JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE
(Folklore alemão, recolhido pelos Irmãos Grimm, versão poética
de
William Lagos, 26 set 2014)
JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE I
Em Oberbrom, pequena aldeia da
Alemanha
viviam dois homens muito parecidos,
embora não fossem nem sequer
parentes,
a diferença sendo mais da manha
que do aspecto físico que mostravam;
o mais rico tinha modos descontentes
e o chamavam João Grande os
conhecidos;
o mais pobre mostrava sempre bom
humor,
vendo em sua vida o que havia de
melhor:
de João Pequeno assim o
apelidaram...
Tinha João Grande seus quatro
cavalos
e um campo grande para cultivar;
João Pequeno só possuía um cavalinho
e dois alqueires, ambos a
lavrá-los...
João Grande do trabalho não gostava
e deste modo, foi falar com seu
vizinho:
“Com um só cavalo, difícil é amanhar
o seu campinho, mesmo sendo tão
pequeno...
Mal e mal o seu trigo cresce pleno,
e seu cavalo come mais do que
plantava...”
“É bem verdade, meu caro primo
João,”
dizia o outro, que tinha a mesma
altura
e não via motivo de o chamar
de Gross Hans, como se diz em alemão
(mas até com isto o outro se
ofendia...)
“Só um cavalinho eu consegui
comprar,
economizei e passei bastante agrura;
dos meus pais só o campinho herdei,
mas com esforço meus alqueires
trabalhei
e ainda sustento minha avozinha dia
a dia...”
“Mas se tivesse quatro cavalos mais,
muito mais o seu esforço renderia
e poderia algumas horas
descansar...”
“Para minha terra, seriam até
demais...
De fato, um dia por semana me
bastava...”
“Pois é sobre isso que eu queria lhe
falar:
Os meus quatro cavalos emprestaria,
se para mim toda a semana
trabalhasse
e seu único cavalo ainda
atrelasse...
Uma parelha muito forte assim
ficava...”
JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE II
“Mas e quando eu trabalharia na
minha terra?”
“Ora, aos domingos... Pois um dia
não lhe basta?”
“Mas o pastor quer que todos vão à
igreja...”
“Ora, eu vou em seu lugar... Você
fica na encerra:
domingo sim, domingo não, eu sou
você...
Mas pense bem nessa sorte que o
bafeja!
De sua terrinha o atraso todo
afasta,
logo vai estar ganhando muito
mais...
Ou então vá à igreja cedo e volte...
Olhe, ademais,
até a pastar no meu campo seu cavalo
você vê...”
Assim Klein Hans (seu apelido em alemão)
concordou com a proposta do vizinho,
mesmo sabendo que ele era violento
e assim querendo evitar complicação.
Gross Hans dormia até o meio-dia,
sem Klein Hans descansar um só momento.
Sabia bem não ser seu cavalinho
que o vizinho queria, porém o seu
labor
sem precisar pagar qualquer valor,
mas confessava a si mesmo que o
temia...
Dos cavalos só precisava para arar,
que tudo mais podia fazer sozinho,
mas Gross Hans na capina o obrigava
e até na ceifa o forçava a
trabalhar...
Embora, é claro, de muito má
vontade,
nessa labuta ele também colaborava,
lado a lado com seu bom vizinho;
uma pessoa só não conseguia
dar vencimento ao que o campo
produzia:
cento por um e com liberalidade!...
É claro que nos domingos frios de
inverno
João Pequeno era na igreja um
regular,
sem que João Grande saísse de sua
cama...
Dizia o pastor não aprovar o arranjo
eterno
que o prendia nos domingos de verão,
além de trabalhar toda a semana:
“O seu vizinho o está a
explorar!...”
Mas era inútil com João Grande
conversar:
“Eu não o obrigo a nos domingos
trabalhar!
Se ele o faz, é tão só por
ambição!...”
JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE III
De qualquer modo, o arranjo
continuava
e João Pequeno estalava o seu
chicote,
de preferência sem nos animais
tocar;
toda a semana para o vizinho
trabalhava,
“Eia, meus cavalinhos!... – a
exclamar,
mais com a voz os querendo
entusiasmar,
pedras do chão arrancando com
pinote,
que ia empilhando ao longo da
divisa,
como uma cerca, lugar que ninguém
pisa,
sem protestos, na longa obra a se
esforçar...
Toda a semana, João Grande nem
notava,
pois tinha grande amor pela sua
cama;
ao levantar, o trabalho achava
feito,
sua própria avó o almoço
preparava...
Mas aos domingos, embora a
contragosto,
levantava mais cedo, contrafeito,
diversamente do resto da semana,
para cumprir seu dever de ir à
igreja,
mas sem manter o trato que se
enseja,
dormia no banco, meio tapando o
rosto...
Quando saía, passava na taberna
e lá tomava seis canecas de cerveja,
com bom pedaço de salame ou de
morcilha...
e ao retornar para sua sesta eterna,
João Pequeno via os cavalos a
incitar:
“Eia, meus cavalinhos!...” Seus dentes
então rilha.
“Ó João Pequeno!” – com voz
malfazeja
ele gritava. “Vá parando com essa
história
de dar-se ares com alheia glória!...
Quatro cavalos meus está a
tocar!...”
“Mas é só uma maneira de dizer...”
João Pequeno com João Grande se
explicava.
“São meus apenas para esse trabalho...
Nos dias de semana, com prazer,
eu grito a mesma coisa, ao
estugar......
Nunca reclama quando eu aro no seu
talho;
se digo meus, é que assim os comandava...”
“Mas eu não quero, João Pequeno,
entendeu bem?
Grite outra coisa para os incitar
além!
Ou com o chicote faça a parelha se
esforçar!...”
JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE IV
João Pequeno concordava, mansamente,
e lá se ia João Grande, cambaleando,
a tarde inteira a bebedeira a
cozinhar...
Mas na sua ausência, cada vez que via
gente,
João Pequeno, sem maldade, retomava:
“Eia, meus cavalinhos, vamos
trabalhar!...”
E outros vizinhos de João Grande iam
troçando:
“Já vendeu seus cavalos ao João
Pequeno?”
Sendo orgulhoso, essa troça era um
veneno
e novamente com o vizinho rezingava...
“João Pequeno, você vai se
arrepender!
Não lhe vou reclamar terceira vez!
Não grite mais como se fossem seus
os meus cavalos ou então, irá sofrer
um bom castigo, muito mais que
espera!...”
João Pequeno ficava quieto e dava
adeus
tão logo se afastava o camponês,
mas mesmo pobre, tinha seu próprio
orgulho,
ressentido também do seu esbulho,
que seu vizinho o maltratava como
fera!...
E quando voltava o povo da igrejinha
(porque não fora, sentindo-se
culpado)
sendo humano, o demônio da vaidade
o provocava e a gritar de novo
vinha:
“Upa, upa, meus queridos
cavalinhos!...”
Do seu arranjo sabia bem a
comunidade
e tinha toda a simpatia do seu lado;
os camponeses lhe abanavam e sorriam
e os cavalos facilmente o obedeciam,
pelas raízes arrancando paus e espinhos!
Mas João Grande escutou-o,
novamente,
estando já bastante embriagado
e lhe gritou: “Esses cavalos não são
seus!”
João Pequeno desculpou-se,
humildemente...
“Eu prometi que o iria castigar!...”
Fácil os bêbados se tornam em
sandeus...
Pegou uma pedra e, mirando com
cuidado,
no meio da testa acertou o
cavalinho!
Morto na hora, ainda do arado no
caminho...
“Eu o avisei!... Agora não pode se
queixar!...”
JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE V
Com medo do vizinho, João Pequeno,
como único protesto, proclamou:
“O nosso trato agora está
desfeito!...”
“Pouco me importa, já colhi meu
feno!...”
E João Grande a cerquinha derrubou.
os seus cavalos arrastando de mau
jeito!
Junto do seu, João Pequeno se
agachou
e percebendo que, de fato, já
morrera
esse único que a ele pertencera,
tomou uma faca e o couro lhe
esfolou...
Colocou-o a secar, sobre um varal
e uma cova abriu para o animal,
enterrando-o com lágrimas nos olhos;
a sua própria colheita no final,
assim que o couro viu ao sol secar,
colocou em um saco seus espólios,
era até leve e, com passo natural,
saiu caminhando para a próxima
cidade,
em que os venderia com maior
facilidade,
sem saber como outro bicho iria
arranjar...
Mas era outono e chegou uma
tempestade;
seguiu em frente, com o couro na
cabeça,
mas ficou escuro e se perdeu da
senda...
o riachinho virara torrente de
verdade...
Mas o couro trazia ar e assim
flutuou...
Do outro lado, viu uma casa de
fazenda...
Será que eu ganho pousada, caso eu peça?
Estava trancada, mas viu uma
claridade;
bateu à porta e pediu
hospitalidade...
Mas uma voz veio de dentro e
recusou!
“Prossiga o seu caminho, viandante!
Meu marido saiu numa viagem
e na sua ausência, não deixo entrar
ninguém!”
“Mas minha senhora, é uma chuva
trovejante!
Estou empapado, eu posso até
morrer!...”
“Tenho até pena de você, porém,
sem meu marido, não tenho coragem
de abrir a porta para qualquer
estranho...”
“Vai me deixar neste vendaval
tamanho?”
“Não insista, porque o não vou
receber!...”
JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE VI
Bem ao lado, porém, havia um celeiro
e João Pequeno subiu pela escadinha;
estendendo seu saco sobre a palha,
com o couro se cobriu e bem ligeiro
pegou no sono, mesmo tendo fome.
Talvez seja um castigo, por minha falha
em trabalhar aos domingos na terrinha...
Só espero que não me bique essa cegonha!
Ele pensou. Se eu
cegar, será coisa medonha!
Mas logo a ave bate as asas e no ar
some.
Mas pouco tempo depois que
adormecera
foi acordado por um jato de luz,
que escapava por uma janela aberta;
pensando que ele fora embora, a má hospedeira
servira a mesa com lauta refeição,
pois a casa que afirmara estar
deserta
abrigava um hóspede, que usava uma
cruz
de puro ouro, pendurada no seu peito
e bebia vinho para não botar
defeito:
da outra aldeia ele era o
sacristão!...
Embora luterano, João Pequeno o
conhecia;
na aldeia vizinha, a gente era
católica
e algumas vezes, ali vendera trigo e
aveia...
Mas que diabo o sacristão ali fazia?
Diziam que ao bom padre ele enganava
e furtava as esmolas de sua aldeia,
só dando ao cura qualquer soma simbólica...
Não era sacerdote, mas ficara solteiro
para fingir em nada ser interesseiro
e um pé-de-meia depressa acumulava!...
E ali estava o grande espertalhão,
comendo à farta e bebendo ainda mais!
Um bom assado, peixes e uma torta,
enquanto estou com esta fome de leão!
Continuou olhando, com água na
boca...
Foi por isso que ela bancou a mosca-morta!
As suas desculpas só mentiras irreais,
pois lá estava o sacristão, todo enfeitado!...
Com a comida ficaria empanturrado
e ele curtindo essa sua fome louca!...
JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE VII
Mas agora que amainara a tempestade,
chegava um homem, montado a cavalo,
que foi à porta bater, diretamente,
dando a impressão da maior
autoridade...
Só poderia ser da casa o dono!...
Senão, não insistiria firmemente...
Mas a mulher, logo depois de
escutá-lo,
foi pôr no forno toda a sua comida
e o vinho em prateleira bem
escondida,
o sacristão assustado como um
mono!...
Ao vê-la a comida no forno enfiar,
João Pequeno, só de fome, deu um
gemido!
E então o dono da casa o escutou...
“Quem está aí?” – foi indagando,
desconfiado.
“Sou João Pequeno,” respondeu o
rapaz.
“E por que no meu celeiro se
enfiou?”
“Fugi da chuva, senhor. Estou escondido
porque sua esposa não quis me dar
abrigo,
pensou, talvez, que eu fosse um
inimigo,
que na sua ausência de fazer mal
fosse capaz...”
“Ah, minha Claudine sempre foi
prudente...”
“Pois é, mas a chuva estava forte
e foi assim que me deitei sobre sua
palha...
Se me mandar, vou embora,
incontinenti!...”
“Nada disso! Eu sou hospitaleiro,
mas essa chuva também me
atrapalha...
Claudine, abra! Sou eu, o seu consorte!...
Estou molhado! Levante dessa cama!...
Só me esperava para a próxima
semana,”
ele explicou, “mas retornei bem mais
ligeiro...”
“Ande logo, mulher! Estou com frio...
E você, venha comigo. Dou-lhe abrigo
se ao menos essa mulher me abrir a
porta!”
“Ora, a chuva estava forte como um
rio,”
decerto ela tem sono pesado...”
disse o rapaz, sua coberta
enrolando, meio torta;
o couro e o saco a carregar consigo,
até que a mulher abriu a porta,
atribulada...
“Meu pobre Nicklaus! Troquei a roupa, atrapalhada...
Ficou esperando muito, meu
amado...?”
JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE VIII
“Já estou batendo faz um quarto de
hora!...”
Ela abraçou o marido, firmemente:
“Venha para a cama, vai precisar
dormir!...”
“Preciso é de comida e sem
demora!...
E depois, trouxe comigo um
convidado...”
Mas o sacristão não tivera tempo de
fugir
e se enfiara numa arca, velozmente,
que só usavam para guardar lenha...
“Vou pendurar a capa e logo venha
com qualquer prato que tenha
preparado...”
“Não o esperava... Mas verduras me
sobraram
do que servi aos empregados no
jantar...”
Ela queria era livrar-se dele bem
depressa
e trouxe a travessa, que os dois
logo aceitaram...
Mas João Pequeno só pensava no
festim
que ela no forno guardara a toda
pressa...
Cerveja morna foi a mulher buscar
e foram comendo a salada fria e
crua...
“Pobre rapaz! Você o deixou dormir na rua!
Contudo entendo que foi por respeito
a mim...”
Claudine pensava só no seu sacristão
que a essa altura já se acharia sem
ar...
Mas João Pequeno pisou no saco sob a
mesa
e sem querer, meio o empurrou, de
sopetão...
E o couro úmido soltou logo um
rangido...
O fazendeiro demonstrou certa
surpresa.
“Que foi isso?” Mas ele fingiu não escutar
e novamente pisou no saco, bem
ligeiro...
“E esse barulho...?” “Ah, é o meu feiticeiro!
Eu o prendi, mas só reclama esse
bandido!...”
“Mas de que jeito o conseguiu
prender?”
“Fiz o feitiço virar contra o
feiticeiro...”
“E por que esse seu bruxo está
gemendo...?”
“Não é gemido, ele só quis me dizer
que o forno encheu com ótimas
vitualhas,
por certa mágica que ainda está
fazendo...
Que não comamos esta salada por
inteiro...”
Claudine ficou branca de assustada:
“Não, marido, ali no forno não há
nada!...”
“Foi o meu bruxo que as criou, sem
falhas...”
JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE IX
E de fato, Nicklaus foi o forno
abrir
e encontrou peixe, bolos, carne
assada,
mais uma torta para sobremesa...
Claudine já pensava até em fugir...
Mas João Pequeno insistiu: “É
poderoso
o meu feiticeiro...” Era esperteza,
a mulher não queria deixar
atrapalhada,
mas é claro que ela percebia tudo
agora:
que sua safadeza ele assistira lá de
fora,
quando abrira a veneziana. Que medo
tenebroso!
Nicklaus e João Pequeno puseram-se a
comer,
ela olhando o visitante,
apavorada...
E se ele tivesse visto o sacristão?
João Pequeno teve vontade de beber
e deu no couro mais um pontapé,
de rangido produzindo profusão...
“Falou de novo essa sua alma
danada?”
“Ora, ele só disse que naquela
prateleira
há três garrafas de vinho de
primeira...
Tudo criou, de tão mágico que é...”
Pois novamente Nicklaus foi conferir
e sem dúvida, as três garrafas
encontrou...
Claudine ficou a render graças a
Deus
porque as vazias já fizera sumir,
pratos e copos lavando na cozinha...
“E o feiticeiro, pelos poderes
seus,”
indagou Nicklaus, depois que o vinho
tomou,
“seria capaz de me mostrar o
diabo...?”
“Mas isso é pedir muito, ao fim e ao
cabo!
Não terá medo de uma visão assim
daninha?”
Nicklaus, já embriagado, respondeu:
“Um bom cristão não tem medo do
diabo!
Afinal, pode ou não seu
feiticeiro...?”
Com um pontapé, outra vez o couro
rangeu.
“Ele disse que pode? Ele falou...?”
“Ele até disse, senhor fazendeiro,
mas não o quer mostrar a homem
honrado...
O diabo já está aqui, porém é
feio!...
De sua visão o senhor não tem
receio?”
“Tenho minha cruz no peito!” – o
outro afirmou.
JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE X
“Pode até ser... Mas resolveu meu
feiticeiro
que o fará se mostrar, mas
disfarçado
no Sacristão de Niederbrom... O que me diz?”
De Claudine o coração bateu ligeiro.
“Sou luterano e detesto sacristães,
Mas ao de Niederbrom, mais mal eu
quis:
com minha Claudine ele já foi
desaforado!
E rouba ao padre o dinheiro das
esmolas...
Queria mesmo, é agarrá-lo pelas
golas,
dar-lhe uma sova e atirá-lo aos
cães!...”
João Pequeno chutou o saco mais uma
vez.
“O feiticeiro está avisando que não
pode!
Não será o sacristão que iremos ver,
mas o diabo, disfarçado em tal
freguês...
Se tocar nele, ficará
amaldiçoado!...”
“Está certo... Mas o faça aparecer...”
“Já está ali na arca... Mas fede
como um bode!
Peça que levante a tampa a sua
mulher...”
“Claudine? Pobre bicho, não ousará sequer...”
O sacristão suava de medo e fedia,
apavorado...
Quanto a Claudine, estava branca
feito giz!
João Pequeno falou: “Vou eu mesmo
levantar...”
Abriu a tampa e se encolheu o
sacristão...
O fazendeiro ir olhar de perto
quis...
“Mas que fedor!... É até pior do que
eu pensava!
Tem mesmo a cara de porco do
ladrão!...”
João Pequeno deixou a tampa então
tombar.
Brindaram juntos e depois disse o
fazendeiro:
“Quero comprar esse seu
feiticeiro!...”
“Ah, não poderia! Em tudo ele me ajudava!...”
“E se eu lhe der um saco de
coroas...?
Cem boas moedas do mais puro
ouro!...”
“Olhe,” disse João Pequeno, após
hesitação,
“vou aceitar pelas comidas boas
e a hospitalidade que me ofereceu...
Mas é só por que lhe tenho gratidão!
Ele está preso nesse meu saco de
couro
e vou dar ordens que obedeça só a
você
e que lhe fale também, ora se
vê!...”
E Nicklaus até a boca o saco
encheu...
JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE XI
“Mas o diabo não pode ficar aqui!
Dê-me a arca, que o jogarei no
rio!...”
Nicklaus ficou muito agradecido;
prendeu dois cavalos à carroça logo
ali,
ajudando João Pequeno a carregar,
com lágrimas nos olhos, comovido...
“Não quer passar a noite? Está tão frio!”
“Com o diabo aqui do nosso lado?
E se nos tenta a cometer algum
pecado?
Não!
Vou ao rio para a arca ali jogar!...”
“Vou deixar sua carroça lá na aldeia
de Niederbrom. Pago alguém para a trazer...
É gente honesta, mesmo de outra
religião...”
E se tocou para o rio. Mas se arreceia
o pobre sacristão, começando já a
gritar:
“Deixe que eu saia daqui, meu bom
irmão!”
“Não sou irmão do diabo! Agora vai morrer!”
“Mas eu não sou o diabo, sou o
Sacristão
de Niederbrom! Juro pela minha devoção
que uma sacola de dinheiro eu vou
pagar!...”
“Está certo... Uma sacola de ouro
bem contado?
“Sim, sim, eu juro! Somente não me jogue!...”
“Então escreva nesta folha de papel
que vai pagar por que o encontrei
disfarçado
de diabo e com a mulher do
fazendeiro!
Senão vai à sacristia, ali veste o
seu burel
e vai pedir socorro!” “Sim, sim, só não me afogue!”
Assinada a promessa, dirigiu até a
aldeia,
pegou o dinheiro e acrescentou outra
maneia:
“Mande entregar esta carroça bem
ligeiro!...”
Chegou em casa ainda de manhã...
Muito bem pago havia sido o seu cavalo!”
Foi a João Grande pedir-lhe uma
vasilha:
“Quero medir a minha aveia
temporã...”
Mas o sacristão quase só lhe dera
prata...
Então pegou uma moeda de sua pilha,
grudando-a no fundo, só para
enganá-lo;
levou a medida depois para o
vizinho,
que examinou seu fundo com carinho,
sentindo uma surpresa muito grata...
JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE XII
Mas onde foi que ele arranjou esta moeda?
E foi depressa a João Pequeno
interrogar.
“Em Niederbrom está valendo muito o
couro;
Fiz leilão pelo melhor preço que
conceda...
E olhe aqui! Recebi cem escudos de prata
e mais um saco de coroas de
ouro!...”
João Grande saiu dali e seu machado
foi pegar,
matando logo seus quatro cavalos,
bem depressa dos couros a
esfolá-los,
correndo à aldeia empós fortuna
grata!...
Com o peso, logo estava esbaforido,
pingando sangue e mais suor de andar
a pé...
Fui burro! Um devia ter
poupado!...
Sem me cansar me teria conduzido.
Chegou a Niederbrom em dia de feira
e seus couros ofereceu, acalorado...
Oito sacos de moedas quis até!...
Mas com ele se zangaram os
curtidores
e os sapateiros o cercaram, sem
temores,
dando-lhe sova de pauladas bem
certeira!
A carroça ele avistou quando fugia;
entrou nela e saiu em disparada,
mas no caminho encontrou o
fazendeiro
e sendo tão parecido com João
Pequeno,
levou uma nova sova de chicote!...
Para Oberbrom, sua aldeia, correu
ligeiro,
uma terrível vingança maquinada
pela armadilha que João Pequeno lhe
aprontara!
Perdera os couros dos cavalos que
matara
e estava todo machucado por
escote!...
Enquanto isso, a avó de João
Pequeno,
que tinha quase cem anos,
falecera...
Ele a colocou em sua própria cama
quente,
contra seu frio quiçá
contraveneno!...
E foi a noite passar em uma
cadeira...
Mas João Grande, pé ante pé, mas
ferozmente,
com o mesmo machado que os cavalos
abatera,
entrou em sua casa e um golpe
desferiu
na cabeça da velhinha... E então, fugiu,
dando risadas pela maldade que
fizera!...
JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE XIII
Ora, antigamente o pai de João
Pequeno
emprestara boa quantia a um
taverneiro,
que jamais se dispusera a
devolver...
Comprou carroça e cavalos, bem
sereno
e a velhinha colocou ali sentada,
na taverna penetrando ao amanhecer,
sua carroça estacionada no terreiro;
com um escudo de prata ele comprou
três garrafas de vinho e convidou
o taverneiro para uma boa
talagada...
“Mas deixe um pouco para a minha
avozinha,
que está sentada na carroça, me
esperando;
vai visitar uns parentes na cidade
e deve estar com frio, a pobrezinha...”
Mas o taverneiro quase tudo bebeu
e então João Pequeno, com
sagacidade:
“Leve o resto para a Vovó!” – foi
ordenando.
“Você não manda em mim, mas vou
levar...”
“É seu trabalho e acabei de lhe
pagar...”
Já tropeçando, o caloteiro
obedeceu...
Foi carregando a garrafa e mais um
copo,
cumprimentando a velhinha
empertigada
que naturalmente, não lhe
respondeu...
Estando bêbado, se irritou com muito
pouco:
“Pegue esse copo, Vovó, vai se
aquecer!”
E como a coitada sua mão não
estendeu,
desferiu-lhe uma valente garrafada
e a infeliz despencou até o chão!...
“Você matou minha Vovó, seu
trapalhão!”
“Eu não queria essa morte
cometer!...”
“Foi meu mau gênio!... O que vou
fazer agora?”
“Ora, vá até a polícia
apresentar-se...”
“Santo Deus!” – disse o pobre embriagado,
“Não pode o crime disfarçar-se nesta
hora...?”
“Talvez, se me pagar quanto me
deve...”
E o estalajadeiro pagou, muito
aliviado;
foram à Niederbrom, num lençol a
enrolar-se
a pobre velha, para esconder a sua
ferida;
e a depositaram em sua última
guarida...
O sacristão a protestar sequer se
atreve...
JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE XIV
João Pequeno largou o taverneiro
na estalagem e voltou para sua
aldeia,
encontrando João Grande no caminho,
horrorizado ao encontrá-lo assim
inteiro...
João Pequeno lhe mostrou a vasta
quantia...
“Mas... está vivo?” – indagou
devagarinho.
De um fantasma o malvado se
arreceia...
“Ao desferir em mim aquela machadada
estava a Vovó na minha cama então
deitada...
Mas que compravam cadáveres eu
sabia...”
“Fui a Niederbrom e pagou bem o
boticário...
Agora, adeus! Olhe, não mate mais ninguém!...”
Mas João Grande realmente era
malvado...
Minha própria avó está caduca!
Seu fadário
vou aliviar hoje mesmo e ainda lucrar...
Abriu-lhe o crânio com o seu
machado!...
Carroça e cavalos foi alugar também
e voltou a Niederbrom de
madrugada...
O boticário o recebeu de cara
amarrada:
“Por que a esta hora veio me
perturbar?”
“É que eu lhe trouxe minha avó para
vender...”
“E por que essa velha caduca eu iria
comprar?”
“Não está mais caduca. Ela morreu...
Matei-a eu mesmo!” “E o que quer que
eu vá fazer?”
“Vendo o cadáver por um saco de
dinheiro!...”
“Você é louco!” – o boticário
respondeu.
“Faço de conta que não o pude
escutar...
Pois não percebe que vai ser
enforcado?
Você está bêbado ou é mesmo
atrapalhado...
Vá embora daqui!... Vá bem ligeiro!...”
Mentiu João Grande que era
brincadeira
e para Oberbrom voltou rapidamente;
colocou em sua cama a avozinha
e uma pedra do teto fez ligeira
desprender e cair na sua cabeça...
Saiu depois para a aldeia vizinha,
socorro a pedir... “Ocorreu um
acidente!”
E como nada ele tinha para herdar,
a pobre velha sua comida a cozinhar,
logo a enterraram, sem culpá-lo pela
peça...
JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE XV
Mas desta vez eu terei a minha vingança!
Quando encontrou João Pequeno
distraído,
um saco lhe enviou sobre a cabeça!
“Vou afogá-lo e pegar a sua
abastança!...
E com o saco nas costas, caminhou,
até o rio, para afogá-lo bem
depressa!
Mas passou pela igreja e ali reunido
viu todo o povo de sua avó no funeral!
Se eu não entrar também, vai pegar mal!
E João Pequeno junto ao portão
largou!...
Mas por ali passou um velho
salteador
que abandonara sua terrível
profissão
e agora gado só comprava e revendia,
mas que sabia ter sido grande
pecador
e esperava ir direto para o
inferno...
Uma boiada nesse dia conduzia
e um animal deu no saco um
tropeção...
João Pequeno se acordou, num
escarcéu:
“Sou muito moço para ir agora para o
céu!”
“Pior sou eu, que vou ao castigo
eterno!...”
“Pois então troque de lugar comigo!
Em meia hora no céu já estará!”
“Tem certeza?” “Eu lhe juro por
minha alma!
Fui escolhido, mas não quero ir,
amigo!
Estão rezando por mim ali na
igreja...”
O salteador aceitou e, com toda a
calma,
trocaram de lugar. “Mas você cuidará
de minha boiada...?” “Claro,
faço-lhe o favor...”
Fechou bem o saco e com o maior
fervor
tocou a boiada, sem que João Grande
o veja...
Mas assim que João Pequeno foi
embora,
João Grande mentiu estar triste
demais,
saindo do igreja ainda durante o
funeral,
pondo o saco nas costas nessa
hora...
O velho era, porém, muito mais leve,
mas João Grande não pensou nada de
mal:
Deus me perdoou por meus crimes naturais;
já descansei do peso do atrevido!...
É só um castigo por me haver iludido...”
Já o salteador em falar sequer se
atreve...
JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE XVI
E assim João Grande jogou o velho no
rio,
muito contente por se ter vingado...
Mas na volta, deparou com uma boiada
mais João Pequeno... E sentiu um
calafrio...
“Mas como? Outra vez ressuscitou?
Ou por acaso é uma alma penada?...
“Você pensou que havia me afogado,
mas no fundo do Rio Bromm há um
jardim
e um vasto reino ali se abriu
perante mim,
mais uma jovem, que me
desamarrou...”
“Você é muito bonito, meu rapaz,”
ela me disse, “e não tenho um
pretendente.
Sou filha do Gênio do Rio, quero
casar,
mas por aqui não há ninguém capaz...
Você aceita, então, casar
comigo...?”
“Mas como eu deixaria de aceitar?
Com você eu me caso incontinenti...”
“Primeiro tenho de ir falar com o
meu pai,
mas esta boiada como sinal lhe
vai...
Leve-a à sua aldeia e retorne sem
perigo...”
“Assim, eu vou vender esta boiada
e pegar os meus três sacos de
dinheiro,
depois casar no sábado que vem...
A minha noiva é verdadeira fada
e nem sei como se interessou por
mim...
Tem quatro irmãs... Você não quer
também
arranjar uma noiva, bem ligeiro...?
“Será que alguma me quer por
namorado?”
“Mas é claro! Você é tão bem apessoado...
Só não escolha a que me quis
assim...”
“João Pequeno, você me prestará um
favor?
“Farei o que quiser, querido
amigo...”
“Então me jogue bem fundo nesse
rio...”
“Mas por que? Você não sabe mergulhar?”
“Eu não consigo, vou ficar me
debatendo...”
“E minha boiada? Vou levar para meu tio...”
“Deixe na minha fazenda, sem
perigo...”
E lá se foram os dois a caminhar,
João Pequeno mil mentiras a contar,
tocando o gado, que já quase ia
correndo...
JOÃO PEQUENO E JOÃO GRANDE XVII
Guardado o gado, já as margens a
avistar,
João Pequeno exclamou: “Vizinho, mas
que azar!”
“Como assim...?” “É que o meu saco está no fundo
e um outro saco vamos ter de ir
buscar!...
Sei que você é um excelente nadador
e sem um saco, no ponto mais
profundo
de forma alguma conseguirá
chegar...”
“Então, amarre uma pedra nos meus
pés!
Dessa forma, eu chegarei até os
sopés...”
“Mas não vai se desatar, no seu
pavor?...”
“Não, não vou!... Amarre bem minhas mãos
e meu pescoço também ate com uma
corda...
Assim é garantido que eu afundo...”
“Está certo, mas com duas condições:
a minha noiva nem pense em
namorar!...
O nome dela é Coralina e num
segundo,
pode pensar que sou eu... Você
concorda?”
“Claro que sim... E qual é a outra condição?”
“Diga ao gênio que você é meu irmão
e de mim só coisas boas irá
falar...”
João Grande concordou, na maior
pressa
e João Pequeno desenrolou as cordas
com que o salteador prendia a boiada,
amarrando João Grande bem depressa,
com duas pedras e atando bem seus
braços...
“Está bem assim? Não quer mais nada?”
“Está ótimo! Só me empurre até as bordas...”
João Pequeno não se fez mais de
rogado...
João Grande, é claro, morreu
afogado,
igual que o salteador, sem deixar
traços...
Livre assim da maldade do inimigo
e agora tendo bastante dinheiro,
bem depressa João Pequeno se casou,
não com a filha do gênio, que um
abrigo
tivera apenas em sua imaginação...
Mas foi Margrete que ele desposou,
que há muito o desejava por
parceiro,
decerto a moça mais formosa de sua
aldeia,
muito melhor que a tal falsa sereia
que ele inventara com toda a
inspiração!...
ÉPÍLOGO
Depois disso, continuou trabalhador
e comprou a fazenda abandonada
de João Grande, vivendo muitos anos
com sua Margrete, no maior amor:
com muitos filhos sua união foi
abençoada!
Se cometeu alguns atos desumanos,
foi em legítima defesa comprovada
e só enganou a quem engano
merecia...
E se moral esta história nos trazia,
é que a maldade sempre acaba
castigada...
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