sábado, 2 de abril de 2016




                                             (LE BAIN AU SOIR D'ÉTÉ, Félix Vallotton)


 A PROFETISA – 14-23/3/16
(Novas séries de William Lagos)

A PROFETISA I – 14 MAR 16

Certa senhora fundou uma igrejinha
e ali se pôs a defender o feminismo,
logo a seguir, também o lesbianismo,
ao descobrir que maioria já tinha

em sua congregação dito modismo
e após a Wicca, secretamente, vinha,
num conventículo a presidir sozinha, (*)
já que algum bruxo mostraria machismo!
(*) Grupos de doze feiticeiras chefiadas por um bruxo.

Em seus sermões proclamava Madalena,
que entre os cristãos primitivos ela quer
ter sido a inspiradora e governante!

E finalmente, declarou, sem qualquer pena,
que Jesus Cristo, de fato, era mulher
e quem morreu na cruz foi seu amante!...

A PROFETISA II

Essa assertiva, por fim, escandalizou
a certos membros de sua congregação,
preconceituosos, a negar, sem ter razão,
a descoberta que tão alegre proclamou!

Disse a senhora ter sido inspiração
da Grande Mãe, que a mente lhe tocou;
e os Doze Apóstolos também denominou
por doze nomes de feminina alocução!...

E denunciada sendo à autoridade,
já se arrogou a Lei Maria da Penha,
a liberdade religiosa contrapondo!

As advogadas apoiando essa verdade,
em que a presente sociedade mais se atenha:
se fosse presa, isso seria um crime hediondo!

A PROFETISA III

Não mais seria que a feroz perseguição
de “elites brancas” afirmando o seu machismo,
pois perseguiam ao homossexualismo
e pretendiam “denegrir-lhe” a religião!

Publicidade angariando na ocasião,
foi liberada, é claro, e com cinismo,
aos policiais acusou de vandalismo,
ante as repórteres de tal televisão,

Pois lhe haviam apreendido o Evangelho
que redigia no seu computador!...
Logo um juiz seus documentos devolveu;

Comunidades se espalharam qual espelho
da Grande Igreja de Madame Salvador
e foi assim que a profetiza enriqueceu!...

cabala 1 – 15 mar 16

“a história dessa história é uma história
por si mesma” é um provérbio dos judeus,
os quais com a verve e humorismo que são seus,
três palavras utilizam em tal frase peremptória,

do francês e do alemão e a derivar da antiga glória
do velho hebraico, com retoques arameus...
não falo iídiche, mas tenho os livros meus,
com citações que então colhi da folclória!...

judeus respeito, até mesmo os sionistas,
tão malfadados na propaganda atual,
mesmo após tudo que esse povo padeceu,

pois afinal, do cristianismo as pistas
no judaísmo tem sua origem natural
e Jesus Cristo, quem duvida? – era judeu!

cabala 2

mas uma coisa é respeitar a religião
desse povo que foi tanto perseguido,
bem outra acreditar tenha escondido
o próprio Deus, ao orientar a redação

desse velho testamento, só por numeração
dessas letras quadrados o que é pretendido,
todo o futuro desde sempre ali escolhido
da humanidade, desde o início até a extinção,

qual nos afirma um grande sábio cabalista:
que o significado aparente é secundário,
porém que Jeová, nesse ato sectário,

de cada ato do porvir nos deu a pista!
sinceramente, não aceito tal fadário,
acho melhor esse senhor baixar a crista!

cabala 3

nikhmas yayim yatsa sod! – é um ditado
que nos chegou do mais antigo hebraico,
para o iídiche adaptado, bem mais laico, (*)
que nada tem, afinal, de inusitado...
(*) Idioma falado pelos judeus orientais, baseado no alemão.

“entra vinho, sai segredo” – é proclamado,
tal qual nosso epigrama, um tanto arcaico,
in vino veritas! – tão citado que é prosaico,
“no vinho está a verdade” – aqui afirmado.

porém nos diz, com proficiência, o ensaísta,
benjamin harshav, que existe um subtexto,
bem mais profundo que a afirmação primária;

ainda embora na expressão kabala não se insista,
mas em guemétria, de helênico contexto,
a nossa “geometria” – conotação bem vária!

Cabala 4

diz o ensaísta que somente “sod”
é utilizada sem contexto hebreu,
como “segredo” significar para um judeu
que algo de iídiche conhecer ainda pode.

outro ditado a esse autor então acode:
“o sábio guarda no pulmão, mas o sandeu
embriagado, em sua língua já o perdeu”,
quando borracho se encontra como um bode!

já que essas letras possuem valor numérico:
sessenta mais seis mais quatro a dar setenta,
um número por si só meio intrigante...

mas yayin, para nós “vinho”, mais etérico,
soma dez e mais dez e mais cinquenta,
em cuja soma outro setenta se alevante!...

cabala 5

diz ele mesmo ser só um quebra-cabeças,
muito comum nos jogos de crianças!
porém há adultos desnudos de esperanças,
por mau destino a sofrer mentes opressas,

no seu lamento das desgraças já pregressas,
que se entregam a iguais adivinhanças,
nas letras vendo alguns indícios de bonanças,
gregas ou hebraicas contendo tais promessas...

porém se a Deus se pretende interpretar,
por que não pelo novo testamento?
só porque foi o cristianismo um dialeto

de um messias que não puderam aceitar
e que na grega redação há impedimento,
língua pagã por que Deus não tem afeto?

cabala 6

na minha cabeça tenho sopa de letrinhas:
a concha enfio e retirar mais um soneto,
que distribuo, sem nada de secreto,
na poética eucaristia de minhas vinhas...

em cada coisa que vejo, encontro linhas
que me encaminham a um poema mais dileto
ou tendo tom humorístico e concreto;
mas nunca afirmo que as estrofes que são minhas,

por mais que tragam divina inspiração,
tenham condão de interpretar o teu futuro,
salvo em seus sete subtextos de mensagem...

muito admiro que ainda os leias com coragem,
pois distribuí-os com o ânimo mais puro,
mas as interpretas com teu próprio coração!

VENTRES SECOS I – 16 MAR 16

Recordo marcas de moscas na vidraça
do janelão que dava para a rua;
há um reverbero e o rosto então recua:
é um caminhão que ali ruidoso passa.

Recordo o cheiro que o caixilho me perpassa,
algo de poeira e chuva que flutua;
foi arrancado o janelão por grua,
a casa inteira desmanchada por desgraça.

Cada marca na janela a luz transpassa
em duplo círculo como olhos esquecidos;
um pouco antes, de volta do estrangeiro,

vim ver a casa encolhida e já sem graça,
igual que gatos, meus sonhos escondidos,
as velhas moscas espantadas por pedreiro...

VENTRES SECOS II

Essa casa em que passei a minha infância,
uma relíquia do século anterior,
aos mil eventos de minha vida posterior,
gerou talvez, em sua primeira instância.

Ali estudei, aplicado em minha constância,
ali brinquei com meus soldados de valor;
em frente dela, em longa tarde de calor,
me atropelaram, mas sem ter grande importância.

Em minhas paredes havia mapas e poemas,
onde se achava lugar entre as estantes,
moscas pousavam de antigas gerações.

Na sala ao lado, com mãos hábeis e serenas,
manipulava minha mãe teclas vibrantes
e na eletrola o som de antigas gravações.

VENTRES SECOS III

Férteis ventres tinha cada dependência
e as paredes da sala eram pintadas,
creio que a óleo, com imagens encantadas;
ali aprendi a leitura, em assistência

das lições que minha mãe, em sua paciência,
dava constante às jovens empregadas;
tinha três anos, a escutar letras cantadas,
que se encaixaram para mim com pertinência.

Essas meninas, já meio adolescentes,
nunca chegavam a aprender como deviam,
mas a meus olhos as páginas se abriam,

meus pais deixando orgulhosos e contentes...
Mas só mais tarde meus dedos escreviam
letras de forma em garranchos complacentes...

VENTRES SECOS IV

Porém custaram a aceitar-me a miopia:
só aos sete anos consegui ver as estrelas...
contudo as moscas... bem conseguia vê-las,
na transparência da vidraça que luzia...

Repreendido eu era então, quando caía.
Que falta de atenção!  E aquelas telas
das paredes, por mais que fossem belas,
não consigo recordar, pois mal as via...

Recordo um cisne, em plácido nadar,
no falso lago do lateral painel,
mas as demais ficavam sobre as portas...

Talvez do alto me pudessem contemplar
dez cavaleiros, cada qual no seu corcel:
talvez descessem dali nas noites mortas...

VENTRES SECOS V

Eu compensava a má visão com um espelho
e olhando para ele eu caminhava:
do teto os ventres secos contemplava;
com algum receio a seguir-me a tia velha,

minha segunda mãe, que me aconselha
a não fazê-lo, mas eu sempre teimava
e quando a porta do pátio atravessava,
certa vertigem momentânea e desparelha

me acometia, qual pisasse no azul mar,
pintalgado por dez flocos de algodão...
Nunca caí, contudo, em tal ação,

só o ventre seco do assoalho a me chamar,
qual desejando acolher-me em sepultura,
por sob as tábuas de irregular lisura...

VENTRES SECOS VI

A velha casa já não existe mais,
levou consigo moscas e fantasmas;
no reboco já não vejo as faces pasmas,
esfaceladas e lançadas no jamais...

Ergueram prédio ali, de inaturais
salões secos, impessoais e sem alarmas;
esses painéis rasgados em seus carmas,
não mais que vírgulas perdidas nos portais.

As novas moscas talvez deixem seus sinais
pelas paredes, mas me são indiferentes,
pois nunca entrei nessas salas complacentes,

mas multiplicam suas gerações demais
e ao invés de quadros, desenham nas paredes
seus labirintos de arredondadas redes!...

DESEJOS FALECIDOS I – 17 mar 16

Duas taças de ácido os teus olhos,
me fitam lestos em sua avaliação,
mefíticos olhares de paixão
de consumir-me a carne até os refolhos.

Quando bebo essas taças, meus espólios
se desmancham em fímbrias de ilusão,
fibra por fibra a dissolver-se o coração,
enquanto os ossos despedaçam nos escolhos

desse par de pupilas sem afeto,
luz negra que me rasga sem piedade
e à luz da própria luz me recompõem:

taças de aço, de esplendor dileto,
capazes de abranger toda a saudade
e que em azeite e vinho me depõem.

DESEJOS FALECIDOS II

Guardado fico para a decoração
das prateleiras douradas da vaidade,
minha imagem recompondo à sua vontade:
pequenos fetos em cada botijão...

cada desejo ali mantido sem paixão,
meros troféus de limpa iniquidade,
travada a tampa com firmeza e sem maldade:
que se preserve assim a coleção!...

E nesses meus desejos falecidos
flutuam trapos de minhalma retalhada,
o que restou tão somente alguns frangalhos,

que ainda exponho, em sonetos esquecidos,
à multidão indiferente e desconfiada,
tal qual em açougue a examinar meus talhos!

DESEJOS FALECIDOS III

Sou fantasma de mim, resto solene
de um anseio ambulante e solitário;
torno constante ao exame desse vário
acervo opaco em exposição perene.

Fui dissolvido, porém pareço indene,
canto, sorrio, sou com outrem solidário,
mas o melhor de mim se acha no armário
de tuas pupilas – amor que me condene!

Não são, de fato, meus desejos falecidos:
quando os recordas, põem-se a agitar,
na tentativa e desespero de escapar

desses teus olhos, em que se acham contidos,
na vasta angústia de nos lábios teus pousar,
qual triste beijo de meus sonhos esquecidos!

RIO DOS HOMENS I – 18 março 2016

De pouco me ajudou conhecer tanto,
se não reconhecia como agir:
fui podado em tanta coisa e meu sentir
não podia demonstrar sequer no canto;

minhas falhas corrigi, nesse entretanto,
de meus anos ao longo, a me brunir,
em mim criado o necessário reagir,
reconstituindo o que nunca fora santo;

precisei me reeducar, tudo esquecer
que me fora ensinado anteriormente,
examinar meus livros e a experiência,

até as facetas enfim reconhecer
do que devia guardar ou totalmente
ser esmagado na peneira da paciência!

RIO DOS HOMENS II

Desde os milênios as águas me concitam
a recordar paisagens desoladas,
montanhas a galgar alcandoradas:
de cada floco de neve os olhos fitam:

rostos que foram e não mais se agitam,
mas no meu seio se acham conservados,
no rio das águas de meus antepassados,
que em mornas brasas no imo ainda palpitam,

tantos deixaram no corpo meu legados,
sobre os limites fugazes da instrução,
de repartir-me o alimento no cenáculo

contra os parâmetros em mim tão inculcados,
meus ancestrais, em pálida emoção,
em mim contidos qual em fiel receptáculo!...

RIO DOS HOMENS III

Sou rio dos homens e dos homens rio,
depois que, a custo, finalmente me encontrar,
todo o frágil ministrado abandonar,
quebrando a ganga no esforço de meu brio!

À vasta gama dos avós me alio,
a casca grossa já de mim quebrar;
novo fragor pessoal em mim gerar:
no rio dos homens sou Narciso e me sorrio!

Mas essa água ainda flutua e meu reflexo
não me prende, tal qual fez ao pastor,
pois não se tocam jamais as mesmas águas;

dentro da mente a refazer meu nexo,
meus velhos mortos refeitos em vigor
pelo fluir sutil de tantas mágoas!...

ÉLITROS I – 19 mar 2016

São élitros as asinhas, fios sedosos
que ficam sob as cascas dos besouros,
quitina negra, mais rígida que couros,
bichinhos mansos, que em nada são danosos,

bem diferentes dos insetos pavorosos
que às mulheres provocam tais desdouros,
blatofobia ocasionando os seus estouros, (*)
de nojo e medo de tais bichos temerosos,
(*) Medo de baratas.

que raramente voam, antes se entranham
por fendas e janela, esgoto e ralo:
podem voar, mas com certa rigidez;

se perseguidas, mais a correr se assanham,
enquanto algumas se assombram com o estalo
quando sua morte com um golpe se perfaz!...

ÉLITROS II

Que seja feio o rosto do poeta,
qual recoberto por igual quitina;
por sob a pele a seda se ilumina,
pronta a voar em vã missão secreta!

Abrem-se élitros e a luz do canto excreta;
digo que é vã, porque o verso então se afina,
brilha nos olhos, nos ouvidos da menina
e adeja leve, qual falena ou borboleta!

Mas os élitros se limitam a canções,
mudas somente, que ouvidos não alcançam;
lábios precisam que os leiam em voz alta

ou que nos olhos se lhes filtrem emoções...
nos brônzeos pratos sentimentos se balançam,
algum dos lados sempre achado em falta!

ÉLITROS III

Seria lindo se o adejo então pousasse
sobre faces de alvura delicada,
sobre rostos de ternura amorenada
e como lágrima, o poema se estampasse!

Seria lindo se cada verso acariciasse
a um coração de tristeza amargurada,
ao desaponto da princesa despeitada,
que a condição de ser plebeia rejeitasse!

Seria lindo se as palavras do poeta
fossem nos lábios as gotas mais esquivas,
sem que jamais esse rosto contemplasse,

mas que esse verso, a vã missão completa,
tornasse manso em quimeras redivivas
e igual beijo peregrino lhe alcançasse!...

ventosas da noite 1 — 20 mar 16
possuem os polvos tentáculos grudentos,
com cem boquinhas, sucções poderosas,
que descrições já causaram pavorosas,
ao respirar do leitor sugando alentos!...
Victor Hugo descreveu-nos tais portentos,
sem ter, decerto, tocado em tais ventosas:
não sugam sangue, só se firmam, pegajosas,
pontos marcando, ante o olhar nojentos...
outras ventosas possuem as sanguessugas,
que estas, sim, são terríveis hematófagos,
que antes usavam os barbeiros em sangrias...
mas quando a noite sobre a tarde estende rugas,
seus raios negros certamente são luçófagos, (*)
diuturnamente a devorar-nos dias!...
(*) Bebedores de luz.

ventosas da noite 2
tentáculos a noite estende na paisagem,
suga faminta toda forma e toda cor,
mas não se diga que o faça sem amor:
sem manto escuro aos amantes dá coragem...
e ao mesmo tempo concede igual vantagem
ao batedor de carteira e ao salteador
ao assassino e ao atrevido arrombador,
cúmplice ignota que jamais mostra sua imagem!
as sombras que ali encontra então perfilha,
qual antiaurora, busca tudo para si,
em vasta rede afogando até montanha;
cada alto pico sobrenada tal qual ilha,
mas nas artérias de antiluz, dança de esqui,
em salto inverso que até os cumes arrebanha!

ventosas da noite 3
mas muito embora ela engula a forma e a cor,
não as dessangra definitivamente:
somente as guarda até o momento em que pressente
ter de ocultar-se de seu perseguidor,
que logo estende seus tentáculos de ardor,
as suas ventosas a espalhar alegremente,
a noite dessangrando inteiramente,
cada ventosa a dar-lhe beijos sem pudor!
e a Terra gira nas ventosas desse Sol
que firme a prende em mil tentáculos de luz;
mas os seus próprios tentáculos estende
contra o satélite, gravidade como anzol,
na tríplice aliança dessa cruz
que o dia apaga e a noite então acende!

O FOGO DO VENTO I – 21 mar 2016

Ninguém se iluda: eu sempre amei o vento,
Principalmente nos dias de verão,
Cada lufada a refrescar-me o coração,
A fresca brisa a devolver-me o alento...

Mesmo no inverno, com tais ares me contento:
Nosso Minuano executa a sua missão,
Pois nos transmite do passado a exclamação,
Vozes antigas, entre prantos e lamento...

Contudo, há um vento que nos cresta a pele:
Fala o gaúcho a nos deixar “quarteadas”
Das mãos as costas, se por demais mostradas...

Pois o tal vento que então “fogo” se apele,
Nos assopra sem parar, constante rio,
A despertar nos corações o frio!...

O FOGO DO VENTO II

Segundo Dante Alighieri, em seu Inferno,
Há o Segundo Círculo, que aos lascivos
É dedicado, aperreados nesses crivos
De um vento em fúria, singular e eterno...

Mesmo que fosse seu o amor mais terno,
No adultério teriam sido ativos
E Dante nunca perdoa seus motivos:
Do Catecismo a seguir fiel caderno...

O interessante é que o homossexualismo
Ele inseriu num círculo diverso,
A sua punição muito mais grave...

Tal qual não houvera amor no lesbianismo,
Mas somente o sensualismo mais perverso,
Que a perdição eterna assim lhe cave...

O FOGO DO VENTO III

Bem nessa época viveu Savonarola,
Monge profeta que desafiou o Papado,
Em sua cidade ferozmente castigado
Quem “sodomita” por apodo esfola!...

Desnudo o grupo pela cidade rola,
Por feroz bando de meninos espancado,
Até o suplício a que fora condenado,
Tendo, com sorte, só a forca na sua gola!...

Os tempos eram outros e outro vento
Sobre nós sopra diuturnamente,
Que a lei hoje castiga o oposto intento;

Vento de fogo para quem condena
A quem seu próprio sexo contente,
O povo hétero a punir com forte pena!...

O FOGO DO VENTO IV

Antigamente, a cultura camponesa
Precisava de mãos para o trabalho,
Por mais que o vento cortasse forte talho
Das mãos nas costas expostas sem defesa.

Mas nas cidades se encontra parca mesa,
Alimentar os filhos forte malho;
O vento sopra chocarreiro o seu chocalho
Na criação de muitos filhos, com certeza!

Submetidos a tais ventos de mudança,
Em nada espanta que mudem os costumes,
Sem que o impulso sexual seja cortado;

Não obstante, há exagero nessa andança,
As punições a gerar mais azedumes
Em quem mantém-se ao outro sexo inclinado!...

O FOGO DO VENTO V

Não me parece ter fugido da temática,
Muito embora pretendesse um outro rumo;
A narração do Gênesis reassumo,
Ventos de fogo condenando toda a prática

De Sodoma e de Gomorra, numa enfática
Destruição pelo fogo e pelo fumo;
A Admah e Zeboiim igual insumo
Por ventania sulfurosa e sorumbática!

Também o povo pereceu dessas aldeias,
Nas prédicas correntes esquecidas,
Mas Lot e as filhas só acharam mortos;

E de um incesto cometeram as ações feias,
Pensando ter o vento destruídas
Todas as gentes pelo fogo em tais abortos!

O FOGO DO VENTO VI

Mas o que isso tem a ver com meu Minuano?
Fogo do vento na alma apenas sinto,
Não o dantesco quadro que hoje pinto:
Fogo da geada nos fertiliza o plano...

Fogo nos cascos do animal paisano,
Fogo no peito de cada herói distinto,
Fogo em peleia que a meu redor pressinto,
Fogo do vento no passo do aragano...

Fogo na seiva de cada velho umbu,
Fogo no rubro de cada corticeira,
Fogo nas ventas crioulas do corcel,

Fogo torrando negro a cada anu,
Que contra o vento força a asa ligeira:
Fogo nas linhas com que avento meu papel!...

PÁLIDAS MÃOS I – 22 mar 16

Quando eu a vejo, a luz que me transporte
é como a Lua a acariciar-me a face;
mas quando ausente, é como se algo me transpasse
e de amargura recame a inteira sorte...

Quando eu a vejo, tão grácil no seu porte,
quase não creio que algum dia me abraçasse
e com a ponta de seus dedos me tocasse
do rosto a pele, para espantar-me a morte...

Seus olhos brilham, porém a meiga luz
de suas mãos, em translúcido fanal,
o peito inteiro me rasga sem razão,

e então sua ausência é verdadeira cruz,
em mim lançada por sua voz imaterial,
saudade apenas a ressecar-me o coração.

PÁLIDAS MÃOS II

Li certa vez, quando ainda adolescente:
“Pálidas mãos que eu amava, perto de Shalimar,
onde andareis agora, a quem ireis afagar?”
na contracapa de um disco, simplesmente.

Mas essa frase em mim ficou subjacente,
durante décadas, sem nunca se apagar,
que algumas vezes até pensei em musicar,
sabendo embora da afirmação ali presente

de que era, desde o início, a tradução
dessa “Canção da Índia”, em ópera linda
de Rimskij-Korsakov, um dos maiores

compositores: era de Sadko a canção,
que me nutriu dessa memória infinda,
no melancólico luzir de meus temores...

PÁLIDAS MÃOS III

Não sei se um dia a encontrarei de novo,
nem se nas mãos permanece a palidez
ou se o sol manchas castanhas nelas fez,
como é comum no feminino povo,

que ao sol se expõe, na busca de um renovo
desse bronzeado que escurece a tês..
Ai, meu olhar, se de novo um dia a vês,
será que o peito, de revê-la, ainda comovo?

Só sei que essa luz me atravessava
a cada vez que seus dedos contemplava,
imaginando se podia me aquecer...

Ou se a presença que tanto se insinuava,
passados anos, sem jamais me aparecer,
dedos mostrasse que queria até esquecer...?

NO ABANDONO DA TRISTEZA I – 23 mar 16

Teu rosto aguardo com trepidação,
hoje que a força dos músculos perdi,
tendo vergonha de me expor a ti,
por mais igual que ainda seja minha paixão.

Da forma física já perdi toda a ilusão,
quando meu corpo de setenta eu vi;
somente em sonhos meu amor nutri,
cacos de espanto a rasgar expectação.

E já nem sei se te rever eu quero;
queria ter algo de belo a te mostrar,
que até nos versos desgastei toda a emoção.

Por isso eu digo que em tal temor espero,
quiçá querendo até mesmo te evitar,
pela tibieza de meu pobre coração...

NO ABANDONO DA TRISTEZA II

Embora tanta vez se nos pareça
que a tristeza possui razão real,
o abandono ou a morte o seu causal
e que destarte em nossa alma permaneça,

uma coisa é importante: não se esqueça
de que tristeza é dor apenas, no final,
intensa no começo, imenso mal,
porém que diminui, sem que nos cresça.

Mas se uma dor em nós se intensifica
é com frequência de moléstia terminal:
por que a tristeza deveria ser igual?

Tal qual um câncer que nalma se nos pica,
que deveria ser então mandado embora,
senão metástase provoca e nos devora!

NO ABANDONO DA TRISTEZA III

Porém metástase diversa se deseja:
que algum amor fremente de emoção
saltar pudesse em algum outro coração
e ali encontrasse a triste dor que o aleija!

Contaminação de amor então se enseja,
toda a tristeza enquistada na paixão,
toda envolvida nessa vasta brotação
do câncer puro com que alma outra alma beija!

E que não fosse suscetível a radiação
e muito menos a quimioterapia,
quando a biópsia amor somente revelasse!

A própria alma na multiplicação
das células de amorosa oncologia,
em que a paixão em novo peito se implantasse!

NO ABANDONO DA TRISTEZA IV

Belo seria se a contaminação
de um coração por outro nesse amor
conseguisse dominar todo o estertor,
perpetuando doravante essa emoção!

Belo seria se esse câncer da paixão
toda feiura e defeito constritor
dos olhares apagasse com vigor,
a contemplar unicamente o coração!

Que fosse vista unicamente essa ternura
que se acha ao exterior subjacente,
por tantas décadas em sobrevivência

e que a vergonha da aparência impura
fosse apagada por carícia tão fervente
que só restasse a mais gentil luminescência!-



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