BORBOLETAS SEM ASAS & MAIS
William Lagos
BORBOLETAS SEM ASAS I – 26 AGO
2014
Tu és minha religião. Queria ser a tua,
mas teus deuses são outros e
convêm
mais para ti do que aqueles que
me veem
e me aconselham na vida que me
estua.
Sou ingrato a meus deuses. Sob a lua,
sou herege por ti. E me sustém
essa fé no invisível. Não se tem
fé senão no impossível, nessa nua
certeza do jamais que não se
toca,
nem cheira ou lambe, nisso que
não se vê,
pois crer no que se vê é só
ciência...
És fantasma de mim, que a mente
invoca,
à neblina da noite, em que se crê
quando o ato nos falha e é só
potência...
BORBOLETAS SEM ASAS II
Potência e ato... Ou antes, impotência.
Eu quis meus sonhos que fossem
borboletas,
que a ti levassem, em missões
secretas
quaisquer mensagens de pura
redolência.
Que cada verso meu fosse a
regência
de um novo perfume em suas
aletas;
que chegassem à tua mente como
setas,
que te curassem sem causar
ardência.
Mas descobri, para meu desengano,
que as borboletas que seriam
mensageiras
e a ti levassem tais missões
certeiras
não tinham asas e só podiam o
plano
da terra firme bem lentas
percorrer,
que os pés esmagam, sem sequer as
ver...
BORBOLETAS SEM ASAS III
Mas por que não tinham asas os
meus cantos?
Meus chasques se esforçavam, sem
poder (*)
seu voo alçar e assim tinham de correr
pelas mil sendas que percorrem prantos...
Capacetes eu fundi e dei-lhes mantos
para melhor no caminho as proteger,
porém sem asas tinham de sofrer
martírio igual ao que sofreram santos...
Pois que eram missionárias, afinal,
as borboletas sem asas que enviei
e esses mantos que teci eram pesados...
Ficaram presas às estradas, sem sinal
que as protegesse. E os
sonhos que mandei
acabaram pelas trilhas esmagados...
(*) Mensageiros. Palavra gauchesca de origem inca.
BORBOLETAS SEM ASAS IV
Somente algumas chegaram.
As mais pobres,
cujos mantos não chamavam atenção,
a quem estranhos não tomaram pela mão,
para vender por miseráveis cobres,
como fizeram com as melhores, as mais nobres,
que se perderam no caminho, a maldição
dessa bênção, por que eram, com razão,
cobiçadas, por motivos que descobres
bem facilmente, após raciocinar...
E as que chegaram junto de teus pés
não tinham como te ascender à mente;
subiram pela roupa, em seu grimpar,
com suas mensagens de cândidas fés,
sem que o amor a teus olhos se apresente.
BORBOLETAS SEM ASAS V
E ao perceber que minhas pobres
borboletas
nem sequer te alcançariam, eu
busquei,
por entre as flores de multifária
grei,
suas pétalas mais suaves e
diletas;
sem revelar minhas intenções
secretas,
sobre meus próprios braços as
juntei
e revestido de flores, eu tentei
alçar meu voo acima das
sarjetas...
Mas fui pesado demais. Minhas incertezas
e os conflitos de minha mente
desvalida
levaram facilmente de vencida
até o mais forte impulso em tais
proezas,
de tal modo que desisti dessa
intenção,
para guardar só para mim tal
religião...
BORBOLETAS SEM ASAS VI
Mas de que serve a religião que
deus não tem?
Transformou-se velozmente em
ideologia,
e aos poucos, dissolveu-se em
fantasia,
concluindo em pouco mais do que
um porém...
E sendo amor o que a adoração
contém,
se tornou bem depressa em elegia;
não fora deusa quem para mim
luzia,
mas só neblina que em noite fria
me vem.
E contudo, ainda tento as
borboletas
fazer voar com pétalas de flores,
mesmo que seja só para observar
como elas voam em danças
incompletas;
não são atos de mim, tampouco
amores,
mas mesmo assim, ainda belas de
se olhar...
SACRAMENTO I (2006)
Havia amortecido e ela me trouxe
de volta à luz que peregrina brilha
de permeio à neblina; e assim minha trilha
retilínea de novo aos olhos revelou-se;
ela me trouxe esperança: que se eu fosse
somente pertinaz, então a quilha
da nave do destino, milha a milha
poderia conduzir... e aproximou-se
muito de mim, feliz em seu capricho,
para fugir depois, ensimesmada,
a refugiar-se em seu antigo nicho.
A musa se afastou, porém a vida
por ela tão somente despertada
ficou nos cacos de versos refletida.
SACRAMENTO II (27 AGO 14)
Tempo houve em que certas paredes
eram com cacos de garrafa rebocadas,
a maioria verde-escuro ou acastanhadas;
mais raramente um azul ou branco medes.
Os pedreiros as quebravam, como vedes,
e na argamassa as deixavam entremeadas;
para as camisas evitar serem rasgadas
as emparelhavam com fretacho em lisas redes. (*)
Ficavam os cacos a reluzir ao sol
e tal reboco dispensava ser pintado;
mas aos poucos ia caindo o véu quebrado
de esmeraldas e topázios em farol;
ou então ingênuo algum teria roubado
para ao pescoço os pendurar em caracol...
(*) Pequena
tábua de madeira com agarrador, em que se coloca
a argamassa,
que vai sendo retirada com a ponta da colher.
SACRAMENTO III
Mais adiante, começaram a esmigalhar
as garrafas e a reunir os seus farelos
na amálgama da massa, com desvelos,
na imitação de mil diamantes a brilhar...
Ninguém já nestes conseguia se cortar,
mas os moleques davam riscos paralelos
para deixar de si um rastro e selos;
então com tinta era mais raro se pichar...
Ainda vejo em algumas casas a ostentação
desses cacos de vidro, em furtacor,
mas era trabalhoso de aplicar
e mesmo a poeira penetrava no pulmão,
ferindo assim o pedreiro em seu labor,
sem que o salário o pudesse compensar...
SACRAMENTO IV
Do mesmo modo, a musa me aplicou
cacos de vidro ao coração vazio;
cacos de ânsia amortecendo o cio,
cacos nos olhos de que a lágrima brotou.
Mas me deixou feliz quanto durou
a aplicação de seu fretacho no meu brio;
cacos de juras escorrendo como um rio
que na epiderme inteira derramou.
Contudo o arco-íris com que me marchetou
só manteve duração em sua presença;
tornei-me fosco tão logo se afastou;
não obstante, o sacramento me abençoou
e essa poeira fininha ainda me incensa
em cada caco que nas veias me sobrou.
QUERELANTE I – 28 AGO 14
Há tanta coisa que em sua oposição
É apenas definida,
sem certeza,
Como a feiura é a
ausência de beleza,
Como a apatia é a ausência de emoção.
Como a mania se opõe à depressão,
Tal como a força é a
medida da fraqueza,
Como a miséria
reflete a não riqueza,
Como o desânimo contraria a exultação.
A própria morte é apenas vida ausente
E quanto é imóvel se
opõe ao movimento,
Como o silêncio se conhece pelo som
E a mesma ausência é o contrário do presente,
O corriqueiro sendo o
oposto do portento
E só se entende o mal por não ser bom.
QUERELANTE II
Existe um dito de profeta antigo:
“Faze aos outros o
que queres que te façam,”
Porém é mais que
isso. Os que te abraçam
Abraçam a si mesmos, é o que eu te digo.
Os que te batem, têm igual castigo,
Pois todos somos um,
por mais que o embaçam
As nossas ilusões que
nos enlaçam;
Todos sofremos de um igual perigo.
Estás no corpo daquela que beijaste
E ela está no teu –
somos um só
E feres a ti mesmo, em golpe duro
São os teus ossos mesmo que quebraste,
Todos brotamos desse
mesmo pó
E toda luz tem seu ocaso escuro...
QUERELANTE III
Em nada busco aqui definições,
Que a força do poeta
é ser incerto;
Quando dispara, busca
chegar perto,
Mas não alvos atingir em exatidões.
Porque poemas são mais transformações;
Devem ser traduzidos
pelo acerto
Com que se encara o
verso mais aberto:
Que outrem qualquer lhes dê explicações
Tais que melhor as sinta e a cada um
Pertence a inteira
certeza do momento,
No momento em que a certeza assim percebe;
Porque o soneto não pertence àquele algum
Que o redigiu, mas
tem o amplo intento
De ser o próprio licor de quem o bebe...
QUERELANTE IV
Desse modo, um poema não define,
Não dá certezas, não
se enterra fundo;
É muito mais um sonho
vagabundo:
Soa na escala de quem o toque e afine.
É muito mais um acalanto que te nine
Que manual de
instrução para teu mundo;
O verso aprende, se
torna limpo ou imundo
Conforme a interpretação que se lhe ensine.
Não pertence assim ao autor, mas a quem lê,
Como o prato pertence
a quem o come,
Tal qual o vinho pertence a quem o bebe,
Tal como o seio pertence ao teu nenê,
Tal como o amor é
dado a quem o tome,
E a chuva é dada ao solo que se embebe.
ANIVERSÁRIO VAZIO I – 29
AGO 14
Entre hastes de papoula,
havia boninas
no pátio dessa casa em que
morei;
junto a touceiras de bambu
em que deitei,
a pitangueira de frutas
purpurinas;
havia uma pereira e as
guias finas
da madressilva entrelaçadas
nessa grei;
grinaldas de noiva, manacá
que então cheirei
nos curtos anos das
travessuras pequeninas;
e havia um longo renque de
parreiras,
enfileiradas em frente ao
galinheiro,
que aprisionava também
quatro figueiras,
mais um galpão de madeira,
acinzentado,
com aranhas caçadoras de
terreiro,
em suas costas um camafeu
bem desenhado.
ANIVERSÁRIO VAZIO II
Havia outro renque de
esguios marmeleiros
e outra figueira
gigantesca, que amesquinha
três ameixeiras de frutação
mesquinha;
cinco canteiros de
retângulos faceiros
construídos por simpáticos
pedreiros,
quando a casa fez aumentar
minha avozinha:
um quarto para si, copa e
cozinha;
então cortaram palmeira e
limoeiros;
essas casas antigas de
quintal
eram providas assim desses
pomares:
pequenas chácaras dentro da
cidade;
para minha mãe eu arrancava
o pastiçal,
de bela-emílias contemplava
os azulares,
flores novas a plantar com
alacridade.
ANIVERSÁRIO VAZIO III
Há hoje um prédio erguido
no lugar
em que morei até os
quatorze anos;
quando fiz quinze, já
sofrera os desenganos
de uma mudança de grande
lamentar;
é um prédio baixo, só o
terceiro andar
se eleva acima dos antigos
planos;
pouca riqueza para tantos
danos,
vinte árvores por nada a
derribar...
Só imagino em que os
troncos usaram;
naquele tempo quase não
havia lareiras;
só em poucas casas, apesar
do frio
e nem sequer calefação
montaram
na velha casa até as
derradeiras
e mortas horas sem fim do
desafio.
ANIVERSÁRIO VAZIO IV
Costumavam celebrar
aniversários
no vasto círculo das
paternas relações;
“creme rosado”, de doces
tentações,
era servido às visitas em
tais horários;
mas os meus quinze anos
solitários
festejaram tão somente nos
salões
que fizeram da igreja nos
porões.
para meu gosto em gastos
perdulários,
pois preferia ter de volta
a casa,
com o meu quarto dando para
a rua
e uma sacada em que a
criada namorava;
no corredor, com sua escada
rasa,
não permitiam que ficasse à
luz da lua,
que assim a pobre nunca
engravidava...
ANIVERSÁRIO VAZIO V
Mas acredito até que o
preferisse:
tivera poliomielite a
infeliz,
“paralisia infantil”, qual
então se diz:
que a perna curta, desse
modo, ninguém visse
e protegida pela sacada
conseguisse
parecer um tanto bela a pobre
miss,
que enfim, sonhava e quem
sabe mesmo quis
desfilar para o povo que a
aplaudisse;
dos quadris para cima, era
perfeita
e de fisionomia até bonita,
no confundir-se de beleza e
mocidade
e eventualmente a
“amigar-se” se sujeita,
com quem sua perna curta
não irrita,
em certa noite buscando a
liberdade...
ANIVERSÁRIO VAZIO VI
De fato, foi o final
aniversário;
fomos morar depois muito
distante;
até o trem que nos passava
diante
só ia parar noutro marco
miliário;
havia um ônibus para algum
gregário,
mas automóveis ainda raros
nesse instante,
porém carroças e “aranhas”
em constante
trafegar sobre o empoeirado
do viário.
Como tudo mudou! Surgiram televisão,
os eletrodomésticos na
cozinha,
a água do banho ainda
aquecida com carvão;
chuveiro elétrico ainda
ninguém tinha;
que novidade foi a panela
de pressão
diante dos tanques de gelo
do porão!...
TSUNDOKU I – 30 AGO 14
(Termo japonês para compra de livros
em excesso)
No soneto da noite a longa espera:
chovem palavras pelas frestas do
telhado;
pelo meu próprio estro apedrejado,
pequenas tésseras sobre o verso que se
altera.
Vou emparelhando as goteiras que assim
gera
esse enlameado manancial de rebuscado;
ideário alheio que dos céus é
derribado,
igual que o pólen com que a abelha faz
a cera.
Fervo os alvéolos para a minha
colmeia,
não mais que o arcabouço de meus
favos;
deixo os espaços para o mel de uma
epopeia,
porém neles percebo mais os cravos
dessa cruz que tu mesma irás erguer
com teus anseios a cada alvéolo
preencher.
TSUNDOKU II
Por isso a longa espera do soneto,
em que os temas se intercalam como em
tela
ou como grade em que o orvalho gela
e se transforma em pingentes de
amuleto;
as frases pingam em endurecido afeto,
o líquido de ouro aos dedos mela;
o gelo do destino na entretela
que torna o caimento mais completo.
Talvez espere o soneto ser impresso,
porém o faço voar pela alvorada:
vai aos satélites a sua brotação;
de ti espero que o envolvas nesse
gesso
que dos ossos se esvai na madrugada
e que o enquistes em teu coração...
TSUNDOKU III
De que me serve a imensa biblioteca
a ser formada por vinte mil sonetos,
entre as capas os sonhos mais secretos
no matrimônio de um amor que peca;
duzentos tomos de versos que se especa
nas prateleiras tais quais fossem
espetos,
triste churrasco de sonhos prediletos,
azedo vinho respingado de caneca...
Seria hercúlea tal tarefa seca...
De Áugias limpou o herói cavalariças
do esterco acumulado há gerações...
Acadêmica, talvez, ainda sem beca,
busque reunir as mil canções mortiças
desse açougue em que pingam
corações...
TSUNDOKU IV
Nem sei se eu mesmo jamais o farei,
do mesmo modo que nunca imprimirei
as longas horas que nas noites
passarei,
sem que algum sono chegue a conciliar,
pois biblioteca poderia aparelhar
só com essas horas de vazio pensar,
só entrecortadas por rápido piscar,
nesses instantes em que adormecerei.
Ninguém imprime as dores e os
suspiros,
nem o constante palpitar do coração;
são meus sonetos igualmente numerosos
e tão inúteis quanto imprimir os giros
dos ombros e quadris sobre o colchão,
na busca vã dos sonhos desdenhosos...
TSUNDOKU V
Não pensaria em imprimir um relatório
das refeições que faço diariamente;
ou bibliotecas do banho tão frequente;
ou descrever meu respirar em
palavrório;
É certo que algum dia um consultório,
como um índice indiscreto para a mente
queira fazer dos discos e da gente
que os compôs e interpretou; ou um
diretório
desses milhares de livros que comprei
dos quais muitos não li; ou até dos
selos,
só terça parte dos quais
classificados;
minhas coleções assim reduzirei
a pastas complicadas, ao invés de
tê-los,
naturalmente, apenas contemplados....
TSUNDOKU VI
Mas por que aduzir a tal volume
vinte mil e mais sonetos já lançados
nas linhas eletrônicas, em alados
conjuntos digitais, qual vasto cume?
Dos servidores ao satélite que rume,
em torno a meu planeta controlados;
bem facilmente poderão ser acessados
e nesse brilho das telas vir a lume...
De fazer livros não há fim – foi
Salomão
que disso lamentou há tantos anos...
Assim espero, que cedendo à compulsão,
só faça versos para a atual computação
em nuvem... que hoje a Terra dos
humanos
invisível engolfa, mas em real
prisão...
MAGMA I (2004)
Revesti-me de amores, lentamente,
Em melopeia rubra de guirlandas,
Grinaldas puras de emoções mais brandas,
Quando o desejo explode mais frequente...
Sendo assim meus amores mais quimeras,
Aprendi a conter-me em meus orgasmos,
Para servir mansamente seus espasmos
Num marulhar de lavas em crateras...
Que se acumulam rubras, trovejantes,
Respiram cinzas, gases sulfurantes
Em piroplástica e férvida explosão...
Sopitando os anseios, sufocados,
Até não mais contê-los, extasiados,
Para explodirem em cálida emoção!...
MAGMA II (31 AGO 14)
Revesti-me de luzes, bruscamente,
Em cantilena branca de aquarela,
Na crista dessas ondas de
procela,
Em surfar desenfreado e
consistente,
Sendo assim as minhas luzes uma
tela
Que mais deixava passar a luz
pungente
Que produzir sua luz
interiormente:
Sobre um raio de sol lancei minha
sela...
E nele pus meu freio e seus arreios,
Feitos da luz que escorre de meus
dedos,
Buscando esse corisco cavalgar...
Serviram-me de espora mil
anseios,
Deixei no vento, para trás, os
meus segredos,
Tornando o raio de sol no meu
cantar...
MAGMA III
Revesti-me de trevas, igualmente,
Rezando o terço dos mil
desenganos,
Na corrida tresloucada pelos
anos,
Alocando minhas penas, indolente,
Transferindo meus erros, bem
contente,
Para o porvir, em atos bem
humanos;
Cedo ou tarde, pagarei pelos
insanos
Desatinos cometidos no presente.
E nessas trevas corri, sem ter
archote,
Meus pés tocando apenas as mil
fendas,
Cada buraco tendo ar na
cobertura.
Sobre as fissuras maiores dei o
bote
E percorri no escuro essas mil
sendas,
Que conduzem à mais pérfida
angostura.
MAGMA IV
Revesti-me de ódios, certamente,
E constituí com eles armadura;
Minha espada foi malícia toda
pura
E meu escudo a mentira bem
frequente.
Adotei um outro eu, bem
diferente,
Sob essa capa envolta a
queimadura
Da inveja alheia e da dor que me
tortura;
Não me tocaram a pele em permanente
Ferida e erupção, porém minha
boca,
Meus olhos e meu rosto, meu nariz
Não estavam protegidos por um
elmo;
Usei apenas da insolência a touca
E me atrevi a contar o que não
fiz,
Enovelado pelo Fogo de
Santelmo!...
MAGMA V
Revesti-me de sonhos, doidamente,
Na busca longa da afeição perene
Da mariposa branca que me acene
De uma parede caiada,
ocultamente...
Meus pesadelos usei, afoitamente,
Tomei o seu controle em firme
leme;
Cada monstro chicoteei e hoje me
teme;
Todos domei para mim, violentamente.
E desse mundo ideal que construí
Os trouxe para o mundo material,
Em que rasgam os poemas que
versejo;
Porém recolho os fragmentos que
assim vi
E os vou colando na poeira
imaterial
Dessa lembrança morta do teu
beijo.
MAGMA VI
Enfim de lava revesti-me, indiferente
A seu queimor nos braços e cabelos;
Sobre as cinzas soergui os meus desvelos,
No travesseiro da erupção frequente.
Foi o magma assim o meu presente
Roubado do passado, mesmos selos
De lacre, que quebrei só para tê-los
Em minha coleção equijacente...
E nessas lavas o coração queimei,
Queimei o meu ardor, queimei o sexo,
Porque te foste para não voltar...
E quando novamente te encontrei,
Fui descobrir de novo o teu amplexo,
Mas já sem coração para te amar.
MULTÍPARO
I – 20 JUL 2006
Mesmo que eu sinta o meu amor
desfeito,
Meu coração ferido e contrafeito,
Meu ventre amarfanhado de emoção,
Inda prefiro a vaga exaltação
Que reluz em poemas, de mansinho.
Por mais que seja o sonho
pequeninho,
Por mais gagueje a musa e me
abandone,
Por mais que a frustração de mim
se adone,
Por que a alegria não vá causar
conflito
Ao pleno gozo de meu ideal
aflito,
Eu vou tranquilizar meu coração,
Só por saber que o gozo
vespertino
Irá afastar de mim o peregrino
Dom melancólico de um verso de paixão...
MULTÍPARO II (1º SET 14)
Se me desprezo a mim, como eu espero
Que os demais me contemplem com respeito?
Se encaro o meu reflexo em despeito,
Quem buscará de mim o reverbero?
Pois nem é que persiga ideal austero;
Tenho meus vícios: encontro-me sujeito
À diária busca dos motes sem defeito
E pela gula de versos sou sincero...
Não é que busque doces ou viandas,
Porém nunca com pouco me contento;
Sou faminto da vida e amealho
Dos outros as ideias mais nefandas;
Só no trabalho é que meu corpo esquento
E brota a vida aos golpes desse malho.
MULTÍPARO III
Bem sei que morro e, às vezes, até quero;
É bem possível que feliz abraçaria
A Ceifadora que bem sei que me vigia,
Caso indolor fosse o trânsito que espero.
Difícil é a vida em que a mim mesmo gero
No mesmo ramerrão, dia após dia;
Nem lentas mortes assim desejaria,
Mas implodir-me em pleno reverbero.
Quero ser meu próprio Doppler, ressonância
Que me transformaria em eco e onda,
Não mais do que um zunido em que me esgoto,
Só conservado numa nuvem de impedância,
No quântico ondular, em vasta ronda
Na qual ao magnetismo me devoto!...
MULTÍPARO IV
Mas vem a inspiração,
meiga e espontânea,
Do âmago do ser,
fertilizada
Pela fusão dos
neurônios, destinada
A tudo
destinar... Sou sucedâneo
De urbanas lendas do
soez contemporâneo,
Sou ersatz de minhalma, aposentada,
Por meretrizes puras
marchetada
Pela desfaçatez do
miscelâneo...
Sou feito de emoções,
almíscar luz
Na madrepérola do mais
sutil degelo,
Lápis-lazúli de
faraônico desvelo...
E ela brota,
sorrateira como a cruz
Sobre as batinas dos
padres simoníacos,
Bem mais profeta que
todos os zodíacos!
EX-VOTO I (2004)
Ao ver me procuravas, desconfiado
fiquei, sem saber quê me querias:
seria apenas por vãs aleivosias,
ou por me desejares do teu lado?
Ao ver que me encontravas,
satisfeito
fiquei apenas, num toque de
vaidade:
que desejasses mais do que
amizade
perpassou-me da mente, num
trejeito...
Deixando agora tantas
esquivanças,
tantas tolices, novas alianças
vêm de juntar o teu destino ao meu,
esperando, sem tardo, que a
alegria
desta amizade sincera que eu
sentia,
bem fundo ao coração, brilhe no
teu!...
EX-VOTO II (02 SET 14)
Por que essa ânsia de
acompanhamento
que existe ao fundo do coração
humano?
Cada beijo que se busque, até
profano,
mais fortalece o querer do
complemento,
num adejar do ideal greco-romano,
bem mais que a perfeição do
movimento
dessas estátuas imóveis num
momento,
mas que parecem vigiar-nos sem
engano...
O que se busca é o brilho desse
olhar
que nos percorre a alma inteiramente,
as mãos de prata em meigo
deslizar,
o som da flauta no murmurar
frequente
desses lábios entreabertos no
beijar,
porém jamais possuídos
totalmente...
EX-VOTO III
O que se busca é o compartir da
solidão,
que nunca é satisfeita
totalmente;
mas se a tua me dás
completamente,
a minha inteira te darei, com
devoção;
duas solidões revolvendo em
turbilhão,
a minha solta nos teus braços, em
pungente
usufruir do teu vazio fremente,
como um filho em fantasiosa
gestação;
como um golem brotado de uma lenda,
que nos engolfa, igual manto de
anis,
oferecendo sua inconsútil
proteção,
do mundo externo calafetando cada
fenda
que ameace a solitude tão feliz
do sacramento enovelado da
ilusão...
corações
de corda I – 03 SET 14
costumam
ser de fibra os corações
um
tecido muscular bem rejuntado
por
hemácias cada recôndito regado
leucócitos
a passear em procissões
costumam
ser de carne essas mansões
plaquetas
correm em decathlon coagulado
por
sístole e diástole controlado
sem
assentar ali suas povoações
são
gigantescos palácios de encarnado
como
os lenços que têm revolucionários
ou
as bandeiras de tantas gerações
corações
brancos nem sequer no descampado
dos
corações em ataúdes mortuários
por
mais que fossem suas desilusões
corações
de corda II
contudo
brota a lenda do passado
de
ser a sede ali das emoções
pelas
pancadas das atribulações
ou a
dor fina de quem for rejeitado
sabe-se
hoje bem diverso o resultado
o
coração é impulsionado em injeções
de
hormônios que lhe vêm das contrações
de
um outro órgão pela mente comandado
somente
doem ali as sensações
do
medo que nos traz a adrenalina
do
cansaço que nos traz serotonina
do
impulso para a luta as impressões
enquanto
amor nos confere a endorfina
na
senda mística das rudes ilusões
corações
de corda III
mas
emoções nos vêm de fora geralmente
pela
visão viperina na vereda
para
o súbito recuar que não lhe ceda
o
calcanhar para seu morder pungente
ou a
impressão da borrasca mais premente
na
inquietação da situação mais queda
a
brisa morna que madeixas nos enreda
ou o
frescor da chuva complacente
tudo
isso ao coração acorda e ativa
e
então nos puxa para fora de nós mesmos
como
linhas e anzóis de pescador
e o
coração recebe e não se esquiva
dessas
lianas que nos vêm a esmos
enquanto
somos a caça e o caçador
corações
de corda IV
mas
de fato os corações tramam as cordas
das
mil e uma humanas relações
das
alegrias e jubilantes exultações
desses
prazeres mútuos que concordas
ou
dos medos e temores com que acordas
por
choque súbito de rápidas pressões
cordas
de amor ou cordas de traições
cordas
que chegam aguçadas contra as bordas
de
teu espírito e com elas vais trançando
fibra
por fibra teu próprio coração
para
formar uma rede de rancores
teu
vermelho coração ainda lanhando
ou
no abraçar ansioso da ilusão
nessa
tua ânsia febril por mais amores
ENTRAVES I – 2004
Passei o dia envolvido
com manual
para um rádio de bordo,
triste sina;
bem mais queria os braços
da menina
do que esta tradução que
masturbei.
Foram meus dedos que
celebraram o ritual:
folha após folha o tédio
me domina;
pouco me importa a
instrução que nos ensina
que usei as mãos e a
glória não cantei.
Somente agora, desgastada
a madrugada,
quando o almaço digital
verifiquei,
é que me resta um momento
de poesia
e as horas dançam no
surgir da fada;
perco o cansaço e não
descansarei
no derradeiro turbilhão
de minha agonia.
ENTRAVES II – 04 set 2014
Nas traduções eu busco o
desafio
de qualquer coisa
aprender que inda não sei,
algo que guarde do tempo
que gastei
nessa represa de qualquer
alheio rio;
quando é um romance, novo
livro eu crio,
por mais fiel que seja ao
que encontrei;
os meus torneios de frase
registrei,
algo de mim deixei nesse
vazio...
Porém na técnica não há
margem realmente:
é só aquilo que já consta
do manual
e não descubro interstício
para mim;
então deponho minhas
horas, descontente,
sem o estranho prazer
desse ritual
em que com outrem me
relaciono assim.
ENTRAVES III
Na verdade, quando mais
trabalho chega,
em parte me entusiasma a
recompensa,
mesmo que envolva a mente
numa tensa
certidão de óbito, que
tão só alega
o final de uma vida e sua
presença;
só o luto de raspão é que
me pega,
alguma pena alheia que me
rega,
quiçá a espera de uma
herança densa...
E nelas vejo a humana
vacuidade:
nesse entrave para o
fluir de meu vazio,
cortam de mim o fluxo em
que crio...
Mas certidões são
documentos de saudade:
talvez mais a sinta pelo
desconhecido
do que quem sobreviveu ao
falecido...
ENTRAVES IV
Pois na verdade, não
consigo me alienar.
Eu sinto em mim a humana
brotação.
De alheias vistas tenho a
percepção
e nelas vejo o que
costumam contemplar.
Mesmo um manual me
desperta o meditar;
talvez encontre em
testamento inspiração
ou em currículos
escolares a gestação
de novos versos de cunho
infamiliar...
Cada cristal a me trazer coloração
em que os contornos se
perdem em nuances
que nunca vira com meus
olhos nus;
e assim as redijo, tal
como em floração
sabores e conotações que
não alcances,
quais fragmentos de balas
de alcaçuz!...
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