terça-feira, 8 de outubro de 2019




ESPADA MURAMASA & MAIS
WILLIAM LAGOS, 15-27 ABRIL 2019



Espada Muramasa (VI) ... ... ... 15 abril 2019
Cariátides Desmembradas (IV) ... ... ... 16 abril 2019
Summertime (IV) ... ... ... 17 abril 2019
Descarte (IV)  ... ... ... 18 abril 2019
Pombas Cinzentas (III) ... ... ... 19 abril 2019
No Caminho do Passado (III) ... ... ... 20 abril 2019
Memórias Esquecidas (IV) ... ... ... 21 abril 2019
Memórias Reformadas (VI) ... ... ... 22 abril 2019
Flores Siderais (III) ... ... ... 23 abril 2019
Lágrimas da Lua (III) ... ... ... 24 abril 2019
Quinquilharias (IV) ... ... ... 25 abril 2019
Cimitarras de Lama IV) ... ... ... 26 abril 2019
Dimensões das Sombras (III) ... ... ... 27 abril 2019
Cordas de Areia (I) ... ... ... 28 abril 2019

ESPADA MUROMASA I – 15 abril 2019

Eu cantarei do amor que me persegue,
inteiro e sem reservas, amor branco,
que busco retirar num só arranco,
mas não consigo impedir que negue
sua completude, triste ardor de jegue,
paciente e intimorato no seu tranco,
sem recusar ladeira nem barranco,
porém sem denegar o dom que o cegue.

Esse amor lento e de sabor dolente,
flor resplendente que nunca chega a abrir,
mero botão de luz que já murchou
perante o teu olhar indiferente,
sem jamais expandir-se a reluzir,
qual coração cujo sangue se esgotou.

ESPADA MURAMASA II

Segundo dizem, as espadas muramasa
cortavam o cobre sem perder o fio,
temendamente exigentes em seu brio,
em sangue humano seu poder se embasa.
Dizem que Soshô Mosamune a sua vasa
criou com sangue derramado a frio,
ao invés de água na cura de seu lio,
dentro do tanque em que o metal se incasa.

Ali esfriava o rubor da clara forja,
como costuma fazer cada ferreiro,
antes de o aço novamente martelar
e que encontraram numerosa corja
de cadáveres no mesmo paradeiro,
muito pálidos, sem sangue a lhes restar.

ESPADA MURAMASA III

Mas foi Muramasa Sengô que realmente
levou a espada a seu grande resplendor;
dizem ser louco o ferreiro seu autor
e que a loucura legou inteiramente
a cada espada de que era producente
e através delas a quem fosse o possuidor,
matando até o seu próprio benfeitor,
antes que fossem banidas totalmente.

Só o Shogun as podia armazenar,
mas sequer ele as iria desembainhar,
porque a lâmina sempre sangue requeria,
antes de outra vez poder ser embainhada
e a própria carne deveria ser cortada,
caso a ninguém qualquer mal se pretendia.

ESPADA MURAMASA IV

Dizem que todas foram então fundidas,
salvo alguma com outro nome disfarçada,
qual se por outro ferreiro executada,
só na literatura se encontram escondidas,
lendas macabras no Ocidente acolhidas,
pelo cinema a sua história aprimorada
ou na verdade sendo desvirtuada.
Sagas reencarnam em mil variadas vidas.

Especialmente as de espadas com magia,
que nos perseguem em longa persistência,
por mais que sejam negadas com paciência;
quem nelas crê o fez por que o queria,
em sonho vindo desde a adolescência,
em que a quimera de sua glória buscaria.

ESPADA MURAMASA V

Só morrem lendas após longas agonias,
igual que em filme de teor hollywoodiano:
o monstro ou a praga têm valor profano,
nunca alcançando os finais que quererias;
fica a suspeita com que te assustarias,
esse gancho para um novo lucro insano,
tão mais buscado quanto é mais desumano,
amas o medo de que não te alivias.

Pois desse medo és apenas testemunha,
outros alcançam tais finais horríveis,
cada vez mais a nos tornarmos insensíveis;
nos corações crava-se aos poucos cunha
e é bem verdade que já existem duelos,
quais dos Romanos, em seus cruéis apelos.

ESPADA MUROMASA VI

Contudo, eu canto é do amor persecutório,
bem mais bravio que uma espada Muramasa
ou qualquer arma em que o ódio se embasa,
na realidade, muito mais peremptório:
quando se instala em ti amor inglório,
demanda ter no coração seua casa
e se no sangue encontrar Tábula Rasa,
toda a esperança envolve em seu velório.

Quatro lâminas em torno a reluzir,
enquanto a alma de seu amor se ilude
e enverga o trajo de madeira do ataúde,
mais do que a espada Muramasa a te ferir,
só se apagando depois que o sangue bebe,
quando o final de teu delírio se concebe.

CARIATIDES DESMEMBRADAS I – 15 ABRIL 19

Tendo em vista que amor tende a cansar,
igual se cansa toda tempestade,
os seus raios desgastando em quantidade
que o céu noturno enfim vão esvaziar;
tendo em vista que a chuva a marejar
no rosto escorre como lágrima alvaiade,
para depois ressecar-se em qualidade,
para brilhar o céu azul sem mais piscar;
tendo em vista a secura desse sol,
tal qual amor depois de transitado
e que até o olhar feliz nos traz cansaço,
prefiro as lágrimas da chuva ao arrebol,
que não se canse amor de ressecado,
nessas rápidas torrentes de um abraço. 

CARIÁTIDES DESMEMBRADAS II

Tendo em vista que o chover tende a cansar,
igual se cansa do sol a majestade,
cada noite a ir buscar serenidade
em sua tenda do horizonte a bocejar;
tendo em vista que desmaia esse solar,
todo embuçado em hibernal opacidade,
quando recusa dar alívio à escuridade,
por cada noite deixando-se espantar;
tendo em vista a vastidão crepuscular,
em que as sombras se alongam, lado a lado,
em seu comprido e negrejante abraço,
prefiro a pátina do crepúsculo enfrentar,
enquanto as cores se apagam, de cansado,
sem da patena do amor sentir cansaço.

CARIÁTIDES DESMEMBRADAS III

Tendo em vista que as estátuas colunares,
mudas se esforçam por manter a platibanda
contra o tremor ou a chuva mais nefanda,
imóveis tronos semipatibulares;
tendo em vista que as cariatides singulares
nunca dão sombra sobre a sua locanda,
tão só uns leves resquícios em demanda,
altorrelevos em longuíssimos penares;
tendo em vista que as tormentas seculares
buscam sem pena seus braços a quebrar,
marcar os joelhos, desgastando cada traço,
prefiro os rostos, com orelhas já sem pares,
nasais sem ponta que percebo a suspirar,
perante os quais posso prantear o meu cansaço.

CARIATIDES DESMEMBRADAS IV

E tendo em vista que minha diva tem cansaço
bem mais  frequente do que me mostra o sol
e tendo em vista que ao mais flébil arrebol
a noite foge ante a luz do seu abraço;
e tendo em vista cada mutável traço
da natureza em seu intenso rol,
a permanência só há no duplo anzol
de teus olhos quando neles me congraço;
e tendo em vista que o ardor também se cansa,
porém dura muito mais que a tempestade,
das cariátides a ser sobrevivente,
prefiro então esse amor, jovem criança,
que lança as setas com jocularidade,
desde há milênios, num  zombar inconsequente!

summertime 1 – 17 abril 2019

em “porgy and bess”, ira gershwin nos escreve
que uma mulher só é coisa transitória,
contudo porgy tomará visão contrária:
mesmo aleijado, a buscar sua bess se atreve,
que demonstrou sua constância ser tão breve,
enfim achando ser coisa peremptória
essa nova ligação grosseira e vária,
sua emoção toda oposta de tão leve.

será a mulher transitoria realmente,
nunca algo que o coração possa reter
por um breve período e entao sofrer

por seu desdém, total e indiferente,
que nunca soube mais que ao amor amar,
no mesmo vaivém que mostra o mar?

summertime 2

quem sabe amor seja só coisa de verão,
que nos envolva enquanto o calor dura;
quando o hormonal do outono ganha a cura,
demonstra ser breve alergia de estação...
mas este é o amor adolescente, então,
que a alma envolve nesta ânsia de loucura,
que só o corpo se envolve nesta jura,
naturalmente de tão curta duração...

não é um amor adulto e ponderado,
que se pretende assim ser perpetuado,
mesmo depois de ultrapassada a exaltação.

e como existem mil tipos diferentes,
cada um deles com seus próprios crentes,
como se fora a sua perpétua religião!

summertime 3

já para mim o amor nunca termina,
mesmo que venha a ser substituído
por novo amor, alegre a ser fruído,
talvez tendo igualmente curta sina;
nunca se sabe o que a vida nos destina,
qual seja o amor que deva ser mantido,
qual seja o amor que deva ser perdido,
qual o diamante que se oculta nessa mina.

não obstante, nenhum acaba totalmente,
sua cicatriz permanece ao coração,
e ali se pode observar com complacência

ou só encarar com uma certa displicência,
mas sendo dor de uma certa duração,
sempre nos dói e nunca cessa inteiramente.

summertime 4

de certo modo, o amor é qual verão,
que nos acolhe em sua plena calidez,
mas que depois se esvai, com maciez,
gerando outono de igual curta duração.
fica a lembrança constante da estação,
quanto foi morna em sua pequenez
ou quão ardente foi o efeito que nos fez,
já requeimado totalmente o seu botão.

resta saber se é melhor o amor macio
que o outono nos traz a cada ano,
ou mesmo o amor de inverno em frialdade,

mas em sua breve estação prevendo o cio
desse amor primaveril, tão doce e insano,
que irá passar na mesma nuvem de saudade.

DESCARTE I – 18 de ABRIL de 2019

Alguns meninos, perto de Cubatão,
Encontraram recipiente descartado,
Cheio de um pó mágico e azulado,
Indo brincar com pueril noção.

Mas de sua mágica realmente havia razão,
Tinha um poder totalmente desvairado
Esse descarte radioativo ali encontrado,
Das jovens vidas provocando a perdição.

Mas igualmente descarta-se emoção
Nas canções, celulares e cinema
E fica o coração amando a pena

De uma falsa e breve exultação,
Magia azul, centelha atribulada,
Que corta a alma, sem deixar mais nada.

DESCARTE II

Este descarte originou-nos o Romantismo,
Um breve mal sobre todos derramado
Contra o costume antigo e consagrado
De encarar-se o amor com Realismo.

Era uma forma de preservar com mais Verismo
As gerações ou o bem já conquistado,
Esse legado para os netos destinado,
Em vidas curtas e sem grande saudosismo.

Certo que havia já o amor dito cortesão,
Dentro do qual bastante liberdade,
Sem a diária busca pela sobrevivência,

Qual trovador a compor a sua canção,
A ser olhado com uma certa complacência,
Mas sem que nele se cresse de verdade.

DESCARTE III

Mesmo Catullo, o Romano tão gentil,
Com suas odes de amor apaixonado
Contemporaneamente foi ridicularizado,
A sua Lésbia reputada como vil,

Altamente promíscua, em feminil
Troca de amantes, Catullo desprezado,
Olhado apenas com carinho desleixado,
Talvez julgado até pouco viril...

As vidas curtas sem ter grande paciência
Para longos hesitares e namoros,
Os pais determinando os casamentos,

Conforme fosse melhor sua conveniência,
Os matrimônios mais sendo legais foros,
Que qualquer satisfação de sentimentos.

DESCARTE IV

E durante a longa extensão da Idade Média,
Nunca a Igreja demonstrou ter boa vontade
Por casamentos sem racionalidade,
O amor tendo então diversa sédia.

Muito mais um amor feito tragédia,
Só o amor de Cristo em religiosidade,
Com a Igreja o casamento em realidade,
Mas outro amor a se encarar feito comédia.

Mas enfim,o Romantismo apareceu,
Já numa época de vasto alfabetismo,
Descartando entre nós o louco amor,

Que entre véus de rosa e azul nos floresceu,
Qual um veneno de mágico modismo,
Que ainda nos queima com todo o seu calor!

POMBAS CINZENTAS I – 19 ABR 2019

Na algerosa sobre a minha janela
arrulham pombas já há muitos anos;
não são as pombas brancas que os Romanos
consideravam trazer fim à procela.
Passava a chuva e então chegava ela,
a indicar a calmaria, sem enganos:
prque saía a buscar, em seus afanos,
o alimento para a prole dela.

Mas antes mesmo, contavam os Hebreus,
na saga antiga, chamada diluviana,
que de Noé se abrira a portinhola
e enviara como espia para os seus
essa pequena pomba em lida arcana,
a percorrer do horizonte a gola. 

POMBAS CINZENTAS II

Dizem que enfim a pomba branca retornou,
trazendo ao bico um raminho de oliveira,
que a inundação baixara então certeira
e que a tragédia, finalmente, se findou.
Pois esta pomba com o raminho se tornou
um símbolo da paz que então se abeira,
porém a guerra sempre volta, derradeira,
ou um desastre que depois nos assolou.

Mas é um símbolo igual só o raminho,
trégua pedindo, qual bandeira branca,
que a hostilidade temporária estanca,
até a paz novamente ser quebrada,
tão facilmente, ao derredor da Terra,
que os homens amam muito mais a guerra.

POMBAS CINZENTAS III

E mais tarde, já em nova alegoria,
teria uma pomba o batismo consagrado
de Jesus Cristo, por seu primo revoltado,
que a paz de fato jamais apregoaria;
mas essa pomba não me seduzia,
por mais na infância tenham-me ensinado,
ser mensageira da paz sobre o pecado,
que ação diversa bem observaria.

Pois sob o teto da algerosa notaria
lutas ferozes, até que uma avezinha
tombasse ao solo, toda avermelhada,
que a pomba cinza mais um símbolo seria
de um combate diário em que se tinha
uma casa a defender, quando atacada!

NO CAMINHO DO PASSADO I – 20 ABRIL 19

Tábula Rasa nunca fui, segundo creio:
trago a memória de meus antepassados
em meus novelos de deeneeá entranhados,
trago no sangue o seu bendito veio.

Ou então maldito seja, assim receio.

O fato é que me foram conservados
os erros e os acertos consagrados
e no folhear da mente o livro leio
dessas memórias das vidas passadas,
não as minhas, porém dos ancestrais,
em seus martírios e nos seus carnavais,
fossem suas vidas de alegria ou atribuladas,
até o ponto de minhas gerações,
em suas sementes o legado de emoções.

NO CAMINHO DO PASSADO II

Mas não recordo nada de suas mortes,
só até o momento de minha concepção
ou dessa havida em cada uma geração,
tivessem tido feliz ou magras sortes.

São mais da infância seus arcanos portes.

Ou das adolescências de ocasião,
até um ventre se abrir, em recepção,
o que seguiu depois sofrendo cortes.
De certo modo, herdei mais as ilusões
e assim creio, a maioria dos humanos,
sem haver tempo de guardar os desenganos;
só herdei das vidas suas breves brotações
e nada sei do que ocorreu depois
dessa união fértil usufruída pelos dois.

NO CAMINHO DO PASSADO III

Mas considero que a maioria das vidas
dos ancestrais foram de curta duração,
sem haver tempo para grã desilusão,
planos cortados por rápidas feridas.

Talvez alguns tenham tido longas bridas.

Mas não legaram-me sua memorização,
salvo em mística e críptica menção
de suas lembranças das mães já falecidas.
Por certo, herdei os seus caracteres,
que adquiriram para a sobrevivência,
mas certamente pouco ou nada da experiência,
a sua leitura a me servir de halteres,
a compensar, com ilusões e ideais,
desilusões que forjei até demais.

MEMÓRIAS ESQUECIDAS I – 21 ABR 2019

De minha própria vida não recordo
mais do que alguns eventos de importância.
Como posso lembrar de cada instância
dessas côdeas de pão que um dia mordo?
De cada taça ou copo cujo bordo
eu trouxe aos lábios, insensível em constância,
de quantas vezes à fera pregnância
dos intestinos concedi o meu acordo,
de cada vez que o sono me tomou,
de cada instante em que o peito suspirou,
cada batida que sustive, compassada,
sem que por mim tivesse sido controlada,
de cada vez que enchi os meus pulmões,
sob o domínio de tantas distrações...

MEMÓRIAS ESQUECIDAS II

Talvez recorde até mais nitidamente
esses atores de cinema, essas atrizes,
que cobicei em tantos vãos deslizes,
breve desejo, sempre inconsistente,
que as multidões de rosto indiferente
que encontrei nas ruas, os infelizes,
os alegres, os cansados, os petizes
e alguns anciãos de rosto complacente.
que certamente muito pouco me marcaram.
Quem se recorda dos espectadores,
que partilharam da mesma e igual sessão?
Talvez se lembre com mais certeza, então,
de colegas de trabalho, professores,
ou irmãos na fé que mais frequentes encontraram.

MEMÓRIAS ESQUECIDAS III

Mesmo aqueles com quem mais convivemos
não recordamos, de fato, inteiramente,
são muito mais mistura consistente
dos pontos grados que menos esquecemos,
provenientes dos momentos que vivemos
a seu lado – que ideia deprimente! –
nos seus últimos dias, tristemente,
que só seu rosto avelhantado conservemos.
E quem se lembra, até dos mais amados,
dia por dia de nossa convivência?
Mesmo forçando a memória com paciência;
vemos conjuntos de dias misturados,
alguns momentos claramente delineados,
outros borrados de pura inconsistência...

MEMÓRIAS ESQUECIDAS IV

Dizem alguns que, por hipnotismo,
será possível até tudo recordar.
Eu nunca me deixei mesmerizar
e nem sei se aceitaria esse modismo.
A natureza é sábia, em seu tropismo,
não se consegue a luz do Sol contar,
seus mil momentos a se deixar mesclar...
Quem tem da própria sombra saudosismo?
Ficam assim as memórias do passado
mais transformadas por fotografias,
na mistura complicada desses dias
e até mesmo um semblante muito amado,
tal pose fixa pode nos substituir,
pois tudo passa da memória em seu fluir.

MEMÓRIAS REFORMADAS I – 22 ABRIL 2019

Nossa memória é um constante devenir,
tal e qual do velho Heráclito seu rio (*)
e é de pensar, com um certo calafrio,
quanto de nós se perde em seu fluir.
(*) “Jamais nos banhamos duas vezes no mesmo rio.”

Para onde foi o que se viu partir,
diariamente, em mansidão sem brio?
A vida inteira emaranhada nesse fio,
momento apenas por momento a seduzir.

E se esquecemos de nossa própria vida?
O que nos diz que a lembramos de verdade?
Por que estranhamos de outrem a lembrança
que de nós mesmos trazem concebida,
tão diversa da nossa, em realidade,
que ainda mantemos cheia de pujança?

MEMORIAS REFORMADAS II

A memória é uma senhora caprichosa,
que não precisa de namoro com o alemão,
Seu Alzheimer, para nos deixar na mão,
mas facilmente nos demonstra ser viciosa.

Pois te esquece tanta coisa, de ardilosa,
determinada palavra ou expressão!...
Depois recordas, mas chega outra ocasião
e a mesma coisa nos sucede, perniciosa!

Em situação que pode até trazer perigo;
ou então te pode lembrar do que não foi,
memória falsa, porém forte e veraz,
cada detalhe bem claro traz consigo
e que a memória legítima assim rói,
constante a dúvida que desta forma traz.

MEMÓRIAS REFORMADAS III

Há mesmo o caso de alguém ser acusado,
constantes vezes, do que não cometeu,
que no final pensa até que aconteceu
o ato invisível por que foi responsabilizado.

É assim que um crime falso é confessado
ou uma psicóloga alguma ideia concebeu,
que na mente da criança intrometeu
e que acaba por afirmar um feito errado.

Quer agradar quem a manipulou...
Quanta injustiça assim se cometeu,
por afirmar que o tio ou avô a tocou,
pela profissional a ser elaborado
como assédio sexual que ali ocorreu,
quando o menino foi apenas abraçado!

MEMÓRIAS REFORMADAS IV

Também memórias postiças nos assaltam,
algo que vimos no cinema ou na tevê
há muitos anos e que até mesmo se crê
ter vivenciado em antigos sobressaltos!

Uma música nos recorda tais ressaltos
ou então quadro, simplesmente, que se vê,
algum perfume, qualquer coisa que se lê,
alguns sabores, palavras que nos faltam

e, de repente, retornam em companhia
de uma série de percepções vulgares,
que se apresentam em cenários naturais,
que um déjà-vu então se pensaria...
Ou até mesmo as impressões palmares
contra a vidraça, sugerindo cabedais...

MEMORIAS REFORMADAS V

Ainda lembramos as memórias das memórias,
não mais reais eventos definidos,
de cada vez um pouco mais movidos,
para afinal refazer-se, peremptórias,

a um ponto tal que as legítimas histórias,
caso encontremos em relatos concebidos
décadas antes, ou por outros percutidos,
não mais se encaixem em nossas oratórias...

Existem ainda as recordações criadas,
como Münchhausen, a partir de uma invenção,
que repetidas, acabem por tornar-se,
para nós mesmos, coisas vivenciadas,
não mais o fruto da imaginação,
porém certezas que nem mais pode negar-se!...

MEMÓRIAS REFORMADAS VI

Finalmente, há as memórias reprimidas
de qualquer choque sofrido no passado,
que o inconsciente mantém acobertado,
a fim de que não mais perturbem nossas vidas.

Já descrevi recordações perdidas:
meu nome vi em um túmulo gravado
e em novo choque me vi acompanhado
por três vultos de gerações cumpridas,

que percebi como sendo meus parentes
de um século anterior.  Foi tal o baque
que a memória reprimi por trinta anos,
até escutar certa música... E inclementes,
retornaram as lembranças desse achaque,
já diluídas por meus muitos desenganos...

FLORES SIDERAIS I – 23 abril 2019

Meu rosto deserto se esconde na luz,
Que exposto seria em total escuridão,
Lamento impuro a explodir nessa ocasião,
Enquanto as marcas se aprofundam nessa cruz.

Decerto a sombra soturna me seduz,
Fraca armadura a escorrer no chão,
Meus sentimentos ocultando no porão,
Outra alma impura, soterrada em pus.

Porém na luz, percepção de estrela
Percorre a fronte e os traços do semblante,
A mágoa inteira a se empuxar avante,
Sem a lisura de uma face de donzela
Em sua pureza virginal de branca flor,
Seus traços fundos recobertos pela dor.

FLORES SIDERAIS II

Somente as flores a descer do pluriverso,
Enraizadas depois em tal martírio,
Que o dia claro acolheu no seu delírio,
Colar de gemas de solitário verso.

Durante o dia ou sob a luz converso
De uma lâmpada elétrica ou de círio,
Cobre-se o rosto em sua krosis de lírio, (*)
Parece nada encontrar-se ali disperso.
(*) Máscara do teatro grego.

Toda a tristeza só expandida no papel,
Toda a alegria presa em seu tumulto,
A luz marcando um sideral indulto;
Na comissura dos lábios doce fel,
Somente os olhos a refletir a luz diurna,
Porém no escuro a contemplar a alma soturna.

FLORES SIDERAIS III

Se te parece haver aqui contradição,
É que as coisas nunca são o que parecem;
São habitantes que no rosto desfalecem
E a face é minha e sem suplicação.

Os traços brancos de alvaiade são,
Sem revelaram nenhum pouco o que padecem;
Somente as luzes siderais nos descem,
Numa perfeita, total mistificação.

Há muita gente assim.  A face oculta
O quanto passa través seu sentimento
E de si própria toda a culpa indulta,
Enquanto, à noite, a máscara se tira,
Solta um suspiro de incauto pensamento
E pelo avesso o rosto então se vira...

LÁGRIMAS DA LUA I – 24 ABRIL 19

O Sol resseca até a alma com calor,
porém à noite, quando chora a Lua,
um orvalho benfazejo nos flutua,
em maquiagem aplicada com amor.

Esse banho argentino de palor
come a mágoa inerente à alma nua,
pingam estrelas e o vigor estua,
a renovar por igual o meu vigor.

E se ontem queixei-me do deserto
que nos traços de minha face se escondia
e me escondi numa só tira de luz,
hoje enfrento o solar de peito aberto
que cada ruga e tristeza mostraria,
no acetinado de tresloucada cruz.

LÁGRIMAS DA LUA II

Em mil carícias derrama-se uma estrela,
sou aquecido por caudas de cometas,
os meteoros em orgasmias secretas,
no desvendar das peles de donzela.

À luz da Lua, a alma inteira apela
para esvair-me nas mais ocultas gretas
e transformar-me em nada mais que setas
soltas em vão, sem apossar-me dela.

Selene ri e então me acaricia,
sem me mostrar, no fulcro das crateras,
que a mocidade se desfez em poeira
e que essa face argêntea que se via
é tal qual essa alegria que me geras
e que no instante a seguir vai-se ligeira.

LÁGRIMAS DA LUA III

Pensei em vão em conquistar a Lua,
fortalecido por um broquel do Sol;
a luz do olhar projetei em fino anzol
 e com pestanas modulei minha grua.

Meu corpo inteiro a alçar-se pela rua,
enquanto a alma espreitava o arrebol;
breve viria intrometido um girassol,
que mentiria para a margarida nua.

A Lua apenas contemplou-me, lá do alto,
de uma caverna brotou fogo de dragão;
lançou-me a lança  justo ao coração
esse santo georgiano em seu ressalto,
porém a Lua tão somente lamentou
e com suas lágrimas minha ilusão lavou.

Quinquilharias 1 – 25 abril 2019

Bebi somente as lágrimas da Lama,
Pensando em vão que a face dessa Lua
Por mim chorasse enquanto ali flutua
Debruçada nos lençóis de pobre cama.

Não degluti as lágrimas da dama,
Por mais que me apertasse, toda nua,
Só o seu corpo contra o meu estua,
Amor não deu, só falso amor proclama.

Queria mesmo era beber o seu sorriso;
Por que derramaria a sua tristeza?
E o sorriso me mostrou, delicadeza,
Porém vazio o santuário de seu siso;
Bebi somente a saliva de seu beijo,
Tornado em lama finda a noite de desejo.

quinquilharias 2

Bebi, contudo, as lágrimas do sonho;
A carne contra mim não lastimou
E minha volúpia de novo despertou,
Mas não pranteou em palpitar tristonho.

Por meu desejo deu-me prazer medonho:
Carne na carne tão somente se esfregou,
Porém suas lágrimas no cabide pendurou,
Sobre a cadeira depositou rosto risonho.

O rosto, assim, com que ela me beijou
Era uma mescla de dor e de harmonia;
Era um semblante gris que me vendia,
Era uma face que minha face desnudou
E pude apenas beber lágrimas de lama
Sobre os lençóis amarfanhados de sua cama.

quinquilharias 3

Não obstante, eram lágrimas sinceras,
Não me entregou suas lágrimas de areia,
Não hemorragiu-me as lágrimas da veia,
Não trouxe sangue e nem rugir de feras.

Suas lágrimas, no entretanto, foram meras
Gotas de riso que sobre a face asseia,
Gotas de musgo sobre a pedra feia,
Gotas de calma a tripudiar esferas.

Contudo as lágrimas, decerto, eu não queria,
Queria apenas o gotejar de seu sorriso,
Que me brindou num palpitar de guizo;
Foram só as lágrimas do riso que então via,
Lágrimas negras adquiridas num brechó;
Secou-me o rosto e então deixou-me só.

Quinquilharias 4

Claro não foram quaisquer lágrimas da Lua
E muito menos quentes lágrimas do Sol,
Talvez somente algumas lágrimas de anzol
Que para outra ocasião seriam a pua.

Foram lágrimas de pele e carne nua,
Não mais quentes que suor de girassol,
Lágrimas secas como palha de paiol,
Paralelepipedos ressecando pela rua.

Queria as lágrimas que pranteasse estrela,
Queria as lágrimas do carpir de meteoro,
Queria as lágrimas venenosas de um cometa.
Somente tive a doce lágrima... que gela
O coração em seu pranto de desdouro,
Somente as lágrimas que o fado mau secreta.

cimitarras de lama I – 26 abril 2019

que mais resta dizer que não foi dito?
mesmo este verso como plágio me parece
ou seja ao menos um salmodio de prece,
suplica seca do infeliz Judeu Maldito.

à lenda antiga agora ingênuo me concito,
que em um lugar do peito me padece
um similar, que de rugir nao cesse,
um semelhante de inaudível grito.

judeu desnudo de seu solidéu,
seja ele um yarmulke ou um kipah,
nudez alguma mais solitária há,
seu crânio oculto em esfarrapado véu,
como pode ele ingressar na sinagoga
e fora dela Jeová ouve o que roga?

cimitarras de lama II

e muçulmano desprovido de salate
como pode esfregar-se sobre o chão?
seu tapete é essencial para a oração,
seja ele um emir ou só um mascate.

sem as cinco salás então se abate,
cinco preces que perdem a ocasião;
nudez maior não há e sem perdão:
só com a masbaha seu dever não mate.

mesmo os cristãos adotaram tal rosário,
durante o épico tempo das cruzadas
(tais origens nos serão sempre negadas),
igual que o próprio pelo-sinal da cruz,
contrabalanço da saudação que então reluz,
antes que o crente defenda o seu fadário.

cimitarras da lua III

que é do católico sem o seu confessionario?
qualquer padre compartilha os seus pecados,
sejam eles reais ou imaginados:
reza suas preces e então ingressa no santuário.

será que o padre ainda lê o seu breviário?
antigamente, nunca seriam desleixados,
mas quem absolve estes modernos confessados
tem outros alvos para seu fadário...

já o protestante pensa e age diferente:
sem intermediário, mostra sua nudez
diretamente ao Criador que o fez;
nudez maior não há que a desse crente,
que só pode esperar algum perdão
se o próprio Cristo lhe der absolvição.

cimitarras de lama IV

e que dizer dos moinhos de oração,
esse mani que te leva até a potala,
a terra pura que a compaixão instala
diretamente ante um buddha de perdão?

que é do budista sem esta proteção?
maior nudez não há que a simples fala,
sem resplendor amplificada ou gala,
já desprovida da milenar repetição.

ai, como existe cimitarra espiritual
para cortar malignidade ou mal
e atrair benignidade e bem!
desnuda a alma seu dolente madrigal
e se apresenta perante Deus também
somente com tal barro que contém!

DIMENSÕES DAS SOMBRAS I – 27 ABRIL 2019

Minha esperança ressumbra desde o outono,
envolta impura no seu véu cinéreo;
já cremado foi o verso do saltério,
cremado o cílio do derradeiro sono;
de meu próprio receptáculo não sou dono,
minhalma habita em alto eremitério,
o próprio céu a encarar-me a sério,
o próprio canto imerso em seu destono.

Pouco me importa onde minha cinza caia,
que interesse eu tenho por meus ossos,
que de minhas carnes foram só caroços?

Perdida a carne em derradeira vaia,
melhor que seja em completa cremação
e que essas cinzas se esparjam pelo chão!

DIMENSÕES DAS SOMBRAS II

A sombra humana, de fato, é inexistente,
só um obstáculo a interromper a luz;
quando o Sol em nossas faces nos reluz,
fica o vácuo às nossas costas, mansamente,
só ocupado por esse sopro ineficiente
de nosso corpo que toda a sombra induz;
é a obstrução que a escuridão ali conduz,
por mais que a luz em nosso olhar seja potente.

Contudo as cinzas não são mais que um tênue véu,
talvez guardadas em urna ou em redoma
ou relicário, caso me chamem santo;

por mim, que cubram o chão qual solidéu,
acicatadas em derradeira coma
ou espalhadas tal qual flutuante manto!
           
DIMENSÕES DAS SOMBRAS III

Nada existe mais transiente que a sombreira
que se alarga e contrai a cada instante,
o menor gesto a denuncia inconstante,
tão transitória quanto é passageira;
quando apagada a luz de uma fogueira,
não há mais sombra sem brilho deslumbrante;
morrem as sombras com o corpo delirante,
talvez ocultas em dimensional esteira.

E como a sombra multidimensional
as nossas cinzas não dispõem de dimensão.
Alguém lamenta quando a sombra é ausente?

Por que então se lastimar com o festival
desse esparzir das cinzas pelo chão,
igual que um átrio que não se sacramente?

Cordas de Areia – 28 Abril 2019
Com cordas de areia envolvo minhalma
de sílica impura,
manchada de alúmen,
minhalma é feita de névoa quadrúmana,
em puro atavismo,
zoomórfico arcano,
robustos os calos,
nas plantas das mãos,
nas palmas dos pés,
enquanto percorro a amazônia de pedra.
Com cordas de areia envolvo o semblante,
de prata e bismuto,
titânio e vanádio,
de minhas pestanas fiz limpagarrafas,
em callistemon rubra,
oriunda lá de baixo,
da planta do mundo,
da palma australiana,
tal flor marsupial
limpa as narinas qual varetas de bambu.
Com cordas de areia a mente aguilhoo
por entre os neurônios
tungstênio e cádmio,
(meu nome é wolfrâmio, sem ser alemão)
cultivo saudades
nas pétalas do rosto,
degluto o sol posto,
já na madrugada
não resta mais nada
que satisfaça a fome de minha noite.
Com cordas de areia o espírito amarro,
sou pteranodonte,
guardião de minha fonte,
em que cultivo morangos e aniz,
meu fogo é alimento,
minha areia sustento,
meus bens de raiz
figuras de lama,
minhalma sem chama
tem cordas partidas que a vida me deu.
Com cordas de areia meu cérebro aleijo,
de pedra teu beijo,
de gás cada ensejo
em que pensei fundirmos pós de ouro,
usando a alguimia
em fera proeza,
mastigo o desdém,
estimulo o perdão,
cuspo meu coração,
que sobre o solo se desfaz em areia.
Com cordas de areia mastigo o astral,
meu próprio cascão
se faz cascarão
e invade esses centros que respiram almas,
em que tudo é areia
que a alma incendeia,
transmutada em cinza,
que a terra abençoa
até o subsolo,
pingando essa areia tal qual grãos de água.


Nenhum comentário:

Postar um comentário