quinta-feira, 28 de setembro de 2017






FANTASMAS DE SAL  (23 JAN 11)
Quindecaneto de William Lagos

(Anfitrite e Posêison, mosaico Syrtes, 315 dC)

FANTASMAS DE SAL I 

Como Anfitrite, ela surge desde as ondas,
toda desnuda.   Porém as águas sobem
e de um vestido azul toda a recobrem:
são as ostras o calçado de suas rondas.

O sal marinho se condensa em sua cabeça:
mais que coroa, lhe forma um capacete,
cachos prateados em que a luz se injete,
tal qual a espuma que ao mar nunca regressa.

Traz búzios nos seus pés, botas de luz
e a madrepérola se adensa nos seus braços.
Ela é a deusa do mar de antigos povos.

Perfeitas pernas de salsugem que reluz,
sem cauda de sereia, mas nos traços
trazendo a majestade em cantos novos...

FANTASMAS DE SAL II 

Não que seja realmente a deusa antiga
de quem disseram ter nascido em rubra espuma;
não é Afrodite, do amor a deusa suma,
mas hipocampo tem por seu auriga,

barbatana pontiaguda a sua quadriga;
do carro desce e galga cada ruma,
sem nas areias deixar marca nenhuma;
se amor não traz, veneração obriga.

As ondas verdes se condensam ao redor
e lhe ondulam sobre a pele, mansamente,
veio ordenar e nem busca seduzir;

monarca algum a afetará em seu ardor;
ela domina as dunas, simplesmente,
enquanto avança sem nem sequer sorrir.


FANTASMAS DE SAL III 

Encara o vento e aos poucos se transforma;
seu azul empalidece e faz-se sal,
seu rosto e braços tornados puro cal,
nessa visão que a mente inteira me transtorna

e na brisa se dissolve e perde a forma,
a voar nos ventos esse fantasma ideal,
mas recompõe-se nos fundos do quintal
e novamente de seu azul se adorna.

Ela me chama e cruza minha janela:
“Sou fantasma do sal que trago em mim.”
Lanço-me ao solo, sem nem saber que tinha

escorrido de mim mesmo para ela;
e então me ajoelho e permaneço assim,
em reverência total a tal rainha.

FANTASMAS DE SAL IV 

“Porque não foste a mim, eu venho a ti,”
ela me exproba, coluna de altivez.
“Foges ao berço que toda a vida fez;
Por isso deixo o mar e me acho aqui.”

“Porém, mãe, não é das águas que fugi,”
Protesto inerte, em total desfaçatez.
“Fujo é do Sol, que não me queime a tez,
que a luz de Febo sobre mim não me sorri.”

“Disso bem sei, eis a razão porque aqui estou;
poderia te ordenar, mas vou pedir;
quero que agora sejas meu aedo...”

“Senhora minha, pobre vate eu sou,
fraco o meu dom para outrem seduzir...”
eu balbucio, imerso no meu medo.

FANTASMAS DE SAL V

“Nada tens a temer,” – disse a deidade.
“Sei muito bem que não vales quanto Homero
nem como Hesíodo, mas neste mundo fero
tudo estudei e na maior dificuldade,

“pobre poeta, só achei disponibilidade
em tua alma de pureza e olhar sincero;
poucos recordam como a vida eu gero,
na maresia e nas brisas da saudade...”

“Outros melhores podem-te louvar,
augusta dama, a mãe de todo o sal!...
Quantos comentam a vastidão do mar,

“das tempestades o poderoso mal,
da fúria de Posêidon o ressoar,
das conchas feitas de coral e cal...”

FANTASMAS DE SAL VI

“Mas não me louvam, poeta, não escutas?
Vênus recordam, a que nasceu da espuma
do sangue da serpente e que assim ruma
diretamente dos corações às grutas...

“Também falam de Netuno nas suas lutas,
no canto das sereias, que se esfuma,
na branda brisa marinha que perfuma,
nessas marés que se alteiam em volutas...

“Mas não em mim!  Eu que circundo o mundo!
Eu sou Salácia!...  Sou a mãe de todo o sal,
Sem mim o mundo perderá todo o sabor;

“Domino desde a fonte ao mar profundo
e mesmo habito o chafariz pintado a cal,
a vida eu dou, que vale mais que o amor!...”

FANTASMAS DE SAL VII

“Não obstante, o teu Brasil me desconhece!
A quem ouves mencionar esta Anfitrite,
embora tantos se recordem de Afrodite
e hoje ainda exista quem lhe mande prece?

“Querem que a rede de malícia que ela tece
seja mudada em favor de quem a incite,
como se ordens a qualquer deusa se dite
que nela influência sua oração tivesse!

“Quero de ti que difundas o meu nome,
quero ser reconhecida e o quero já;
até em África me tornaram em orixá,

“a deusa branca que a Umbanda julgar dome,
porém me invocam tão só como Iemanjá:
sinto rancor e o despeito me consome!...

FANTASMAS DE SAL VIII 

“Por isso eu deixo a minha dourada biga,
meus hipocampos me aguardam, impacientes,
e subo à terra com meus pés frementes,
para mostrar que ainda do povo sou a auriga!

“Dos navegantes eu sou senhora antiga,
os marinheiros da Lusitânia meus tementes,
por bem saberem como eram impotentes
quando tormenta suas pobres naus persiga!

“Mas meu nome é Afrodite!  Até os Romanos,
que me chamavam pelo nome de Salácia,
entronizaram esse nome que os Helenos

“aprendido tinham de mim há tantos anos
e me lançavam grinaldas, louro e cássia,
dessas galeras propelidas por seus remos...

FANTASMAS DE SAL IX

“E não percebem as gentes de tua terra,
tantos milhões habitando à beira-mar,
que apenas eu sou senhora do evitar
a inundação, quando a tormenta berra!

“Quando Posêidon decide fazer guerra,
marés lançando em ríspido espumar,
cem trombas d’água rodopiando pelo ar,
por destruir quanto a vaidade encerra!

“Ou sobre as nuvens impele tempestades,
com suas copiosas chuvas insensatas,
para fazer deslizar montes e matas

“sobre suas casas e sobre suas cidades,
sou eu apenas que seu furor modero
e que me lembrem é o mínimo que espero!”

FANTASMAS DE SAL X

“Eis que Posêidon, meu esposo, enfurecido,
se encontra agora contra a humanidade,
que já não lhe reconhece a divindade
e até seu nome também seria esquecido

“se não fosse o tal planeta envaidecido,
que anéis ostenta desde a eternidade,
bailando sem parar sua fatuidade,
bola de gás por gravidade comprimido...

“E se isso não bastasse, a poluição
é lançada diariamente para as praias,
sem com a vida marinha se importarem,

“fazendo agora ainda mais profanação,
das plataformas continentais nas raias,
para mais fundo o mar contaminarem!

FANTASMAS DE SAL XI 

“E ao me encontrar, assim, desiludida
com esses nomes que o imaginar me dá,
Nossa Senhora, Maria ou Iemanjá,
já não me oponho à sua sanha enfurecida!

“porém, recentemente, tanta vida
eu vi desperdiçada, aqui e lá,
tanta miséria, tanta tristeza má,
que minha alma se mostrou compadecida.

“Tenho tua obra com atenção observado,
vejo os deuses meus irmãos que te inspiraram
e sei que podes atender a meu desejo.

“Assim serás o meu poeta amado
e essas tuas mãos que as areias mal tocaram
redigirão esse louvor que tanto almejo!...”

 FANTASMAS DE SAL XII

“Nada prometo, apenas te comando!
Mas se fores fiel, meu doce aedo,
verás que mais que vida te concedo
e a cornucópia da abundância terás quando

“cumprires fielmente este meu mando!”
E como recusar?  Perdido o medo,
meu coração aberto a seu segredo,
novos poemas comporei em sacro bando.

Resposta não esperou.  Só me sorriu,
suas feições de novo brancas como cal,
sua veste azul tão brilhante quanto o giz;

somente encheu-me com o sabor do sal,
desfez-se em flor de espuma e então sumiu
num redemoinho a cruzar meu chafariz!...

FANTASMAS DE SAL XIII

Tenho agora um compromisso com Anfitrite;
de amor não quer que fale, mas de vida,
que assim seu nome difunda e dê guarida
no coração de meu povo e então o agite...

Que a recordar-se dela eu os incite
nos momentos de lazer ou em longa lida,
como a deusa do mar outra vez tida,
que nela pensem, não apenas em Afrodite...

Mas eu bem sei como é difícil tal missão!
Anfitrite é deusa casta e bem vestida,
embora a mãe das sereias e tritões;

e dos banhistas essa vasta multidão
prefere a pele ver, bem mais despida
dessa Afrodite que domina os corações!

FANTASMAS DE SAL XIV

Mesmo assim, insistirei, longe das praias,
dessas desnudas vendo só fotografias,
verão as veste na imodéstia de seus dias,
talvez lembrando no futuro serem feias,

mostrando os méritos nas proporções mais gaias,
da orgulhosa nudez deusas esguias,
para atiçar em tantos homens fantasias,
mas nos desdéns, deusa Afrodite, não me enleias!

Pois não pretendo desprezar, tampouco
essa romana que nos promete o amor;
e se tornar-me o peito num deserto?

Mas a glória de Anfitrite, em canto rouco
proclamarei com todo o meu ardor,
que amor se afasta, mas a vida fica perto!

FANTASMAS DE SAL XV

Em consequência, darei um jeito de incluir
nesses poemas que sei ainda escreverei
o nome de Anfitrite e de seu rei,
para minha vida em plenitude assim fruir,

da cornucópia da abundância me nutrir
durante os anos que ainda gozarei;
se tiver vida, gotas de amor terei,
versos de amor nas margens a inserir

que me conduzam a abrir mil corações
de quem a vida tratou com amargura,
nas lágrimas de sal que o olhar emite;

e que aquelas que sofreram mil paixões
mas conservam, mesmo assim, toda a ternura,
restauradas possam ser por Anfitrite!...

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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