GOROVINHAS I (2009)
(Versão Original)
(Dale Arden, a companheira de Flash Gordon)
Podei meu coração, cortado rente,
não cresce nada mais em minha aorta:
empreguei os capilares qual retorta
e os destilei, em vinho diferente.
Quero reter o tempo e fecho os olhos,
cobertos de chircal e de azevém:
a salamanca me amaldiçoou também
à vã procura do ouro dos piratas.
Só posso acompanhar os meus antolhos
e me afundar na sombra dessas matas.
Vivo iludido em encerrar o vento
no canto de minha sala, ele e o tempo,
sem precisar sequer de passatempo
para cumprir deveres esquecidos.
Mas o vento penetra nas paredes
e sobre mim é que lança fortes redes,
Desencilhando assim meu pensamento,
laçando em troca versos malferidos,
no entrevero da ressaca com o outrora...
Comigo mesmo as lutas trabalhosas,
minutos a prender, em fios de rosas,
para empregar em meu serviço a aurora.
GOROVINHAS II
Eu vivo assim, admirando a gente,
mas sem buscar alheia admiração:
sou descrente demais dessa canção:
já me basta ser aceito, simplesmente,
tal qual eu sou, meus traços conservando,
preservados em fel, em mel de amoras,
pendurado ao ponteiro das mil horas,
de que excogitei fados incríveis,
enquanto só, apenas perlustrando
a multidão das coisas impossíveis.
Somente pude tornar-me indiferente
a essa indiferença em mim tornada,
não me deseja a mulher que foi amada,
por mais que me acompanhe diariamente.
Desse modo a alma inteira fui podar,
usando antiga tesoura de esquilar!
Podado o coração, podei neurônios,
pus em garrafas de plástico e, na praça,
ninguém comprou-me as mudas dos axônios...
Não se expandiu a saga no infinito
e a venda de neurônios, que pirraça!
tornou-se em saquitel de amor aflito...
GOROVINHAS III
Tenho pensado em versos descabidos
com lâmina escrever, de aço e ferro,
mas as palavras se ameigam, só encerro
o testamento de meus dias vencidos.
Porque lavei minha lança em goma-laca
e as fibras do cristal mais pontiagudo
serviram de morrião no meu estudo
dessas almas imperfeitas de mulher;
talhado pela chuva, eu viro faca,
sou lâmina encerrada em malmequer.
Na fúria desse azul serpentiforme,
coloquei perante os olhos para-brisas,
para atacar o vento e as monalisas,
e em tudo para ti fui multiforme,
nesse soprar dos cílios para fora
a preparar-me para o teu agora.
Abri uma fístula na veia a canivete
e me acerquei de ti, chamei de novo,
e construímos um barco de confete.
E caso entrares no meu barco do absurdo,
te levarei para bem longe desse povo
que não escuta nada e me acha surdo.
GOROVINHAS IV
Escrever
versos é pôr no quaradouro
a alma
enxovalhada, trema e til,
para ser
embranquecida pelo anil,
nas ripas
finas desse paradouro...
E como é
estranho que essa roda azul,
misturada a
sabão e a malefícios,
consiga diluir
antigos vícios,
essa mortalha
viva do passado,
transformada
em sentença de curul,
amarrotada com
o resto do lavado!
Já foi levada
no alto da cabeça
de muitas
lavadeiras sem beleza,
purificada por
águas de tristeza,
muito mais que
por prece que se esqueça.
Alma
entrouxada mais anil requer
do que a força
braçal de uma mulher!
Assim invoco
os duendes tutelares,
espíritos
geniais, quatro elementos,
para que
venham trazer ao lavadouro
muito mais do
que pecados aos milhares:
lavem fracassos
pelos quatro ventos,
dourando a
alma, tal qual no nascedouro!
GOROVINHAS V
Se alguém dissesse que a acharia dobradeira
disposta a acariciar as minhas camisas
pelas golas e punhos suas mãos lisas,
princesa antiga de genealogia certeira;
se percebesse que algum dia escolheria
prestar a mim a singeleza do favor,
por pura e simples dedicação de amor
ou pela incompetência da empregada,
mui certamente eu me surpreenderia
com tal ação de seu carinho impregnada.
Pois minha queixa dessa nova é puro fato,
a anterior era bem mais eficiente;
mas sua atitude foi sempre diferente,
amor mostrando em lúbrico recato!...
E desse modo, senti bastante gratidão
por tão comum e vulgar demonstração.
Não que eu espere que à máquina de lavar
vá conduzir ainda a roupa imunda;
menos ainda que em balde a vá esfregar...
Mas me comove tal domesticidade
de quem sempre mostrou ira profunda
à dominância da masculinidade...
GOROVINHAS VI
Dizem que Édipo, demandando a Tebas,
foi palmilhando uma estrada de destroços;
a cada canto caveiras e mais ossos,
que mais tétrica paisagem não concebas.
Contudo, ele era jovem e altaneiroso
e como herói dos tempos mais antigos,
a glória ia buscar entre os perigos;
elmo em penacho, couraça de um hoplita:
queria honra seu peito corajoso,
o receio a descurar que o peito agita.
E assim andou, até topar com a esfinge,
com seu rosto de mulher e feições frias,
um corpo de leão, em que asas vias...
E um baque então seu coração atinge!...
Como vencer o monstro com sua lança
ou com a espada que o peito nem lhe alcança?
Lá estava ela, pousada entre as ossadas,
parecendo até de pedra, toda imóvel...
Pensou porém nas almas desgraçadas
que haviam deixado ali seus esqueletos...
Porém, recuar...? Seria
um ato ignóbil!
Motivações de heróis não são secretas...
GOROVINHAS VII
E assim ele
avançou, de dardo em riste,
costelas secas
a lhe estalarem sob os pés,
até chegar bem
perto dos sopés
em que a
esfinge, sem se mover, persiste.
Seus olhos
vagos eram de pedra feitos;
cresciam-lhe
líquens ao redor das asas;
o limo e a
lama cobriam-lhe as embasas...
Baixou o dardo
então, sem ter mais medo,
mas a esfinge
só guardava seus direitos
e nesse
instante, revela seu segredo!...
Um ruído de
torrente e mil calhaus,
uns contra os
outros, sem cessar, rangendo.
Abre-se a boca
e acende olhar tremendo,
desfralda as
asas quais velas de naus!...
E a passagem
lhe cortou! No mesmo instante,
ele é tomado
de vertigem delirante...
“Por aqui não
passarás! Só o deixarei,
se a pergunta
de praxe me respondes!
Estou
impaciente, porque muito já esperei.”
“Tuas armas
são inúteis. Só a resposta
indicará que
inteligência escondes...
Caso
contrário, tua vida me desgosta!”
GOROVINHAS VIII
E num átimo, o jovem Édipo percebeu
que arma alguma poderia enfrentar
a estátua colossal...
Porém, recuar
também era impossível, pois logo concebeu
que mesmo que cedesse à covardia
a esfinge horrível lhe cortaria a fuga;
sua asa alcança a quem o passo estuga!
Se morrer fosse, seria no combate!...
Mas atentou ao que o monstro sugeria
e para o enigma sua coragem não se abate.
“Pergunta, então!” lhe disse, bravamente.
“Se eu responder, me deixarás passar?”
“Desde que o tempo é tempo estive a perguntar
e jamais me decifrou a humana gente...”
“Então indaga e dá-me após um tempo.”
“Tempo não tenho, apenas contratempo!”
”Pois me responde então: qual animal
pela manhã caminha em quatro patas;
ao meio-dia, em duas; e que ao final,
durante a noite, em três caminhará...?
Responde logo, se tua mente engatas,
só de imediato a tua resposta servirá!...”
GOROVINHAS IX
Porém Hermes, o deus dos viandantes,
invisível, assoprou-lhe essa resposta:
“Sou eu, o homem!” E a
esfinge se desgosta,
depois de exterminar mil viajantes...
Contam as lendas que jogou-se num abismo
E lá no fundo, depressa, pereceu...
Era de pedra e em fragmentos se perdeu.
Mas asas tinha! Por que
não levantou
o seu corpo, a evitar o cataclismo
e para outro paradeiro então voou...?
Já o nosso Édipo suspirou, bem aliviado
e retomou o caminho interrompido.
Caso soubesse, não o teria seguido,
a cometer, sem o saber, feio pecado...
Pois encontrou-se com Laio, a cavalgar
e o rei também o procurou matar...
Porém Édipo venceu-o facilmente,
rebentando o coturno, nessa luta,
e lhe tomando o cavalo, alegremente...
E assim entrou depressa na cidade,
onde o clamor de todo o povo escuta,
por profecia de grande antiguidade...
GOROVINHAS X
E logo eles o
apearam do cavalo...
Um adivinho
chegou e disse: “Basta!
É nossa
lei! Deve casar-se com Jocasta,
nossa
rainha!... Ireis achar num valo
o corpo de
Laio, nosso antigo rei,
que nunca
cederia a sua montada,
senão morrendo
após luta acirrada.
O forasteiro
traz um só coturno!
É a profecia
de nossa antiga lei:
ele será o
nosso rei pelo seu turno!”
E assim Édipo
casou-se com Jocasta,
após ter morto
em um combate Laio...
Meses depois,
teve a notícia, como um raio:
eram seu pai e
sua mãe! E assim se afasta.
E na sua fuga,
arrancou os próprios olhos,
procurando
espatifar-se nos escolhos!
Perseguido
pelas Fúrias, sem piedade,
pela dor do
malefício atormentado,
deve sofrer
por toda a eternidade!
Embora fosse
inocente, na verdade.
Mas só com
sangue pode o crime ser lavado
e as Fúrias o
perseguem, por maldade!...
GOROVINHAS XI
Eu também fui a Tebas, cuja trilha
descobri, ainda barrada pela esfinge.
Porém o medo do monstro não me atinge,
minha confiança do conhecimento filha.
E quando a estátua assim me interpelou,
eu respondi: “Sou eu, a tua resposta!”
Seu gargalhar horrendo me riposta:
“Esse enigma já se encontra desgastado...”
Outra pergunta então ela me lançou,
no mesmo instante... E fiquei apavorado...
“Diz-me homem, quem cavalga esse animal?”
“Quem me cavalga?” retorqui, assombrado.
“Toda a tua raça, quem tem cavalgado?
Sabes meu nome, a resposta é natural...”
Por um momento, eu ia dizer: “esfinge”!
Mas a verdade me salvou, que então me atinge.
“Teu nome é Chronos!
Esfinge poderosa,
tu és o Tempo que a todos nos devora!...
Sempre estranhei que tua asa majestosa
não impedisse o espanto de tua morte...”
“Falaste bem, sou o Tempo e sou senhora,
pois cavalgo de tua raça a triste sorte!...”
GOROVINHAS XII
A Esfinge quis então dar-me passagem,
mas refleti... Não quis
entrar em Tebas!...
Minhas razões de meus lábios ora bebas:
recuei de Tebas, não por falta de coragem.
Mas por que matar meu pai eu quereria?
Por que razão minha mãe viúva desposar?
Pois sempre o tempo me iria devorar...
E disse à esfinge: Ave
atque vale!
Pois meu latim sei bem entenderia...
“Bom dia e adeus!” Que nada mais me abale.
Prefiro assim matar os meus pecados,
pelo meu sangue em versos derramados,
pelo meu tempo em cantos destilados,
os meus fracassos em despeito dominados.
E assim contemplo minha camisa bem dobrada,
pelo vento e pelo tempo desfraldada...
E me vão muito mais longe os pensamentos,
enquanto Chronos me mastiga, lentamente,
lavando a carne e deixando os sentimentos.
Até que cheguem meus finais momentos,
quando a Esfinge novamente se apresente,
com sua resposta a meus ressentimentos...
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