ÁGUA DE SOL – 13 SET
2010
Duodecaneto de William
Lagos.
ÁGUA DE SOL I
Vi na calçada o sol como
um lençol:
curvei as costas e minhas
mãos molhei!
Com avareza o largo pano
eu enrolei,
guardei nos
braços tal lençol de sol!...
Ficou cinza a calçada sem
a escol,
dourada luz que rápido
furtei...
Um pouco dessa luz eu
derramei
e revesti-me inteiro de
arrebol!...
Assim, fiz para mim
tapeçaria,
que desenrolo tão só
quando me agrada:
eu tenho um sol
igual que meu capacho.
E quando, às noites, a
luz me faltaria,
meu quarto eu abrilhanto
em luz de fada
e o penduro das paredes
como um cacho.
ÁGUA DE SOL II
Mas não pensem que foi
fácil esse roubo:
precisei esperar que meus
vizinhos
ressonassem sesteando e
que sozinhos
estivéssemos o Sol e o
meu arroubo.
Se alguém chegava, eu me
fazia de bobo:
a mão eu estendia, qual
se espinhos
estivesse a tirar; ou
então, que os vinhos
à cabeça me subissem;
ou qual um lobo,
fazia uma expressão que
os espantasse:
minha barba se eriçava,
nessa classe
e aos transeuntes
afastava bem depressa.
Passei a unha no chão,
com rapidez
e uma fímbria veloz então
se fez,
fazendo o sol enrolar-se
numa peça!...
ÁGUA DE SOL III
Num cilindro bem depressa
o enfiei.
por trinta metros ou mais
de luz banhado,
antes que outro passante inesperado
chegasse, em alguns
metros me abaixei.
A língua de meus lábios
projetei,
qual bífida serpente e,
num cortado,
libertei a outra ponta do
enrolado
farnel de sol que para
mim roubei...
Segui para minha casa,
bem depressa:
por uns instantes senti
calor demais,
que o sol de minha
calçada se insinuava,
querendo recobrir-me,
qual compressa,
que não quisesse deixar
partir jamais
esse tecido que da rua eu
retirava!...
ÁGUA DE SOL IV
Onde cortei o sol, deixei
um vazio.
O mais incrível é que
muitos dos passantes
em seus problemas
envoltos, inconstantes,
nem sequer perceberam o
estranho frio,
cruzando golpe de vento,
um calafrio,
passaram bem depressa,
triunfantes,
seus passos a cobrir os
passos de antes,
nessa dança contumaz, sem
grande brio.
Só alguns notaram que a
cor havia mudado
e pensaram ser um novo
calçamento,
talvez trocadas tijoletas
por lajotas...
Mas não tiveram o coração
descompassado,
nem dedicaram um segundo
pensamento
ao estranho piso
percorrido por suas botas...
ÁGUA DE SOL V
De minha janela, olhei
para a calçada
que se estendia cinzenta
do outro lado,
estranhando que ninguém
havia notado
que a luz do sol de ali
fora roubada,
porque, afinal, era coisa
já esperada
que todo o chão de sol
fosse molhado,
apenas por suas sombras afastado,
pelo calor sua cabeça
coroada...
Mas passavam assim,
indiferentes,
os pares conversando,
concentrados,
os grupos uns dos outros
a troçarem
e calcavam, calmamente,
os sóis ausentes,
o sólido cimento a
pisotearem,
sem perceberem seus
lábios mutilados.
ÁGUA DE SOL VI
Do outro lado da rua, uma
vizinha
acordou-se da sesta e,
estremunhada,
foi à janela, também sem
notar nada,
pensando ser uma nuvem
pequeninha
que a luz do sol cobrira
bem mansinha,
sem alvoroço, sem batalha
alada,
pois nuvens são escudo e
amurada
e protegem do calor,
quando se apinha...
Chegou mesmo a erguer
olhos ao céu,
mas ao visar o Sol,
diretamente,
semicega, pensara
finalmente
que um nevoeiro o cobrira
como um véu
e que esse azul celeste
rebrilhante
se apagara não mais que por
instante...
ÁGUA DE SOL VII
Naturalmente, lá no alto,
o astro-rei
brilhava ilesa e
soberanamente,
sem perceber sequer que
humana gente
desse falta desse brilho
que roubei.
Meu coração, por
momentos, agitei,
enquanto meu tapete
incandescente
entre meus braços,
tentava, já impotente,
retornar para o lugar de
onde o cortei.
Mas o retive firme e se
acalmaram
tanto a fazenda do sol e
coração,
guardando a luz bem firme
nos meus braços.
Só meus olhos, por
instantes, marejaram,
lembrando essa profunda
solidão
que me deixara a saudade
de teus traços...
ÁGUA DE SOL VIII
Após um tempo, essa
pródiga lareira
que seu ouro derrete às
toneladas
e o espalha em vastidões
descompassadas,
brilhou constante sobre a
mesma esteira
e nessa trilha cinza,
alvissareira,
luz renovada se fez, em
mil camadas,
deixando a rua igual a
outras calçadas,
apagando meus sinais de
roubalheira...
Então pensei como fora
transitório
até o mal que eu causara,
impercebido:
tudo já fora corrigido
assim;
levei meu sol encolhido
ao escritório;
atrás dos livros o
deixei, bem escondido,
no meu direito de o
guardar só para mim...
ÁGUA DE SOL IX
Pensando bem, a ninguém
prejudiquei,
ao guardar corte de sol
no meu sacrário;
provavelmente, sempre
fora o meu fadário
que então pudesse
recolhê-lo assim.
Fiquei pensando se há
mais gente, enfim,
que também tenha guardado
fragmentos
desse sol envolvido em
linimentos,
igual que em minha
mochila o enrolei.
Quem o achar, talvez
recorte para toucas
ou o ponham a ferver em
suas chaleiras,
sem gastar gás ou até
eletricidade.
Essas pessoas, porém,
devem ser poucas,
pois por mais que eu as
saiba interesseiras,
para roubar-me vão
precisar de habilidade...
ÁGUA DE SOL X
Não é homem qualquer que
tenha a ideia
de recolher o sol das
pradarias
ou dos areais, das
praias, das bacias,
guardando o sol das
antigas epopeias...
Se bem que hoje existam
tais aleias
em que painéis solares
cobrem vias,
captando as despendidas
energias,
para tornar em belas
coisas feias...
Mas não conservo espelhos
em meu teto,
tenho medo das pedras que
me joguem,
faltam-me os meios para a
instalação.
E assim, roubei do Sol
pano completo
e o mantenho comprimido,
não me afoguem
as águas de ouro de sua
irradiação...
ÁGUA DE SOL XI
Tendo meu sol, eu me
aqueço em solidão;
água de sol eu bebo em
meu inverno,
enche-me o estômago e
corre-me no interno,
faz percutir-me alegre o
coração;
recorto sol com o bafo do
pulmão
e assim transformo em céu
qualquer inferno;
faço poemas neste mundo
hodierno:
são retalhos de sol a
inspiração.
Nunca fiz mal em despojar
essa calçada,
já que o Sol perdulário a
indenizou,
ninguém sentindo o
resfriar dos passos...
Quem sabe possa recobrar
minha amada,
mandando versos da luz
que me roubou,
na singeleza que transpõe
tantos espaços...
ÁGUA DE SOL XII
Mas quando faltar luz,
terei reserva;
se me faltar amor, calor
e afeto;
se ninguém me quiser,
serei dileto,
posso aquecer a água de
minha erva,
para o mate sugar, depois
que o ferva,
verde torneira embaixo de
meu teto;
contudo, nas mateadas não
me meto,
não sei bem como lidar
com tal caterva...
Que no fundo, sou mais um
solitário
e tenho tanto o que fazer
sozinho
que nem falta me faz a
companhia;
em tais atividades
plurifário,
guardando um sol oculto
no escaninho,
para que possa me servir
de estrela-guia!...
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