FANTASMAS DE SAL (23 JAN 11)
Quindecaneto de
William Lagos
(Anfitrite e Posêison, mosaico Syrtes, 315 dC)
FANTASMAS DE SAL
I
Como Anfitrite, ela
surge desde as ondas,
toda
desnuda. Porém as águas sobem
e de um vestido azul
toda a recobrem:
são as ostras o
calçado de suas rondas.
O sal marinho se
condensa em sua cabeça:
mais que coroa, lhe
forma um capacete,
cachos prateados em
que a luz se injete,
tal qual a espuma que
ao mar nunca regressa.
Traz búzios nos seus
pés, botas de luz
e a madrepérola se
adensa nos seus braços.
Ela é a deusa do mar
de antigos povos.
Perfeitas pernas de
salsugem que reluz,
sem cauda de sereia,
mas nos traços
trazendo a majestade
em cantos novos...
FANTASMAS DE SAL
II
Não que seja realmente
a deusa antiga
de quem disseram ter
nascido em rubra espuma;
não é Afrodite, do
amor a deusa suma,
mas hipocampo tem por
seu auriga,
barbatana pontiaguda a
sua quadriga;
do carro desce e galga
cada ruma,
sem nas areias deixar
marca nenhuma;
se amor não traz,
veneração obriga.
As ondas verdes se
condensam ao redor
e lhe ondulam sobre a
pele, mansamente,
veio ordenar e nem
busca seduzir;
monarca algum a
afetará em seu ardor;
ela domina as dunas,
simplesmente,
enquanto avança sem
nem sequer sorrir.
FANTASMAS DE SAL
III
Encara o vento e aos
poucos se transforma;
seu azul empalidece e
faz-se sal,
seu rosto e braços
tornados puro cal,
nessa visão que a
mente inteira me transtorna
e na brisa se dissolve
e perde a forma,
a voar nos ventos esse
fantasma ideal,
mas recompõe-se nos
fundos do quintal
e novamente de seu
azul se adorna.
Ela me chama e cruza
minha janela:
“Sou fantasma do sal
que trago em mim.”
Lanço-me ao solo, sem
nem saber que tinha
escorrido de mim mesmo
para ela;
e então me ajoelho e
permaneço assim,
em reverência total a
tal rainha.
FANTASMAS DE SAL IV
“Porque não foste a
mim, eu venho a ti,”
ela me exproba, coluna
de altivez.
“Foges ao berço que
toda a vida fez;
Por isso deixo o mar e
me acho aqui.”
“Porém, mãe, não é das
águas que fugi,”
Protesto inerte, em
total desfaçatez.
“Fujo é do Sol, que não
me queime a tez,
que a luz de Febo
sobre mim não me sorri.”
“Disso bem sei, eis a
razão porque aqui estou;
poderia te ordenar,
mas vou pedir;
quero que agora sejas
meu aedo...”
“Senhora minha, pobre
vate eu sou,
fraco o meu dom para
outrem seduzir...”
eu balbucio, imerso no
meu medo.
FANTASMAS DE SAL V
“Nada tens a temer,” –
disse a deidade.
“Sei muito bem que não
vales quanto Homero
nem como Hesíodo, mas
neste mundo fero
tudo estudei e na
maior dificuldade,
“pobre poeta, só achei
disponibilidade
em tua alma de pureza
e olhar sincero;
poucos recordam como a
vida eu gero,
na maresia e nas
brisas da saudade...”
“Outros melhores
podem-te louvar,
augusta dama, a mãe de
todo o sal!...
Quantos comentam a
vastidão do mar,
“das tempestades o
poderoso mal,
da fúria de Posêidon o
ressoar,
das conchas feitas de
coral e cal...”
FANTASMAS DE SAL VI
“Mas não me louvam,
poeta, não escutas?
Vênus recordam, a que
nasceu da espuma
do sangue da serpente
e que assim ruma
diretamente dos
corações às grutas...
“Também falam de
Netuno nas suas lutas,
no canto das sereias,
que se esfuma,
na branda brisa
marinha que perfuma,
nessas marés que se
alteiam em volutas...
“Mas não em mim! Eu que circundo o mundo!
Eu sou
Salácia!... Sou a mãe de todo o sal,
Sem mim o mundo perderá
todo o sabor;
“Domino desde a fonte
ao mar profundo
e mesmo habito o
chafariz pintado a cal,
a vida eu dou, que
vale mais que o amor!...”
FANTASMAS DE SAL VII
“Não obstante, o teu
Brasil me desconhece!
A quem ouves mencionar
esta Anfitrite,
embora tantos se
recordem de Afrodite
e hoje ainda exista
quem lhe mande prece?
“Querem que a rede de
malícia que ela tece
seja mudada em favor
de quem a incite,
como se ordens a
qualquer deusa se dite
que nela influência
sua oração tivesse!
“Quero de ti que
difundas o meu nome,
quero ser reconhecida
e o quero já;
até em África me
tornaram em orixá,
“a deusa branca que a
Umbanda julgar dome,
porém me invocam tão
só como Iemanjá:
sinto rancor e o
despeito me consome!...
FANTASMAS DE SAL
VIII
“Por isso eu deixo a
minha dourada biga,
meus hipocampos me
aguardam, impacientes,
e subo à terra com
meus pés frementes,
para mostrar que ainda
do povo sou a auriga!
“Dos navegantes eu sou
senhora antiga,
os marinheiros da
Lusitânia meus tementes,
por bem saberem como
eram impotentes
quando tormenta suas
pobres naus persiga!
“Mas meu nome é
Afrodite! Até os Romanos,
que me chamavam pelo
nome de Salácia,
entronizaram esse nome
que os Helenos
“aprendido tinham de
mim há tantos anos
e me lançavam
grinaldas, louro e cássia,
dessas galeras
propelidas por seus remos...
FANTASMAS DE SAL IX
“E não percebem as
gentes de tua terra,
tantos milhões
habitando à beira-mar,
que apenas eu sou
senhora do evitar
a inundação, quando a
tormenta berra!
“Quando Posêidon
decide fazer guerra,
marés lançando em
ríspido espumar,
cem trombas d’água
rodopiando pelo ar,
por destruir quanto a
vaidade encerra!
“Ou sobre as nuvens
impele tempestades,
com suas copiosas
chuvas insensatas,
para fazer deslizar
montes e matas
“sobre suas casas e sobre
suas cidades,
sou eu apenas que seu
furor modero
e que me lembrem é o
mínimo que espero!”
FANTASMAS DE SAL X
“Eis que Posêidon, meu
esposo, enfurecido,
se encontra agora
contra a humanidade,
que já não lhe
reconhece a divindade
e até seu nome também
seria esquecido
“se não fosse o tal
planeta envaidecido,
que anéis ostenta
desde a eternidade,
bailando sem parar sua
fatuidade,
bola de gás por
gravidade comprimido...
“E se isso não
bastasse, a poluição
é lançada diariamente
para as praias,
sem com a vida marinha
se importarem,
“fazendo agora ainda
mais profanação,
das plataformas
continentais nas raias,
para mais fundo o mar
contaminarem!
FANTASMAS DE SAL
XI
“E ao me encontrar,
assim, desiludida
com esses nomes que o
imaginar me dá,
Nossa Senhora, Maria
ou Iemanjá,
já não me oponho à sua
sanha enfurecida!
“porém, recentemente,
tanta vida
eu vi desperdiçada,
aqui e lá,
tanta miséria, tanta
tristeza má,
que minha alma se
mostrou compadecida.
“Tenho tua obra com
atenção observado,
vejo os deuses meus
irmãos que te inspiraram
e sei que podes
atender a meu desejo.
“Assim serás o meu
poeta amado
e essas tuas mãos que
as areias mal tocaram
redigirão esse louvor
que tanto almejo!...”
FANTASMAS DE SAL
XII
“Nada prometo, apenas
te comando!
Mas se fores fiel, meu
doce aedo,
verás que mais que
vida te concedo
e a cornucópia da
abundância terás quando
“cumprires fielmente
este meu mando!”
E como recusar? Perdido o medo,
meu coração aberto a
seu segredo,
novos poemas comporei
em sacro bando.
Resposta não
esperou. Só me sorriu,
suas feições de novo
brancas como cal,
sua veste azul tão
brilhante quanto o giz;
somente encheu-me com
o sabor do sal,
desfez-se em flor de
espuma e então sumiu
num redemoinho a
cruzar meu chafariz!...
FANTASMAS DE SAL XIII
Tenho agora um
compromisso com Anfitrite;
de amor não quer que
fale, mas de vida,
que assim seu nome
difunda e dê guarida
no coração de meu povo
e então o agite...
Que a recordar-se dela
eu os incite
nos momentos de lazer
ou em longa lida,
como a deusa do mar
outra vez tida,
que nela pensem, não
apenas em Afrodite...
Mas eu bem sei como é
difícil tal missão!
Anfitrite é deusa
casta e bem vestida,
embora a mãe das
sereias e tritões;
e dos banhistas essa
vasta multidão
prefere a pele ver,
bem mais despida
dessa Afrodite que
domina os corações!
FANTASMAS DE SAL XIV
Mesmo assim,
insistirei, longe das praias,
dessas desnudas vendo
só fotografias,
verão as veste na
imodéstia de seus dias,
talvez lembrando no
futuro serem feias,
mostrando os méritos nas
proporções mais gaias,
da orgulhosa nudez
deusas esguias,
para atiçar em tantos
homens fantasias,
mas nos desdéns, deusa
Afrodite, não me enleias!
Pois não pretendo
desprezar, tampouco
essa romana que nos
promete o amor;
e se tornar-me o peito
num deserto?
Mas a glória de
Anfitrite, em canto rouco
proclamarei com todo o
meu ardor,
que amor se afasta,
mas a vida fica perto!
FANTASMAS DE SAL XV
Em consequência, darei
um jeito de incluir
nesses poemas que sei
ainda escreverei
o nome de Anfitrite e
de seu rei,
para minha vida em
plenitude assim fruir,
da cornucópia da
abundância me nutrir
durante os anos que
ainda gozarei;
se tiver vida, gotas
de amor terei,
versos de amor nas
margens a inserir
que me conduzam a
abrir mil corações
de quem a vida tratou
com amargura,
nas lágrimas de sal
que o olhar emite;
e que aquelas que
sofreram mil paixões
mas conservam, mesmo
assim, toda a ternura,
restauradas possam ser
por Anfitrite!...
William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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