segunda-feira, 15 de junho de 2015





ÁGUA DE SOL – 13 SET 2010
Duodecaneto de William Lagos.

 ÁGUA DE SOL I

Vi na calçada o sol como um lençol:
curvei as costas e minhas mãos molhei!
Com avareza o largo pano eu enrolei,
guardei nos braços tal lençol de sol!...

Ficou cinza a calçada sem a escol,
dourada luz que rápido furtei...
Um pouco dessa luz eu derramei
e revesti-me inteiro de arrebol!...

Assim, fiz para mim tapeçaria,
que desenrolo tão só quando me agrada:
eu tenho um sol igual que meu capacho.

E quando, às noites, a luz me faltaria,
meu quarto eu abrilhanto em luz de fada
e o penduro das paredes como um cacho.

ÁGUA DE SOL II

Mas não pensem que foi fácil esse roubo:
precisei esperar que meus vizinhos
ressonassem sesteando e que sozinhos
estivéssemos o Sol e o meu arroubo.

Se alguém chegava, eu me fazia de bobo:
a mão eu estendia, qual se espinhos
estivesse a tirar; ou então, que os vinhos
à cabeça me subissem; ou qual um lobo,

fazia uma expressão que os espantasse:
minha barba se eriçava, nessa classe
e aos transeuntes afastava bem depressa.

Passei a unha no chão, com rapidez
e uma fímbria veloz então se fez,
fazendo o sol enrolar-se numa peça!...

ÁGUA DE SOL III

Num cilindro bem depressa o enfiei.
por trinta metros ou mais de luz banhado,
antes que outro passante inesperado
chegasse, em alguns metros me abaixei.

A língua de meus lábios projetei,
qual bífida serpente e, num cortado,
libertei a outra ponta do enrolado
farnel de sol que para mim roubei...

Segui para minha casa, bem depressa:
por uns instantes senti calor demais,
que o sol de minha calçada se insinuava,

querendo recobrir-me, qual compressa,
que não quisesse deixar partir jamais
esse tecido que da rua eu retirava!...

ÁGUA DE SOL IV

Onde cortei o sol, deixei um vazio.
O mais incrível é que muitos dos passantes
em seus problemas envoltos, inconstantes,
nem sequer perceberam o estranho frio,

cruzando golpe de vento, um calafrio,
passaram bem depressa, triunfantes,
seus passos a cobrir os passos de antes,
nessa dança contumaz, sem grande brio.

Só alguns notaram que a cor havia mudado
e pensaram ser um novo calçamento,
talvez trocadas tijoletas por lajotas...

Mas não tiveram o coração descompassado,
nem dedicaram um segundo pensamento
ao estranho piso percorrido por suas botas...

ÁGUA DE SOL V

De minha janela, olhei para a calçada
que se estendia cinzenta do outro lado,
estranhando que ninguém havia notado
que a luz do sol de ali fora roubada,

porque, afinal, era coisa já esperada
que todo o chão de sol fosse molhado,
apenas por suas sombras afastado,
pelo calor sua cabeça coroada...

Mas passavam assim, indiferentes,
os pares conversando, concentrados,
os grupos uns dos outros a troçarem

e calcavam, calmamente, os sóis ausentes,
o sólido cimento a pisotearem,
sem perceberem seus lábios mutilados.

ÁGUA DE SOL VI

Do outro lado da rua, uma vizinha
acordou-se da sesta e, estremunhada,
foi à janela, também sem notar nada,
pensando ser uma nuvem pequeninha

que a luz do sol cobrira bem mansinha,
sem alvoroço, sem batalha alada,
pois nuvens são escudo e amurada
e protegem do calor, quando se apinha...

Chegou mesmo a erguer olhos ao céu,
mas ao visar o Sol, diretamente,
semicega, pensara finalmente

que um nevoeiro o cobrira como um véu
e que esse azul celeste rebrilhante
se apagara não mais que por instante...

ÁGUA DE SOL VII

Naturalmente, lá no alto, o astro-rei
brilhava ilesa e soberanamente,
sem perceber sequer que humana gente
desse falta desse brilho que roubei.

Meu coração, por momentos, agitei,
enquanto meu tapete incandescente
entre meus braços, tentava, já impotente,
retornar para o lugar de onde o cortei.

Mas o retive firme e se acalmaram
tanto a fazenda do sol e coração,
guardando a luz bem firme nos meus braços.

Só meus olhos, por instantes, marejaram,
lembrando essa profunda solidão
que me deixara a saudade de teus traços...

ÁGUA DE SOL VIII

Após um tempo, essa pródiga lareira
que seu ouro derrete às toneladas
e o espalha em vastidões descompassadas,
brilhou constante sobre a mesma esteira

e nessa trilha cinza, alvissareira,
luz renovada se fez, em mil camadas,
deixando a rua igual a outras calçadas,
apagando meus sinais de roubalheira...

Então pensei como fora transitório
até o mal que eu causara, impercebido:
tudo já fora corrigido assim;

levei meu sol encolhido ao escritório;
atrás dos livros o deixei, bem escondido,
no meu direito de o guardar só para mim...

ÁGUA DE SOL IX

Pensando bem, a ninguém prejudiquei,
ao guardar corte de sol no meu sacrário;
provavelmente, sempre fora o meu fadário
que então pudesse recolhê-lo assim.

Fiquei pensando se há mais gente, enfim,
que também tenha guardado fragmentos
desse sol envolvido em linimentos,
igual que em minha mochila o enrolei.

Quem o achar, talvez recorte para toucas
ou o ponham a ferver em suas chaleiras,
sem gastar gás ou até eletricidade.

Essas pessoas, porém, devem ser poucas,
pois por mais que eu as saiba interesseiras,
para roubar-me vão precisar de habilidade...

ÁGUA DE SOL X

Não é homem qualquer que tenha a ideia
de recolher o sol das pradarias
ou dos areais, das praias, das bacias,
guardando o sol das antigas epopeias...

Se bem que hoje existam tais aleias
em que painéis solares cobrem vias,
captando as despendidas energias,
para tornar em belas coisas feias...

Mas não conservo espelhos em meu teto,
tenho medo das pedras que me joguem,
faltam-me os meios para a instalação.

E assim, roubei do Sol pano completo
e o mantenho comprimido, não me afoguem
as águas de ouro de sua irradiação...

ÁGUA DE SOL XI

Tendo meu sol, eu me aqueço em solidão;
água de sol eu bebo em meu inverno,
enche-me o estômago e corre-me no interno,
faz percutir-me alegre o coração;

recorto sol com o bafo do pulmão
e assim transformo em céu qualquer inferno;
faço poemas neste mundo hodierno:
são retalhos de sol a inspiração.

Nunca fiz mal em despojar essa calçada,
já que o Sol perdulário a indenizou,
ninguém sentindo o resfriar dos passos...

Quem sabe possa recobrar minha amada,
mandando versos da luz que me roubou,
na singeleza que transpõe tantos espaços...

ÁGUA DE SOL XII

Mas quando faltar luz, terei reserva;
se me faltar amor, calor e afeto;
se ninguém me quiser, serei dileto,
posso aquecer a água de minha erva,

para o mate sugar, depois que o ferva,
verde torneira embaixo de meu teto;
contudo, nas mateadas não me meto,
não sei bem como lidar com tal caterva...

Que no fundo, sou mais um solitário
e tenho tanto o que fazer sozinho
que nem falta me faz a companhia;

em tais atividades plurifário,
guardando um sol oculto no escaninho,
para que possa me servir de estrela-guia!...

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com


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