nobre gema...

MUCHARINGA IV

Para isto ao menos serve o formulário
que se desatualizou.  Mais um rascunho
para os poemas brotados de meu punho,
que tão depressa fogem do berçário...

Nenhum deles me trará o numerário
de que preciso, neste mês de Junho,
para os impostos de federal cunho,
que me esgotam sem fim o dispensário...

Mas igual que o formulário, este soneto
se desatualizou.  Hoje preferem
linhas sem rima e sem significado.

Contudo, em tal sendeiro não me meto,
por mais fácil que pareça, pois me ferem
a cocleia de um ouvido cultivado!...

MUCHARINGA V

Estou em toda parte e em parte alguma,
como um fantasma na infância assassinado;
cá está meu corpo, minhalma é que mataram,
nesse atentado ao que tinha de mais puro.

E enquanto pretendiam, em tonta bruma
ensinar-me o seu caminho acidulado
que ao céu conduz, ao contrário, me podaram
e meu espírito lançaram no monturo.

Eu sei que retornou, depois de anos
e em parte habita em mim, mas é esticado
por todos esses andares em que esteve,

até que me pudesse, tal qual deve,
novamente encontrar, esfarrapado
por tantos erros partilhados com humanos.

MUCHARINGA VI

Quando morreu, até sei exatamente;
faz pouco tempo que apenas desisti
de ter toda a esperança; e nem sofri
ao perceber que me tornara indiferente.

Quando morri, eu sei perfeitamente;
nada sentia ao me lembrar de ti,
nem sequer mágoa ao ver que te esqueci,
depois de lembrar tanto, diariamente.

Eu me esquecia de ti vezes sem conta,
durante todo o dia e então lembrava
e a lembrança ocultava em outro esboço

de verso numinoso... A luz que aponta
da ponta de meus dedos resvalava,
porém captá-la agora não mais posso.

MUCHARINGA VII

Depois que eu for cremado, voltarei
a presidir meu próprio funeral;
convocarei um velório sem igual
e em tudo que já fui, lá estarei...

Como criança, eu comparecerei,
também como o menino já sensual,
o adolescente que não ia a carnaval
ou como adulto e quando viajei...

Será a convocação de antigos eus,
para olhar o ataúde em que não estou;
olhos nos olhos, todos se fitarão,

arrepiados de si, desgostos seus,
simples passado que há muito se esgotou
e sem ressentimentos... sumirão.

MUCHARINGA VIII

Estranha coisa é a vida da memória...
Voltamos ao passado, realmente?
São os momentos de recordar frequente
os mais cheios de vida nessa história?

Ou apenas palmilhamos essa inglória
rede neural no cérebro jacente
que as impressões revisa diariamente
a cada vez que a lembrança ali se escória?

Onde se encontram os mortos que lembramos?
Fazem parte de nós e nos devoram,
tanto mais quanto mais os recordamos?

Ou existem alhures, quando os vemos
em sonhos ou em transes que nos douram,
de leve apenas, as centelhas que tivemos?

MUCHARINGA IX

Eu mesmo sou mistério metafísico,
por mais que represente o drama humano;
embora coma e beba o ente físico,
não é este que sofre o desengano.

Sou eu, mais que meu corpo, que me empano
pela lembrança de mim, em medo tísico;
e mais teria, se não fosse o soberano
desdém que sinto, no meu pendor crítico.

Há anos me tornei somente túnel
para o pensar dos outros, inconstante;
minha narrativa é pouco previsível;

quanto mais retraído, mais eu vulne-
rável me torno, em verso delirante,
que me arrebata além do permissível.

MUCHARINGA X

Eu não pretendo revisar o meu passado:
cada momento dele hoje pertence
a outrem que não eu; e uma outra sombra
já se acumula nos fólios de mim mesmo.

Eu não desejo reviver esse acabado
refúgio de zumbi, que em mim se adense,
porque os mortos de mim, na oculta alfombra
se digladiam, combatendo ali a esmo.

Houve momentos de alegria e de tristeza;
tudo contado, só aceito o meu destino
de forma inversa, que não posso mais mudar.

Porém o meu futuro, com certeza,
depende ainda de mim.  Eu toco o sino
para minha própria missa de finados celebrar.

MUCHARINGA XI

Se a vida é um rio, cada momento é estuário,
pois nele se acumula toda a vida...
Não ficamos para trás.   Nosso fadário
é lembrar constantemente e dar guarida

ao que devíamos deixar na despedida,
mas que nos acompanha qual ossuário;
do turbulento rio nos traz ferida,
suas mil dores e alegrias em sacrário.

Nessa promíscua memória a luz diária
em que incestuosamente coabitamos,
com tantos outros caracteres do passado.

Somos nós mesmos, nesta multifária
visão canibalística que amamos,
por recordar da infância sem cuidado.

MUCHARINGA XII

No canto obscuro da imaginação,
eu sempre percebi uma presença,
que me servia, tal era minha crença,
de protetora em cada situação...

Não permitia que entrasse em confusão,
sempre que ouvia sua mensagem tensa:
Não vás em tal lugar!  Lá desavença
encontrarás e igual perturbação!...

Nem sempre obedeci à voz amiga,
mas até hoje não sofri fratura,
nem qualquer mal que me assaltasse a esmo.

Pois quase sempre divisei a luz antiga,
protegendo meus atos, sem loucura,
como um anjo da guarda de mim mesmo...



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