TIGRES SIBERIANOS
William Lagos, 30/12/2010
TIGRES SIBERIANOS I
Das entranhas melífluas de minha alma,
em vermífugo fulgor de decisão,
os mil poemas escorrem pela mão,
alimentados por cor que não embalma.
Eles deslizam, com estranha calma,
em permanente avalanche de ilusão,
canil fantasma de meu coração,
são mil pingentes a escorrer de cada palma.
Eles se espalham, os versos expulsados,
como se expulsam vermes do organismo,
serve a Internet como seu reduto.
E nos teus olhos são multiplicados,
cada pequeno sonho um novo abismo,
cujos gemidos nem sequer escuto.
TIGRES SIBERIANOS II
Apenas penso, em noturna leviandade,
que como tigres, me devoram pensamentos
que qualifico, à luz dos sentimentos,
tais quais se puros fossem, na verdade.
Pois ideias são alheias, em realidade,
que a mente invadem, predadores em portentos,
mil engenhos de outrem, mil momentos
a se imiscuírem em minha intimidade,
aos quais concedo entrada e dou saída,
depois de acrisolados com firmeza:
eu os partilho e depois os recomponho,
já renovados para a nova vida,
na qual procuro gerar nova beleza
entre as ruínas de um mundo tão medonho!
TIGRES SIBERIANOS III
Comigo vive a alma enquanto eu vivo,
ela me ensina, mas eu ensino a ela;
para o universo maior é uma janela,
pelo espírito animada, em tom altivo.
Dentro de mim existe algo mais ativo,
iluminando a alma como estrela,
bom conselheiro no momento da procela,
de meus pendores o mais sincero crivo.
Meu coração, não obstante, é irrequieto,
sempre sujeito a nova excitação
e a voz do espírito recusa-se a escutar,
buscando sempre o que lhe é mais dileto,
nos fogos-fátuos de sua exaltação,
manchando a alma, por só querer brincar.
TIGRES SIBERIANOS IV
Não sei até que ponto corro um risco,
quando permito acesso inteiro à mente
a essas vozes mudas, em frequente
inspiração de majestade ou cisco.
É como se uma agulha sobre o disco
se limitasse a traduzir, subserviente,
o que consta dos sulcos, impotente
para trocar o mais singelo pisco...
Porém agulhas muita vez se gastam
de percorrer os sulcos mais antigos,
já desgastados por muita execução
e talvez essas vozes mesmo afastam
a minha mente nos meandros mais ambíguos
daquilo que mais quer meu coração!
TIGRES SIBERIANOS V
Do mesmo modo que uma agulha gasta,
por tanta alheia melodia executar,
dos discos antes usados a fartar,
cujo chiado com esforço afasta,
quem sabe a própria alma se desbasta,
com tanta poeira a se contaminar,
já que por outra não a poderei trocar,
permanece sujeita e assim desgasta?
Ou quem sabe, essas mensagens que me vêm,
quer se mostrem infelizes, quer ditosas,
não possam em mim mesmo interferir...
Bem ao contrário, que eu converta o Além
a minhas próprias índoles formosas
e assim faça almas alheias reluzir...?
TIGRES SIBERIANOS VI
Como saber se existe outra influência
que a de meu próprio espírito sobre mim?
Quiçá a modéstia é que me leve, enfim
a imaginar tais Vozes Mudas com frequência...
É que a mim me parece impertinência
afirmar que quanto escrevo brote assim
só de dentro de mim mesmo, em tal carmim
discussão de ideologias e ciência!...
Já antes referi-me à Corte Impura
de meus próprios defeitos e intenções,
que coagi em permanência acorrentada...
Em suas jaulas de vidro e de impostura,
em que cada cortesão compõe canções
repetidas por minha voz meio assombrada!
TIGRES SIBERIANOS VII
Também se fala no Inconsciente Coletivo,
em que habitam os arquétipos constantes
e se menciona a Noosfera, imagens inquietantes
em que alguns creem, qualquer seja o motivo.
A humanidade, em seu lembrar nocivo
de antigas crenças ainda contagiantes,
ainda afirma que os deuses elefantes (*)
passam por nós, em bambolear altivo...
(*) O Sr. Ganesh, por exemplo, entre os hindus. Você recorda
do Homem
Elefante, que Howard fez seu Conan encontrar?
Sei nesses páramos se encontraria Platão,
perfeitamente à vontade e a conversar
com os seus Universais...
Quem sabe até
com Wittgenstein se acharia a prosear...
Ou até comigo, que me inclino a praticar
meu idealismo um tanto herético ante a fé...
TIGRES SIBERIANOS VIII
Por isso eu chamo de Tigres Siberianos
as minhas correntes de muda inspiração;
não me parecem brotar do coração,
nem tampouco da mente os mil enganos
que dançam no meu peito, os milicianos
dos estandartes da múltipla ilusão,
que me chegam famintos de emoção
e se arrojam no papel há tantos anos...
São tigres os ideais que me devoram,
ao mesmo tempo tão raros em brancura!
É de leucócitos, quiçá, que se mascaram;
e ao mesmo tempo, se não me apavoram,
apenas surgem versos parcos de ternura,
caso me esforce... quando as vozes param!...
TIGRES SIBERIANOS IX
Porque é preciso confessar: eu sei
versos compor a troco de encomenda;
baixo a cabeça e enfrento essa prebenda:
versos de Apolo sem cessar farei.
Mas não os vejo tais quais os desejei:
assim me entrego à receita de uma renda,
após cruzar tanta vez a mesma senda,
de tal modo que a mim mesmo plagiarei!
Ou o resultado é tão só intelectual,
que me leva a jungir estranhas rimas
e não discorre de maneira natural
e desconfio, então, mais uma vez,
quando combato com arcanas mimas,
que não sou eu que escrevi o quanto lês!...
TIGRES SIBERIANOS X
Veja esta série, por exemplo, amigo,
que, na verdade, redigi rapidamente,
porém o esforço do verso é aparente:
quando pretendo fazer, não o consigo.
É quando o verso irrompe e a linha sigo,
sem nem pensar, riscando velozmente,
que outro soneto fica pronto de repente
e me surpreende o quanto nele digo...
São esses os melhores que me saem;
mas esta série é dura e até perjura,
é diferente pelo esforço ingente
com que esculpi as frases que se esvaem,
bem rimadas em sua regra mais segura,
mas sem brilharem igual que antigamente!
TIGRES SIBERIANOS XI
Contudo, sou teimoso e ainda insisto
em prosseguir nesta vã mediocridade,
bem diferente da luz e intensidade
que em tantos outros versos tenho visto;
e sendo obstinado, não desisto:
a cor arranco dessa opacidade,
amor descubro na desumanidade,
sonho e rubor projetam gosto misto.
Segue a cadência de há muito dominada,
cada cesura inserida em seu lugar,
a métrica e a rima são perfeitas,
mas não insiro aquele rasgo de magia
que a mesma nostalgia te daria
de tantas séries anteriormente feitas...
TIGRES SIBERIANOS XII
E assumo a culpa!... Porque aqui pretendo
ensinar alguma coisa ou explicar
a respeito de mim mesmo e demonstrar
de onde surgem os versos que não vendo;
e este é um grave erro em que me estendo:
poesia é aquilo que te consegue relembrar
antigos passos de teu próprio caminhar,
que reconheces naquilo que estás lendo.
De nada serve então poesia didática,
que é apenas arbitrária e artificiosa,
como um discurso lançado à multidão;
e assim concluo, com expressão enfática:
que só consigo a bruxaria poderosa
deixando os Tigres devorar-me o coração!
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