terça-feira, 2 de setembro de 2014






BORBOLETAS SEM ASAS & MAIS
William Lagos

BORBOLETAS SEM ASAS I – 26 AGO 2014

Tu és minha religião.  Queria ser a tua,
mas teus deuses são outros e convêm
mais para ti do que aqueles que me veem
e me aconselham na vida que me estua.

Sou ingrato a meus deuses.  Sob a lua,
sou herege por ti.   E me sustém
essa fé no invisível.  Não se tem
fé senão no impossível, nessa nua

certeza do jamais que não se toca,
nem cheira ou lambe, nisso que não se vê,
pois crer no que se vê é só ciência...

És fantasma de mim, que a mente invoca,
à neblina da noite, em que se crê
quando o ato nos falha e é só potência...

BORBOLETAS SEM ASAS II

Potência e ato...  Ou antes, impotência.
Eu quis meus sonhos que fossem borboletas,
que a ti levassem, em missões secretas
quaisquer mensagens de pura redolência.

Que cada verso meu fosse a regência
de um novo perfume em suas aletas;
que chegassem à tua mente como setas,
que te curassem sem causar ardência.

Mas descobri, para meu desengano,
que as borboletas que seriam mensageiras
e a ti levassem tais missões certeiras

não tinham asas e só podiam o plano
da terra firme bem lentas percorrer,
que os pés esmagam, sem sequer as ver...

BORBOLETAS SEM ASAS III

Mas por que não tinham asas os meus cantos?
Meus chasques se esforçavam, sem poder (*)
seu voo alçar e assim tinham de correr
pelas mil sendas que percorrem prantos...

Capacetes eu fundi e dei-lhes mantos
para melhor no caminho as proteger,
porém sem asas tinham de sofrer
martírio igual ao que sofreram santos...

Pois que eram missionárias, afinal,
as borboletas sem asas que enviei
e esses mantos que teci eram pesados...

Ficaram presas às estradas, sem sinal
que as protegesse.   E os sonhos que mandei
acabaram pelas trilhas esmagados...
(*)  Mensageiros.  Palavra gauchesca de origem inca.

BORBOLETAS SEM ASAS IV

Somente algumas chegaram.  As mais pobres,
cujos mantos não chamavam atenção,
a quem estranhos não tomaram pela mão,
para vender por miseráveis cobres,

como fizeram com as melhores, as mais nobres,
que se perderam no caminho, a maldição
dessa bênção, por que eram, com razão,
cobiçadas, por motivos que descobres

bem facilmente, após raciocinar...
E as que chegaram junto de teus pés
não tinham como te ascender à mente;

subiram pela roupa, em seu grimpar,
com suas mensagens de cândidas fés,
sem que o amor a teus olhos se apresente.

BORBOLETAS SEM ASAS V

E ao perceber que minhas pobres borboletas
nem sequer te alcançariam, eu busquei,
por entre as flores de multifária grei,
suas pétalas mais suaves e diletas;

sem revelar minhas intenções secretas,
sobre meus próprios braços as juntei
e revestido de flores, eu tentei
alçar meu voo acima das sarjetas...

Mas fui pesado demais.  Minhas incertezas
e os conflitos de minha mente desvalida
levaram facilmente de vencida

até o mais forte impulso em tais proezas,
de tal modo que desisti dessa intenção,
para guardar só para mim tal religião...

BORBOLETAS SEM ASAS VI

Mas de que serve a religião que deus não tem?
Transformou-se velozmente em ideologia,
e aos poucos, dissolveu-se em fantasia,
concluindo em pouco mais do que um porém...

E sendo amor o que a adoração contém,
se tornou bem depressa em elegia;
não fora deusa quem para mim luzia,
mas só neblina que em noite fria me vem.

E contudo, ainda tento as borboletas
fazer voar com pétalas de flores,
mesmo que seja só para observar

como elas voam em danças incompletas;
não são atos de mim, tampouco amores,
mas mesmo assim, ainda belas de se olhar...

SACRAMENTO I (2006)

Havia amortecido e ela me trouxe
de volta à luz que peregrina brilha
de permeio à neblina; e assim minha trilha
retilínea de novo aos olhos revelou-se;

ela me trouxe esperança: que se eu fosse
somente pertinaz, então a quilha
da nave do destino, milha a milha
poderia conduzir... e aproximou-se

muito de mim, feliz em seu capricho,
para fugir depois, ensimesmada,
a refugiar-se em seu antigo nicho.

A musa se afastou, porém a vida
por ela tão somente despertada
ficou nos cacos de versos refletida.

SACRAMENTO II (27 AGO 14)

Tempo houve em que certas paredes
eram com cacos de garrafa rebocadas,
a maioria verde-escuro ou acastanhadas;
mais raramente um azul ou branco medes.

Os pedreiros as quebravam, como vedes,
e na argamassa as deixavam entremeadas;
para as camisas evitar serem rasgadas
as emparelhavam com fretacho em lisas redes. (*)

Ficavam os cacos a reluzir ao sol
e tal reboco dispensava ser pintado;
mas aos poucos ia caindo o véu quebrado

de esmeraldas e topázios em farol;
ou então ingênuo algum teria roubado
para ao pescoço os pendurar em caracol...
(*) Pequena tábua de madeira com agarrador, em que se coloca
a argamassa, que vai sendo retirada com a ponta da colher.

SACRAMENTO III

Mais adiante, começaram a esmigalhar
as garrafas e a reunir os seus farelos
na amálgama da massa, com desvelos,
na imitação de mil diamantes a brilhar...

Ninguém já nestes conseguia se cortar,
mas os moleques davam riscos paralelos
para deixar de si um rastro e selos;
então com tinta era mais raro se pichar...

Ainda vejo em algumas casas a ostentação
desses cacos de vidro, em furtacor,
mas era trabalhoso de aplicar

e mesmo a poeira penetrava no pulmão,
ferindo assim o pedreiro em seu labor,
sem que o salário o pudesse compensar...

SACRAMENTO IV

Do mesmo modo, a musa me aplicou
cacos de vidro ao coração vazio;
cacos de ânsia amortecendo o cio,
cacos nos olhos de que a lágrima brotou.

Mas me deixou feliz quanto durou
a aplicação de seu fretacho no meu brio;
cacos de juras escorrendo como um rio
que na epiderme inteira derramou.

Contudo o arco-íris com que me marchetou
só manteve duração em sua presença;
tornei-me fosco tão logo se afastou;

não obstante, o sacramento me abençoou
e essa poeira fininha ainda me incensa
em cada caco que nas veias me sobrou.

QUERELANTE I – 28 AGO 14

Há tanta coisa que em sua oposição
É apenas definida, sem certeza,
Como a feiura é a ausência de beleza,
Como a apatia é a ausência de emoção.

Como a mania se opõe à depressão,
Tal como a força é a medida da fraqueza,
Como a miséria reflete a não riqueza,
Como o desânimo contraria a exultação.

A própria morte é apenas vida ausente
E quanto é imóvel se opõe ao movimento,
Como o silêncio se conhece pelo som

E a mesma ausência é o contrário do presente,
O corriqueiro sendo o oposto do portento
E só se entende o mal por não ser bom.

QUERELANTE II

Existe um dito de profeta antigo:
“Faze aos outros o que queres que te façam,”
Porém é mais que isso.  Os que te abraçam
Abraçam a si mesmos, é o que eu te digo.

Os que te batem, têm igual castigo,
Pois todos somos um, por mais que o embaçam
As nossas ilusões que nos enlaçam;
Todos sofremos de um igual perigo.

Estás no corpo daquela que beijaste
E ela está no teu – somos um só
E feres a ti mesmo, em golpe duro

São os teus ossos mesmo que quebraste,
Todos brotamos desse mesmo pó
E toda luz tem seu ocaso escuro...

QUERELANTE III

Em nada busco aqui definições,
Que a força do poeta é ser incerto;
Quando dispara, busca chegar perto,
Mas não alvos atingir em exatidões.

Porque poemas são mais transformações;
Devem ser traduzidos pelo acerto
Com que se encara o verso mais aberto:
Que outrem qualquer lhes dê explicações

Tais que melhor as sinta e a cada um
Pertence a inteira certeza do momento,
No momento em que a certeza assim percebe;

Porque o soneto não pertence àquele algum
Que o redigiu, mas tem o amplo intento
De ser o próprio licor de quem o bebe...

QUERELANTE IV

Desse modo, um poema não define,
Não dá certezas, não se enterra fundo;
É muito mais um sonho vagabundo:
Soa na escala de quem o toque e afine.

É muito mais um acalanto que te nine
Que manual de instrução para teu mundo;
O verso aprende, se torna limpo ou imundo
Conforme a interpretação que se lhe ensine.

Não pertence assim ao autor, mas a quem lê,
Como o prato pertence a quem o come,
Tal qual o vinho pertence a quem o bebe,

Tal como o seio pertence ao teu nenê,
Tal como o amor é dado a quem o tome,
E a chuva é dada ao solo que se embebe.

ANIVERSÁRIO VAZIO I – 29 AGO 14

Entre hastes de papoula, havia boninas
no pátio dessa casa em que morei;
junto a touceiras de bambu em que deitei,
a pitangueira de frutas purpurinas;
havia uma pereira e as guias finas
da madressilva entrelaçadas nessa grei;
grinaldas de noiva, manacá que então cheirei
nos curtos anos das travessuras pequeninas;
e havia um longo renque de parreiras,
enfileiradas em frente ao galinheiro,
que aprisionava também quatro figueiras,
mais um galpão de madeira, acinzentado,
com aranhas caçadoras de terreiro,
em suas costas um camafeu bem desenhado.

ANIVERSÁRIO VAZIO II

Havia outro renque de esguios marmeleiros
e outra figueira gigantesca, que amesquinha
três ameixeiras de frutação mesquinha;
cinco canteiros de retângulos faceiros
construídos por simpáticos pedreiros,
quando a casa fez aumentar minha avozinha:
um quarto para si, copa e cozinha;
então cortaram palmeira e limoeiros;
essas casas antigas de quintal
eram providas assim desses pomares:
pequenas chácaras dentro da cidade;
para minha mãe eu arrancava o pastiçal,
de bela-emílias contemplava os azulares,
flores novas a plantar com alacridade.

ANIVERSÁRIO VAZIO III

Há hoje um prédio erguido no lugar
em que morei até os quatorze anos;
quando fiz quinze, já sofrera os desenganos
de uma mudança de grande lamentar;
é um prédio baixo, só o terceiro andar
se eleva acima dos antigos planos;
pouca riqueza para tantos danos,
vinte árvores por nada a derribar...
Só imagino em que os troncos usaram;
naquele tempo quase não havia lareiras;
só em poucas casas, apesar do frio
e nem sequer calefação montaram
na velha casa até as derradeiras
e mortas horas sem fim do desafio.

ANIVERSÁRIO VAZIO IV

Costumavam celebrar aniversários
no vasto círculo das paternas relações;
“creme rosado”, de doces tentações,
era servido às visitas em tais horários;
mas os meus quinze anos solitários
festejaram tão somente nos salões
que fizeram da igreja nos porões.
para meu gosto em gastos perdulários,
pois preferia ter de volta a casa,
com o meu quarto dando para a rua
e uma sacada em que a criada namorava;
no corredor, com sua escada rasa,
não permitiam que ficasse à luz da lua,
que assim a pobre nunca engravidava...

ANIVERSÁRIO VAZIO V

Mas acredito até que o preferisse:
tivera poliomielite a infeliz,
“paralisia infantil”, qual então se diz:
que a perna curta, desse modo, ninguém visse
e protegida pela sacada conseguisse
parecer um tanto bela a pobre miss,
que enfim, sonhava e quem sabe mesmo quis
desfilar para o povo que a aplaudisse;
dos quadris para cima, era perfeita
e de fisionomia até bonita,
no confundir-se de beleza e mocidade
e eventualmente a “amigar-se” se sujeita,
com quem sua perna curta não irrita,
em certa noite buscando a liberdade...

ANIVERSÁRIO VAZIO VI

De fato, foi o final aniversário;
fomos morar depois muito distante;
até o trem que nos passava diante
só ia parar noutro marco miliário;
havia um ônibus para algum gregário,
mas automóveis ainda raros nesse instante,
porém carroças e “aranhas” em constante
trafegar sobre o empoeirado do viário.
Como tudo mudou!  Surgiram televisão,
os eletrodomésticos na cozinha,
a água do banho ainda aquecida com carvão;
chuveiro elétrico ainda ninguém tinha;
que novidade foi a panela de pressão
diante dos tanques de gelo do porão!...

TSUNDOKU I – 30 AGO 14
(Termo japonês para compra de livros em excesso)

No soneto da noite a longa espera:
chovem palavras pelas frestas do telhado;
pelo meu próprio estro apedrejado,
pequenas tésseras sobre o verso que se altera.

Vou emparelhando as goteiras que assim gera
esse enlameado manancial de rebuscado;
ideário alheio que dos céus é derribado,
igual que o pólen com que a abelha faz a cera.

Fervo os alvéolos para a minha colmeia,
não mais que o arcabouço de meus favos;
deixo os espaços para o mel de uma epopeia,

porém neles percebo mais os cravos
dessa cruz que tu mesma irás erguer
com teus anseios a cada alvéolo preencher.

TSUNDOKU II

Por isso a longa espera do soneto,
em que os temas se intercalam como em tela
ou como grade em que o orvalho gela
e se transforma em pingentes de amuleto;

as frases pingam em endurecido afeto,
o líquido de ouro aos dedos mela;
o gelo do destino na entretela
que torna o caimento mais completo.

Talvez espere o soneto ser impresso,
porém o faço voar pela alvorada:
vai aos satélites a sua brotação;

de ti espero que o envolvas nesse gesso
que dos ossos se esvai na madrugada
e que o enquistes em teu coração...

TSUNDOKU III

De que me serve a imensa biblioteca
a ser formada por vinte mil sonetos,
entre as capas os sonhos mais secretos
no matrimônio de um amor que peca;

duzentos tomos de versos que se especa
nas prateleiras tais quais fossem espetos,
triste churrasco de sonhos prediletos,
azedo vinho respingado de caneca...

Seria hercúlea tal tarefa seca...
De Áugias limpou o herói cavalariças
do esterco acumulado há gerações...

Acadêmica, talvez, ainda sem beca,
busque reunir as mil canções mortiças
desse açougue em que pingam corações...

TSUNDOKU IV

Nem sei se eu mesmo jamais o farei,
do mesmo modo que nunca imprimirei
as longas horas que nas noites passarei,
sem que algum sono chegue a conciliar,

pois biblioteca poderia aparelhar
só com essas horas de vazio pensar,
só entrecortadas por rápido piscar,
nesses instantes em que adormecerei.

Ninguém imprime as dores e os suspiros,
nem o constante palpitar do coração;
são meus sonetos igualmente numerosos

e tão inúteis quanto imprimir os giros
dos ombros e quadris sobre o colchão,
na busca vã dos sonhos desdenhosos...

TSUNDOKU V

Não pensaria em imprimir um relatório
das refeições que faço diariamente;
ou bibliotecas do banho tão frequente;
ou descrever meu respirar em palavrório;

É certo que algum dia um consultório,
como um índice indiscreto para a mente
queira fazer dos discos e da gente
que os compôs e interpretou; ou um diretório

desses milhares de livros que comprei
dos quais muitos não li; ou até dos selos,
só terça parte dos quais classificados;

minhas coleções assim reduzirei
a pastas complicadas, ao invés de tê-los,
naturalmente, apenas contemplados....

TSUNDOKU VI

Mas por que aduzir a tal volume
vinte mil e mais sonetos já lançados
nas linhas eletrônicas, em alados
conjuntos digitais, qual vasto cume?

Dos servidores ao satélite que rume,
em torno a meu planeta controlados;
bem facilmente poderão ser acessados
e nesse brilho das telas vir a lume...

De fazer livros não há fim – foi Salomão
que disso lamentou há tantos anos...
Assim espero, que cedendo à compulsão,

só faça versos para a atual computação
em nuvem... que hoje a Terra dos humanos
invisível engolfa, mas em real prisão...

MAGMA I (2004)

Revesti-me de amores, lentamente,
Em melopeia rubra de guirlandas,
Grinaldas puras de emoções mais brandas,
Quando o desejo explode mais frequente...

Sendo assim meus amores mais quimeras,
Aprendi a conter-me em meus orgasmos,
Para servir mansamente seus espasmos
Num marulhar de lavas em crateras...

Que se acumulam rubras, trovejantes,
Respiram cinzas, gases sulfurantes
Em piroplástica e férvida explosão...

Sopitando os anseios, sufocados,
Até não mais contê-los, extasiados,
Para explodirem em cálida emoção!...

MAGMA II (31 AGO 14)

Revesti-me de luzes, bruscamente,
Em cantilena branca de aquarela,
Na crista dessas ondas de procela,
Em surfar desenfreado e consistente,

Sendo assim as minhas luzes uma tela
Que mais deixava passar a luz pungente
Que produzir sua luz interiormente:
Sobre um raio de sol lancei minha sela...

E nele pus meu freio e seus arreios,
Feitos da luz que escorre de meus dedos,
Buscando esse corisco cavalgar...

Serviram-me de espora mil anseios,
Deixei no vento, para trás, os meus segredos,
Tornando o raio de sol no meu cantar...

MAGMA III

Revesti-me de trevas, igualmente,
Rezando o terço dos mil desenganos,
Na corrida tresloucada pelos anos,
Alocando minhas penas, indolente,

Transferindo meus erros, bem contente,
Para o porvir, em atos bem humanos;
Cedo ou tarde, pagarei pelos insanos
Desatinos cometidos no presente.

E nessas trevas corri, sem ter archote,
Meus pés tocando apenas as mil fendas,
Cada buraco tendo ar na cobertura.

Sobre as fissuras maiores dei o bote
E percorri no escuro essas mil sendas,
Que conduzem à mais pérfida angostura.

MAGMA IV

Revesti-me de ódios, certamente,
E constituí com eles armadura;
Minha espada foi malícia toda pura
E meu escudo a mentira bem frequente.

Adotei um outro eu, bem diferente,
Sob essa capa envolta a queimadura
Da inveja alheia e da dor que me tortura;
Não me tocaram a pele em permanente

Ferida e erupção, porém minha boca,
Meus olhos e meu rosto, meu nariz
Não estavam protegidos por um elmo;

Usei apenas da insolência a touca
E me atrevi a contar o que não fiz,
Enovelado pelo Fogo de Santelmo!...

MAGMA V

Revesti-me de sonhos, doidamente,
Na busca longa da afeição perene
Da mariposa branca que me acene
De uma parede caiada, ocultamente...

Meus pesadelos usei, afoitamente,
Tomei o seu controle em firme leme;
Cada monstro chicoteei e hoje me teme;
Todos domei para mim, violentamente.

E desse mundo ideal que construí
Os trouxe para o mundo material,
Em que rasgam os poemas que versejo;

Porém recolho os fragmentos que assim vi
E os vou colando na poeira imaterial
Dessa lembrança morta do teu beijo.

MAGMA VI

Enfim de lava revesti-me, indiferente
A seu queimor nos braços e cabelos;
Sobre as cinzas soergui os meus desvelos,
No travesseiro da erupção frequente.

Foi o magma assim o meu presente
Roubado do passado, mesmos selos
De lacre, que quebrei só para tê-los
Em minha coleção equijacente...

E nessas lavas o coração queimei,
Queimei o meu ardor, queimei o sexo,
Porque te foste para não voltar...

E quando novamente te encontrei,
Fui descobrir de novo o teu amplexo,
Mas já sem coração para te amar.

MULTÍPARO I – 20 JUL 2006

Mesmo que eu sinta o meu amor desfeito,
Meu coração ferido e contrafeito,
Meu ventre amarfanhado de emoção,
Inda prefiro a vaga exaltação

Que reluz em poemas, de mansinho.
Por mais que seja o sonho pequeninho,
Por mais gagueje a musa e me abandone,
Por mais que a frustração de mim se adone,

Por que a alegria não vá causar conflito
Ao pleno gozo de meu ideal aflito,
Eu vou tranquilizar meu coração,

Só por saber que o gozo vespertino
Irá afastar de mim o peregrino
Dom melancólico de um verso de paixão...
 
MULTÍPARO II (1º SET 14)

Se me desprezo a mim, como eu espero
Que os demais me contemplem com respeito?
Se encaro o meu reflexo em despeito,
Quem buscará de mim o reverbero?

Pois nem é que persiga ideal austero;
Tenho meus vícios: encontro-me sujeito
À diária busca dos motes sem defeito
E pela gula de versos sou sincero...

Não é que busque doces ou viandas,
Porém nunca com pouco me contento;
Sou faminto da vida e amealho

Dos outros as ideias mais nefandas;
Só no trabalho é que meu corpo esquento
E brota a vida aos golpes desse malho.

MULTÍPARO III

Bem sei que morro e, às vezes, até quero;
É bem possível que feliz abraçaria
A Ceifadora que bem sei que me vigia,
Caso indolor fosse o trânsito que espero.

Difícil é a vida em que a mim mesmo gero
No mesmo ramerrão, dia após dia;
Nem lentas mortes assim desejaria,
Mas implodir-me em pleno reverbero.

Quero ser meu próprio Doppler, ressonância
Que me transformaria em eco e onda,
Não mais do que um zunido em que me esgoto,

Só conservado numa nuvem de impedância,
No quântico ondular, em vasta ronda
Na qual ao magnetismo me devoto!...

MULTÍPARO IV

Mas vem a inspiração, meiga e espontânea,
Do âmago do ser, fertilizada
Pela fusão dos neurônios, destinada
A tudo destinar...  Sou sucedâneo

De urbanas lendas do soez contemporâneo,
Sou ersatz de minhalma, aposentada,
Por meretrizes puras marchetada
Pela desfaçatez do miscelâneo...

Sou feito de emoções, almíscar luz
Na madrepérola do mais sutil degelo,
Lápis-lazúli de faraônico desvelo...

E ela brota, sorrateira como a cruz
Sobre as batinas dos padres simoníacos,
Bem mais profeta que todos os zodíacos!

EX-VOTO I (2004)

Ao ver me procuravas, desconfiado
fiquei, sem saber quê me querias:
seria apenas por vãs aleivosias,
ou por me desejares do teu lado?

Ao ver que me encontravas, satisfeito
fiquei apenas, num toque de vaidade:
que desejasses mais do que amizade
perpassou-me da mente, num trejeito...

Deixando agora tantas esquivanças,
tantas tolices, novas alianças
vêm de juntar o teu destino ao meu,

esperando, sem tardo, que a alegria
desta amizade sincera que eu sentia,
bem fundo ao coração, brilhe no teu!...

EX-VOTO II (02 SET 14)

Por que essa ânsia de acompanhamento
que existe ao fundo do coração humano?
Cada beijo que se busque, até profano,
mais fortalece o querer do complemento,

num adejar do ideal greco-romano,
bem mais que a perfeição do movimento
dessas estátuas imóveis num momento,
mas que parecem vigiar-nos sem engano...

O que se busca é o brilho desse olhar
que nos percorre a alma inteiramente,
as mãos de prata em meigo deslizar,

o som da flauta no murmurar frequente
desses lábios entreabertos no beijar,
porém jamais possuídos totalmente...

EX-VOTO III

O que se busca é o compartir da solidão,
que nunca é satisfeita totalmente;
mas se a tua me dás completamente,
a minha inteira te darei, com devoção;

duas solidões revolvendo em turbilhão,
a minha solta nos teus braços, em pungente
usufruir do teu vazio fremente,
como um filho em fantasiosa gestação;

como um golem brotado de uma lenda,
que nos engolfa, igual manto de anis,
oferecendo sua inconsútil proteção,

do mundo externo calafetando cada fenda
que ameace a solitude tão feliz
do sacramento enovelado da ilusão...

corações de corda I 03 SET 14

costumam ser de fibra os corações
um tecido muscular bem rejuntado
por hemácias cada recôndito regado
leucócitos a passear em procissões
costumam ser de carne essas mansões
plaquetas correm em decathlon coagulado
por sístole e diástole controlado
sem assentar ali suas povoações
são gigantescos palácios de encarnado
como os lenços que têm revolucionários
ou as bandeiras de tantas gerações
corações brancos nem sequer no descampado
dos corações em ataúdes mortuários
por mais que fossem suas desilusões

corações de corda II

contudo brota a lenda do passado
de ser a sede ali das emoções
pelas pancadas das atribulações
ou a dor fina de quem for rejeitado
sabe-se hoje bem diverso o resultado
o coração é impulsionado em injeções
de hormônios que lhe vêm das contrações
de um outro órgão pela mente comandado
somente doem ali as sensações
do medo que nos traz a adrenalina
do cansaço que nos traz serotonina
do impulso para a luta as impressões
enquanto amor nos confere a endorfina
na senda mística das rudes ilusões

corações de corda III

mas emoções nos vêm de fora geralmente
pela visão viperina na vereda
para o súbito recuar que não lhe ceda
o calcanhar para seu morder pungente
ou a impressão da borrasca mais premente
na inquietação da situação mais queda
a brisa morna que madeixas nos enreda
ou o frescor da chuva complacente
tudo isso ao coração acorda e ativa
e então nos puxa para fora de nós mesmos
como linhas e anzóis de pescador
e o coração recebe e não se esquiva
dessas lianas que nos vêm a esmos
enquanto somos a caça e o caçador

corações de corda IV

mas de fato os corações tramam as cordas
das mil e uma humanas relações
das alegrias e jubilantes exultações
desses prazeres mútuos que concordas
ou dos medos e temores com que acordas
por choque súbito de rápidas pressões
cordas de amor ou cordas de traições
cordas que chegam aguçadas contra as bordas
de teu espírito e com elas vais trançando
fibra por fibra teu próprio coração
para formar uma rede de rancores
teu vermelho coração ainda lanhando
ou no abraçar ansioso da ilusão
nessa tua ânsia febril por mais amores

ENTRAVES I – 2004

Passei o dia envolvido com manual
para um rádio de bordo, triste sina;
bem mais queria os braços da menina
do que esta tradução que masturbei.

Foram meus dedos que celebraram o ritual:
folha após folha o tédio me domina;
pouco me importa a instrução que nos ensina
que usei as mãos e a glória não cantei.

Somente agora, desgastada a madrugada,
quando o almaço digital verifiquei,
é que me resta um momento de poesia

e as horas dançam no surgir da fada;
perco o cansaço e não descansarei
no derradeiro turbilhão de minha agonia.

ENTRAVES II – 04 set 2014

Nas traduções eu busco o desafio
de qualquer coisa aprender que inda não sei,
algo que guarde do tempo que gastei
nessa represa de qualquer alheio rio;

quando é um romance, novo livro eu crio,
por mais fiel que seja ao que encontrei;
os meus torneios de frase registrei,
algo de mim deixei nesse vazio...

Porém na técnica não há margem realmente:
é só aquilo que já consta do manual
e não descubro interstício para mim;

então deponho minhas horas, descontente,
sem o estranho prazer desse ritual
em que com outrem me relaciono assim.

ENTRAVES III

Na verdade, quando mais trabalho chega,
em parte me entusiasma a recompensa,
mesmo que envolva a mente numa tensa
certidão de óbito, que tão só alega

o final de uma vida e sua presença;
só o luto de raspão é que me pega,
alguma pena alheia que me rega,
quiçá a espera de uma herança densa...

E nelas vejo a humana vacuidade:
nesse entrave para o fluir de meu vazio,
cortam de mim o fluxo em que crio...

Mas certidões são documentos de saudade:
talvez mais a sinta pelo desconhecido
do que quem sobreviveu ao falecido...

ENTRAVES IV

Pois na verdade, não consigo me alienar.
Eu sinto em mim a humana brotação.
De alheias vistas tenho a percepção
e nelas vejo o que costumam contemplar.

Mesmo um manual me desperta o meditar;
talvez encontre em testamento inspiração
ou em currículos escolares a gestação
de novos versos de cunho infamiliar...

Cada cristal a me trazer coloração
em que os contornos se perdem em nuances
que nunca vira com meus olhos nus;

e assim as redijo, tal como em floração
sabores e conotações que não alcances,
quais fragmentos de balas de alcaçuz!...




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