domingo, 29 de setembro de 2019




NA MANSÃO  DO SOZINHO
William Lagos, 2-14/4/2019
ALL MY TROUBLES WILL BE GONE, JOHN WELLINGTON

NA MANSÃO DO SOZINHO (III) ... ... ... 2 ABRIL 2019
FULGOR ADAMANTINO (IV) ... ... ... 3 ABRIL 2019
SHIRYÔ (III) ... ... ... 4 ABRIL 2019
IKIRYÔ (VIII) ... ... ... 5 ABRIL 2019
RISOS (III) ... ... ... 6 ABRIL 2019
DITA DE CHUMBO (IV) ... ... ... 7 ABRIL 2019
ROSAS DA LUA (III) ... ... ... 8 ABRIL 2019
GRACEJOS (III) ... ... ... 9 ABRIL 2019
AZUL DE ABRIL (III) ... ... ... 10 ABRIL 2019
JUVENTUDE (III) ... ... ...11 ABRIL 2019
O RITUAL DA EVASÃO (III) ... ... ... 12 ABRIL 2019
ESPONJA DOS MUNDOS (III) ... ... ... 13 ABRIL 2019
ESTIGMATAS (III) ... ... ... 14 ABRIL 2019

NA MANSÃO DO SOZINHO I – 2 ABRIL 2019

Todo silêncio é pleno de perigos,
até mais que as eternas armadilhas
que palavras nos armam em suas trilhas,
em mil frases e verbos inimigos.

Todo silêncio se arma em mil estilhas,
tem dentes pontiagudos e castigos
e não podemos encontrar abrigos,
qual em palavras da mentira filhas.

Porque o silêncio é maciço e bem pesado
e nos engole sem benevolência,
sempre que cessam dos sons as tiranias.

E mais ainda, se do amor gerado,
surge o longo silêncio da insolência
que nos amarga a noite em brumas frias.

NA MANSÃO DO SOZINHO II

Nada mais dói que o ternamente silencioso,
perdão se pede sem saber porquê:
“Nada tenho a te perdoar”, mas no olhar se lê
a acusação do flamejante e do espumoso.

Nada mais só que o descarinho tenebroso,
quando é preciso interpretar o que se vê;
ela não fala e só se busca forma de
lançar aceno a tal ódio amoroso.

Algumas vezes dois ou três dias passam,
de outras feitas mais de uma semana
e nos deitamos juntos sobre a cama,

dois corpos mudos que o silêncio abraça,
até a quebra final do mau-humor,
sem se saber a razão desse fulgor!

NA MANSÃO DO SOZINHO III

Porém durou esse silêncio pontiagudo
qual um rancor, qual mágoa, qual ciúme,
encaminhou tal caravana de azedume,
nada nos conta, o silêncio disse tudo.

Então no próprio cérebro me iludo,
essa mansão solitária sobre o cume
da espinha e do pescoço, um firme gume,
a palpitar em igual consolo mudo.

Nada mais triste que a solidão a dois,
enquanto mal se sabe qual depois
alvejará nossa alma no amanhã;

  permanece a mente em sua mansão,
mal e mal a escutar seu coração,
enquanto ferve essa mágoa temporã.

FULGOR ADAMANTINO I – 3 ABR 19

Eu não diria ter desvendado a mina
em que reluzem as jóias dos prazeres,
seus diamantes não são os meus haveres,
mas o insustentável fulgor que me fascina;
eu não atei esmeraldas em minha crina,
safiras e rubis só para os veres,
topázios entremeados de esqueceres,
nem ametista que presida a nossa sina.

A mina que eu achei requer trabalho,
a peneirar da areia grãos de ouro,
esquadrinhados por mercúrio venenoso;
a mina que encontrei é a dor que espalho
aos quatro ventos, turbilhão de agouro,
ainda arrolhada como um gênio preguiçoso.

FULGOR ADAMANTINO II

Contudo a mina achei nessa caverna
em que meu cérebro destramente arranje
pensamentos agudos como alfange,
enquanto vive em atividade eterna;
no coração a se agitar Hidra de Lerna;
com mil tições o julgamento tange
e toda a mágoa perenal abrange,
só da memória a permanência aderna.

De que me servem jóias ou colares,
os brincos, os anéis, até as pulseiras,
se a solidão tem mãos hospitaleiras
e o desengano fulgores singulares?
Por que bordar fragor em alamares ,
enquanto dormem as dores derradeiras?

FULGOR ADAMANTINO III

Também a mina achei noutra caverna
em que o cérebro se apaga simplesmente,
todo e qualquer raciocínio descontente
que não se aplique ao garimpar da fonte eterna;
também achei a mina na luzerna
em que a mente se submerge totalmente,
dupla janela para um mundo transparente,
hipnagógico poder, rocha superna...

Também achei a mina em ligação
com a mente conducente a meu martírio,
em voluntário aceitar de meu delírio;
e ainda achei a mina em brotação,
rubis coral a emparedar o coração,
em sua fragrância de incenso em brando círio.

FULGOR ADAMANTINO IV

Porem a mina do fulgor adamantino
não é algo que julgar possa ser meu;
a fada da caverna me venceu
e só de empréstimo tenho meu destino;
e nem sequer a dor do sol a pino
essa dona da caverna ainda me deu.
Só o mais breve momento concedeu,
após a queima paulatina de meu tino.

Nem a vela da luzerna permanece:
abre seus olhos e os fecha quando quer,
sua mente dominante nem sequer
tive de empréstimo por minha vazia prece,
nesse controle permanente da mulher
que nos ama por momento e logo esquece.
SHIRYÔ I – 4 ABRIL 2019

Fantasmas brandos de minhas fantasias,
só enobrecidos por fantasmagorias,
tentaculares hidras de magias,
guias lançando través ao meu redor.

Suas lianas me arrebatam com calor
e não me lanço empós outro fulgor,
estou contigo nesse arcano resplendor,
nele eu habito ao longo de meus dias;
com fantasmas alheios, por acaso,
os meus espectros próprios comunicam,
almas penadas no mesmo turbilhão.

Só volutas a brotar do mesmo vaso,
um demônio da alma identificam
e o abraçam em incauta exultação.

SHIRYÕ II

Fantasmagórico é todo sentimento,
que jamais se extingue totalmente,
mesmo quando não se acha mais presente,
no coração que originou seu mandamento.

Fantasmagórico é todo o julgamento:
nos iludimos de tê-lo em nós assente,
mas se evola qual a névoa incandescente
e se lança pelo ar no próprio alento.
Sentimentos e emoções, fúria e desdém
não se limitam às membranas de um aquém,
nem se expandem para fora lentamente.

Tão mais potentes quanto mais forem nutridos,
são em vão por raciocínios  perseguidos,
até fundir-se à noosfera onipresente. (*)
(*) A esfera de pensamentos humanos que envolve  a Terra.

SHIRYÔ III

Somos assim eternamente responsáveis
por esses seres inconsúteis que lançamos;
consciente ou inconscientemente provocamos
alterações a fervilhar em imponderáveis.

Alguns se mesclam a outros mais notáveis,
outros resistem, mais heróicos em afanos,
mas não somos de tais fluências soberanos:
saem de nós, mas se fazem inconquistáveis;
não obstante, as minhas hidras coalesço,
presas em versos firmes de grilhões
e raramente permito que me fujam.

E nos ergástulos da mente compadeço
e escuto as vozes desses turbilhões,
na eterna doma de leões conquanto rujam.

IKIRYÔ (Fantasma de Vivo) I – 5 ABRIL 2019

FANTASMAS REVOLTADOS EU PERCEBO
A ME ESPREITAR DOS OLHOS DAS VISITAS,
CACOS DE ESPELHO DAS ALMAS AFLITAS,
MAS MINHAS PRÓPRIAS DEFESAS EU CONCEBO;
DA PRÓPRIA ALMA SACRO ELIXIR EU BEBO,
MEU BROQUEL E ARMADURA CONTRA AS DITAS
QUE ME PERSEGUEM EM AMARGAS FITAS,
EM NAUSEABUNDOS TONS DE MOFO E SEBO.

COTA DE MALHA TRAGO EM TORNO A MIM,
MANTO AZULADO OU VIOLÁCEO EM OCASIÃO,
QUE ME PROTEGE COMO CARTILAGEM,
DESDE A CABEÇA ATÉ OS PÉS, ASSIM,
E AS CRIATURAS ME MORDEM SÓ EM VÃO,
SEM CONSEGUIR ULTRAPASSAR-ME A CAMUFLAGEM.

IKIRIÔ II

PORÉM NÃO BASTA PARA MINHA DEFESA
EM CERTAS OCASIÕES, REVESTIMENTO;
OS FOGOS-FÁTUOS VEJO SEM ASSENTO,
A AGUILHOAR-ME, COM FOME DE CRUZAR
E ANTES QUE A FÍMBRIA DA MALHA SEJA PRESA
DESSE APETITE DE FEROZ SINISTRAMENTO,
CRIO UM ALFANGE DAS PÁLPEBRAS DO VENTO,
A PERCORRER-LHE A SUPERFÍCIE COM PRESTEZA.

E ONDE PASSA A CIMITARRA CIRCULAR
VAI OS FANTASMAS VIVOS AFASTAR,
CORTA AS GAVINHAS DE SUA PRETENSÃO
E PARA OS ARES VOLTAM, MUTILADOS,
BUSCAM POR ALVOS MENOS ATILADOS,
QUE INFLUENCIAR SEM ESFORÇO PODERÃO.

IKIRYÔ III

O PIOR COM ESSA LAIVA DE FANTASMAS,
ASSIM BROTADOS DE ALGUÉM QUE NAO MORREU,
É QUE O AUTOR MAL SABE O QUE PERDEU,
PARTE DA ALMA CONVERTIDA EM TAIS MIASMAS.
SUAS AMARGURAS, EM GERAL, FEITAS EM ASMAS,
RESFOLEGANDO NO SILÊNCIO; QUE NOS DEU
ESSES FIAPOS DE ALMA NUNCA PERCEBEU,
SOBRE O MUNDO A DERRAMAR EM TRISTES PASMAS.

PORQUE SOFRE DE UM REAL RESSENTIMENTO,
MEDO E RANCOR, TRISTEZA E FRUSTRAÇÃO
E ESSE FONTE SE RENOVA PERMANENTE,
LANÇANDO AO MUNDO OS FILHOS DO TORMENTO,
DESTITUÍDOS DE MIOCÁRDIO E CORAÇÃO,
COMO OS BORRIFOS DE UM PERFUME IMPERTINENTE.

IKIRYÔ IV

SEM QUALQUER DÚVIDA, FORA TOMAM VIDA,
POR MAIS QUE SEJA DE UM TOM CREPUSCULAR;
FICAM SOLTOS POR AÍ, NESSE ADEJAR,
À ESPERA DE LOCANDA E DE GUARIDA;
PENSA BEM SE NÃO SENTISTE DESMEDIDA
SENSAÇÃO DE MAL-ESTAR A TE ABALAR,
INEXPLICÁVEL, SÓ ESTANDO A CONVERSAR
COM CERTO AMIGO DE EXPRESSÃO SOFRIDA.

NÃO QUE TE QUEIRA REALMENTE MOLESTAR,
TALVEZ SÓ BUSQUE DA VIDA SE QUEIXAR
OU POR SUA FALTA DE SORTE, SIMPATIA;
E CONSIDERAS, COMPARADAS EXPERIÊNCIAS,
NÃO TER REAL RAZÃO NESSAS DOLÊNCIAS:
POR QUE SE QUEIXA SE SEMPRE A VIDA LHE SORRIA?

IKIRIÔ V

ENQUANTO ESTÁS A SEU LADO, CONSIDERAS:
TEM BOA SAÚDE, POSSUI UM BOM EMPREGO,
DESDE SEU BERÇO DO CONFORTO O REGO,
MELHOR QUE TU, QUE NÃO TE DEBLATERAS;
HOUVE PERCALÇOS E SUCESSOS NOUTRAS ERAS,
PARA UMA OPORTUNIDADE FOSTE CEGO,
EM OUTRAS TANTAS, BOM SUCESSO E APEGO,
MAS COMBATESTE DO SOCIAL AS FERAS.

ISSO QUE TENS NÃO GANHASTE DE PRESENTE,
NÃO FOI HERANÇA, NEM PRODIGALIDADE...
MAS ESSE CONHECIDO, EM REALIDADE,
SEMPRE TEVE MUITO MAIS DO QUE CONSENTE...
POR QUE ENTÃO RECLAMA, TÃO POTENTE,
QUAL A RAZÃO POR DETRÁS DESSA IMPIEDADE?

IKIRYÔ VI

TALVEZ APENAS NÃO FORJASSE UMA ARMADURA
E SE DEIXASSE INVADIR POR PENSAMENTO
ORIUNDO DE ALHEIO JULGAMENTO,
PARA NUTRIR COM FALSIDADE IMPURA;
EVENTUALMENTE, EXISTE UMA CONJURA
DA PARTE DE OUTROS, QUE POR RESSENTIMENTO
ATROZ PROJETAM SEU DESCONTENTAMENTO,
TUA ALEGRIA A CORTAR NAVALHA DURA.

CONTUDO, EVITA TORNAR-TE SEU RELÉ,
CORTA A ENTRADA DESSE INJUSTO TURBILHÃO
E NÃO PERMITE DENTRO EM TI FAZEREM SÉ;
E AO MESMO TEMPO, CONTROLA O IMPONDERÁVEL
DE TUA PRÓPRIA REVOLTA E INCLINAÇÃO,
QUE A AURA A TEU REDOR SEJA SAUDÁVEL!

IKIRYÔ VII

NÃO ACREDITES, POR UM MOMENTO APENAS,
QUE ISSO POSSA SER TAREFA FÁCIL;
MUITO MAIS SIMPLES CONTER EMOÇÃO GRÁCIL
QUE OS CIÚMES E INVEJAS QUE CONDENAS,
COM OS QUAIS A PRÓPRIA ALMA TE ENVENENAS;
TOMA CONSCIÊNCIA DESSA MATÉRIA FÍSSIL
E NÃO PERMITE A PROJEÇÃO DE UM MÍSSIL
CONTRA ESSE MUNDO DE QUE PERCORRES CENAS.

E AO MESMO TEMPO, A TEU REDOR, VIGIA,
QUE “DEMÔNIO CONSTANTE ALI TE ESPREITA,
COMO UM LEÃO QUE RUGE EM TOM FAMINTO,
BUSCA TUA ALMA DEVORAR UM DIA”,
NOS DISSE A ESCRITURA CERTA FEITA.
ISTO NÃO É COISA MINHA QUE TE PINTO.

IKIRYÔ VIII

MAS O DEMÔNIO PODEROSO É SÓ DESCULPA,
QUE ASSIM TE JUSTIFICA O MAL QUE FAZES;
UM DUALISMO RELIGIOSO TRAZES,
O TEU CONSOLO, TEU EXPULSOR DE CULPA;
A EXISTÊNCIA DOS FANTASMAS NÃO TE INDULTA
QUE PULULAM A TEU REDOR EM TANTAS FASES,
E DE MODISMOS CRIAM NOVAS BASES,
FÁCIL ACEITAM, SEM PERCEBER A MULTA.

ASSIM AS MIMES QUE HOJE SE APREGOAM,
TÃO FACILMENTE CADA UM A INFLUENCIAR,
TORNADO ESCRAVO DE OBLONGO CELULAR!
SEREI CASSANDRA PREGANDO NO DESERTO,
MAS AO REDOR MANTENHO O OLHAR ABERTO
E DESTE CORAÇÃO SÓ VERSOS VOAM!

RISOS 1 – 6 ABRIL 2019

A melhor prova de que existe evolução
é essa que nós mesmos provocamos,
quando venenos contra pragas irradiamos
e provocamos assim sua mutação.

Noa hospitais clara exemplificação,
que as bactérias resistentes nós criamos;
na natureza jamais as encontramos,
produto claro de nossa própria gestação.

Natura non facit saltos – se afirmava,
que a natureza não dá saltos – ingenuidade,
talvez centrada na romanicidade,
mas que a ciência há muito contrariava.
E nem se trata de imitação divina,
só o desrespeito e uma blastêmia pequenina.

RISOS 2

Tanto se fala que espécies destruímos,
mas quem baratas conseguiu eliminar?
Quem os mosquitos pôde exterminar?
Sequer os ratos conter nós conseguimos.

Com pesticidas, algumas pragas vimos
serem mantidas, sem mais aumentar,
mas ali estão descendentes a espreitar,
muito mais fortes que os pais que perseguimos.

Isso de espécies estarem em extinção,
é bem verdade, mas é coisa natural:
já seis ou sete vezes ocorreu
uma Grande Extinção, quando, afinal,
a nossa espécie sequer ainda nasceu,
mas que depois permitiu nossa expansão.

RISOS 3

Diziam os antigos que os deuses riam
do ser humano e suas pobres pretensões,
com mero gesto a destruir as suas mansões,
por mais que os homens contra tais se aliam.

Mas são as leis naturais que nos desviam
ao cumprimento de mil ordenações
e justamente contra tais convicções
em que nossas civilizações se fiam.

E quem nos diz que não seja a Natureza,
pretendendo apressar as mutações,
que nos emprega como massa de manobra?
A evolução a conduzir com mais presteza,
através das mais recentes gerações,
cujo progresso tão alto preço cobra...

DITA DE CHUMBO 1 – 7 ABRIL 2019

Como quem rompe, às pressas, selos mágicos,
o alquimista desvenda os incunábulos,
com capricho a redigir seus alfarrábios,
sem um controle de seus efeitos trágicos.

Toda alquimia é uma experiência a repetir,
mas apenas a mudar a hora em que estua,
certa magia a se fazer à luz da Lua,
outro elixir na luz do Sol a produzir.

Sempre que uma experiência lhes falhava,
a sua hora alteravam simplesmente
e repetiam a poção e o encantamento,
com a certeza de que o momento melhorava
e o resultado redundaria diferente,
para o sucesso de seu empreendimento.

DITA DE CHUMBO 2

Naturalmente, os astros dominavam
em sua escolha da data propicial,
feitos horóscopos de forma peremptual,
os ascendentes seu dia demarcavam.

Os planetas assim se conjuntavam,
na influência então mais essencial,
para a experiência transcorrer mais natural
e até as palavras às estrelas invocavam...

Ainda imagino se, de fato, acreditavam
esses filósofos na zodiacal ação,
ou só a impingiam para a credulidade
daqueles que seus trabalhos financiavam...
Sempre achei uma coisa sem razão
que estrelas dessem importância à humanidade!

DITA DE CHUMBO 3

Hoje a ciência tomou caminho oposto:
não importa a hora, porém o ingrediente;
as tentativas se repetem, com frequente
aplicação, que satisfaça o gosto.

De modo idêntico, se manipula o mosto,
para obtenção de um vinho diferente,
com sabor ou buquê bem mais potente,
pouco importa se de dia ou se ao sol posto.

Havia a busca da Pedra Filosofal,
para a transmutação do chumbo em ouro:
(teriam pista do que era a radiação?)
E o Elixir da Longa vida, um celestial
dote encarado como um grão tesouro
e mais o Filtro de Amor, em exaltação!

DITA DE CHUMBO 4

Também eu selos mágicos rompi,
mais de uma vez, em curta busca vã:
busquei da vida a chuva temporã
e só a chuva serodia recebi.

Nenhuma Pedra Filosofial eu persegui,
mas o Elixir da Longa Vida num afã,
mais o Filtro do Amor, tarefa insã,
e contentei-me com as tarefas que escolhi

ou então que a vida para mim cedeu
e que à minha dita de chumbo me obrigou:
nem alquimia nem horóscopo adotei;
com meu labor conquistei o quanto é meu
e o coração bem facilmente o bem doou,
mas até quando aqui estou não saberei.

ROSAS DA LUA 1 – 8 ABR 19
No vidrilho de meus sonhos vive a rosa,
Numa redoma de cristal estilhaçado,
Mais uma rosa de papel picado
Que um vegetal de olorância ponderosa,
Que não chega a se tornar pundonorosa,
Mesmo na ampola cristalina do intocado,
Está rachada, mas nenhum inseto alado
Penetra os interstícios de sua prosa.
Ela só vive porque surge no crepúsculo
Um raio transparente em timidez
E cada fenda com sua turva maciez
Recobre quais as letras de um opúsculo
E vêm as brisas discordando com fragor,
Enquanto a rosa retoma o seu frescor.
ROSAS DA LUA 2
Mas o frescor da rosa é temporário:
Dura somente enquanto argênteos dedos
A tocarem, dedilhando os seus segredos,
Sobreviver, no entanto, é secundário.
Enquanto a Lua sussurra o seu breviário
O encantamento assume traços ledos,
Cada pétala a afrontar seus magros medos,
Reveste a sépala da prata do sudário,
Essa luz que do Sol ela roubou
E que busca partilhar prodigamente,
Talvez um meio de compensar seu furto;
Mas o crepúsculo vai sumindo e já passou
O breve ângulo de seu tempo curto:
Vai-se o luar e a rosa miro, deprimente.
ROSAS DA LUA  3
De minha poltrona contemplo sua passagem.
A minha rosa na redoma não brotou,
Sua vida temporária se esgotou,
O luar só prata-íris na paisagem,
Faz resplender os vidrilhos da viragem,
Mil lantejoulas em que a cor até sonhou,
Por um momento que em sol se mascarou,
Rosas de sol passeando de carruagem,
Porém minha rosa não é uma sempreviva,
Ela fenece e suas pétalas depõe.
No subsolo pela ampola constrangido
Restam somente, na mesma rodaviva,
Um fragmento de paprl que me repõe
O sonho velho de um poema transmitido.

GRACEJOS I – 9 ABRIL 19

Todas as coisas possuem a sua linguagem,
basta escutar seus pequenos estalidos,
só interpretados enquanto transmitidos
para as paredes, em luminosa aragem,
em sua penumbra de vórtice que espargem,
sem dirigir a mim os seus bramidos,
quer sejam risos, quiçá bastos gemidos,
no vácuo sólido de um saco de aniagem.

Eu só me ponho a escutar os balbucios,
sustendo de todo respirar o som:
devo encará-las em krosis de teatro, (*)
entre a aniagem e o sorriso os breves fios,
titereteiro a executar seu dom,
de meus pulmões a exalação do nátrio.
(*) Máscara dupla, da comédia e da tragédia.

GRACEJOS II

Penso somente ser o titereteiro,
que as coisas ao redor não são fantoches;
de certo modo, transmitem-se deboches
pela tola pretensão desse altaneiro:
pensa que galga as paredes do terreiro,
escondido na sombra dos remoches,
como se as réstias de luz lhe fossem coches
e as rédeas fossem do tonto aventureiro,

que até pensa poder interpretar
essas madeiras em confabulações,
esses metais em alegres distorções
e nem consegue o próprio sono dominar,
que vai escorrendo, a fim de conspirar
com coisas vivas em krosis de ilusões.

GRACEJOS III

Pois que maior ironia pode haver
que a zombaria do que não existe?
Cada estalo em gargalhada se consiste,
imóvel sempre, sem um bemquerer.
Da inermidade cumprem o dever,
que no próprio lugar sempre os aviste,
quando ingressar, a minha lança em riste,
para o bulício das coisas perceber.

Mas a linguagem está ali, baça e difusa,
sem intenção de se comunicar
com o velho servo que vem-nas espanar
e em casquinar a solidão me acusa,
vasto silêncio feito em prateleira,
onde a saudade recolhe a mansa poeira.

azul de abril I – 10 de abril de 2019
(sobre imagens de valúsia saldanha fortes)

quando saio às calçadas, nuvens descem
para enroscar-se entre meus cabelos,
gotas de poeira a umedecer-me os selos,
no filatélico ardor com que me aquecem.

mas as farpas do azul tampouco esquecem
e vêm plantar-se, ariscas, em desvelos,
com um tempero que sabe a cogumelos,
nessa revolta tranquila que não cessem.

ou são os meus cabelos que até sobem
a copular com algodoados filamentos
ou com a lã negra mais enfarruscada

ou são as veias do pescoço que se dobrem
como sinos de mosto e de frumentos, (*)
a jugular a me deixar mais azulada.
(*) Massa de pão.

azul de abril II

a meu redor, nas calçadas de algodão,
caminham inquietas como mil quimeras,
brotam algumas de passadas eras,
outras nascidas de meu próprio coração,

as feias hidras que tomo pela mão
e as conduzo ao longo das crateras,
guardando cinzas ancestrais de feras,
que me formam cada rim, cada pulmão.

olho ao redor, sem encontrar mais nada
na névoa pura destas invenções,
na maciez dos ladrilhos da calçada.

mas quando piso, sinto algo quebrar:
o imponderável de minhas mutações,
um breve sonho que esmaguei ao calcanhar.

azul de abril III

de meus próprios confins sou exalado
na insensatez construída de abandono,
durante a marcha num pintalgar de sono,
um devaneio no caminho abandonado.

a luz diuturna me carrega em seu pecado,
cinza os vitrais de que pensei ser dono,
essa ponte de cristais em meu abono,
que de meu trem interpreto avermelhado.

vivo esse sangue de luminosidade
que de mim mesmo escorre para mim,
mel e leite a abranger cada confim,

ainda perdido na observancidade,
quando a secura já controla a umidade
e só consigo começar dentro do fim.

JUVENTUDE I – 11 abr 19

Na origem de minha voz vejo abotoado
o ritual imaterial da infância morta,
o duplo seio que serviu-me de retorta,
na alquimia de um filtro desvaziado.

Houve um tempo de falar descontrolado,
um balbuciar, terminologia mais torta,
a timidez que a pouco e pouco se recorta,
mesmo a ameaça de um tartamudeado,
minha dicção aos poucos se abotoando,
até o clangor de latão da cornamusa,
até a clara convicção de uma oratória.

Embora em mim se fosse derramando
essa impotência extensa e sem escusa,
que me levou e me impediu a glória.

JUVENTUDE II

Foram as coisas que me hipnotizaram
durante o sono, em minha inermidade,
a me incutiram senso de vitalidade,
na proporção com que me mesmerizaram.

Minha linguagem os livros me ensinaram
(até que ponto são coisas, na verdade?
Haverá um quarto reino, esse “livral”?)
e a tanto termo e palavra me atiçaram,
enqnauto a carne era tenra sob a mente
e o sistema muscular ainda impotente,
foram as frases que ensinaram-me a voar.

Que com letras pairasse... e nem meu paladar
foi transmitido por algum gato, certamente,
mas por talheres em meu prato a utilizar.

JUVENTUDE III

Esse sentido das coisas foi interno,
meu labirinto doméstico a ensinar,
que conservasse a presença no meu lar,
para manter sobre elas o olhar terno.

Não foi o senso das portaladas de um inverno,
nem das janelas do verão a escancarar,
não veio a rua insistente a conclamar,
nem austera egrégora em falso eterno,
e assim fiquei emparedado além de tudo,
sem jamais realmente me evadir,
parte integrante me tornei de meu estudo.

Nesse cilindro de cores envolvente,
a juventude inteira a construir
num diálogo com meu próprio pensamento.

O RITUAL DA EVASÃO I – 12 ABRIL 2019

Para evadir-se, é preciso um protocolo,
não basta apenas se alcançar a porta,
nem de assombro se ferver uma retorta,
para depois escorrer-se pelo solo.

É necessário esperança ter ao colo,
um projeto de que algo nos conforta,
pois ficar além de tudo não importa,
se não tens um lugar aonde pô-lo.

O “além de tudo” é grosso e desconforme,
muito mais bárbaro que o nosso aquém,
com mil tesouros a acenar, porém

e as armadilhas desse destino informe,
busca do além de um destino agudo
que tudo dá, mas nos pode tirar tudo.

O RITUAL DA EVASÃO II

Percebo o lago a cintilar perto de mim,
lago de bronze informe em que eu reflito,
tal qual espelho absorto do infinito
e nele posso mergulhar-me, assim.

O meu reflexo é transparente, enfim,
é abaulado e concêntrico num grito,
que a água é calma é um perigoso mito,
muito mais vária que um trajo de arlequim.

Mas se no lago penetro por minha vez,
o meu reflexo desfaço totalmente,
parte de mim a dançar no onipresente,

parte de mim a desfazer-se em grês,
parte de mim em enrugado permanente,
parte de mim nesse desprezo em que me vês.

O RITUAL DA EVASÃO III

Mas me desfaço na evasão do lago,
é meu parente, tem meu sobrenome,
o seu azeite o meu temor consome,
tal qual voltasse, alfim, para meu pago.

Então me alargo como arcano mago,
sou o lago inteiro que minha carne come,
sou a água interna que meu peito dome,
sou a leve brisa que compõe o meu afago.

Foram as motivações feitas entranhas,
o meu ritmo cardíaco em musical,
sou sístole e diástole num total

e cada folha verde me percorre
e me permite percepções estranhas,
enquanto apenas o lodo me socorre.

ESPONJA DOS MUNDOS I – 13 ABR 19
(Título recebido de Valúsia)

Em lantejoula sobre o terciopelo,
Meu ventre influenciado pela mente
Expande brilho sonhador benevolente,
Sombra com brilho tal que custo a crê-lo.
Algumas vezes, temo até perdê-lo,
Meu brilho penumbroso e incontinente,
Dentro de si a adormecer frequente
Nos capilares qeu alimentam meu cabelo.

Assim digiro dentro de meu ventre
Os pensamentos que lhe vêm do cerebral,
Que o cerebelo, sem ser intelectual
Em sua função bem precisa que se adentre
Nos meus sistemas sem independência,
Calculado o ritmar de sua frequência.

ESPONJA DO MUNDO II

Contudo, isso é só a preparação,
Que não se esvaia a minha identidade,
Pois o universo eu busco e, na verdade,
Ele me busca sem qualquer contradição.
O quanto vejo a meu redor, minha palpação,
O que escuto ou que farejo sem vontade,
O quanto ouço sem ter mediunidade,
Não são mais do que alarmes da invasão.

Mas absorvo o tombar de cada folha,
Ouço ao longe os cantos do condor
Cheiro no pântano sua mimosa flor,
Toco a casca rugosa que me antolha
E beijo os lábios doces de um amor
E nela me derramo por minha escolha.

ESPONJA DOS MUNDOS III

Mas vou cheirar a belonave das estrelas,
Lambendo o sol nas costas de minha mão,
Mordendo a lua em sua transpiração,
Soprar cometas tais que caravelas;
Caem os astros de suas mil janelas,
As supernovas em fatal conflagração,
Estrelas quasar interpretam a ilusão,
As mil galáxias a contemplar-se belas.

Tudo absorvo em cromóforos e poros,
Atravessando os forâmens da caveira,
Cada meninge a perfurar certeira,
Maciça esponja em tal ânsia voraz,
Que até dos anjos deglute os santos coros,
Na salmodia que toda a luz me traz.

ESTIGMATAS I – 14 ABR 2019

sou tudo e realmente não sou nada,
pensando mesmo, nem eu mesmo sou,
só por instante breve aqui estou,
logo serei somente gota derramada,
pois faço parte da sansara desalmada,
que pela vastidão das eras me levou,
a vida o sonho às vezes recordou,
falso nirvana de esperança alçada,
mas que nunca nesta vida atingirei,
sou marcado pela mangra do destino,
tenho deveres aqui para cumprir,
estigmata aqui sempre serei,
rouco badalo de perpétuo sino,
serei ovelha nas angústias do balir.

ESTIGMATAS II

mas que importância pode ter essa função?
o que interessa é meu estar consciente
ou que seja só mensagem indolente,
entre dois vastos fulgores ligação;
isso que importa é que não desistirão
as galáxias de seu giro permanente,
alguma estrela implodindo de repente,
sabe-se lá quais ainda existirão?
mas o que vale é que há contemplação
de estrelas mortas em distantes ataúdes,
outras estrelas a nascer em seu lugar,
não que cumpra meu estigma de função,
sejam meus dias fáceis ou mais rudes,
só o que importa é que as possa contemplar.

ESTIGMATAS III

o universo inteiro me observa,
não me parece com maior curiosidade
que a um detalhe da breve opacidade,
em uma colcha de retalhos que conserva
esse desenho de humanidade serva;
a um só tempo, sou total fraternidade
em cada instante de individualidade,
mancha de luz que por instante ferva.
e se o universo qualquer sabedoria
em mim goteja, é mais por puro acaso,
que do mundo sou tão só periferia,
mas nem por isso renego minha função,
talvez eu corra a cortina de um ocaso,
talvez dilúculo na mais breve aparição.

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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