GOROVINHAS (Roupas Sujas) (2ª Versão) – 27 MAIO 2023
(Marg Helgenberger)
Podei meu coração, cortado rente,
não cresce nada mais em minha aorta,
empreguei os capilares qual retorta
e os destilei, em vinho diferente
Quero reter o tempo e fecho os olhos,
cobertos de chircal e de azevém,
a salamanca me amaldiçoou também
à vã procura do ouro dos piratas.
Somente posso acompanhar os meus antolhos
e me afundar na sombra dessas matas.
Escasso o tempo de descanso ou passatempo,
vivo iludido em encerrar o vento
no canto de minha sala, ele e o tempo
no cumprimento de meus deveres sem alento.
Mas o vento penetra nas paredes
e sobre mim é que lança fortes redes,
desencilhando assim meu pensamento,
lançando em troca versos malferidos,
no entrevero de sua ressaca com o outrora...
Comigo mesmo as lutas trabalhosas,
minutos a prender, em fios de rosas,
para empregar a meu serviço a aurora.
GOROVINHAS II
Eu vivo assim, admirando a gente,
mas sem buscar alheia admiração,
sou descrente demais dessa canção,
já me basta ser aceito, simplesmente,
tal qual eu sou, meus traços conservando,
preservados em fel, em mel de amoras,
pendurando ao ponteiro dez mil horas,
de que excogitei fados incríveis
enquanto só, apenas perlustrando
a multidão das coisas impossíveis.
Somente pude tornar-me indiferente
a essa indiferença em mim tornada:
não me deseja a mulher que foi amada,
por mais que me acompanhe diariamente.
Desse modo a alma inteira fui podar,
usando a antiga tesoura de esquilar.
Podado o coração, juntei neurônios,
pus em garrafas de plástico e, na praça,
ninguém comprou-me as mudas dos
axônios...
Não se expandiu a saga do infinito
e a venda dos neurônios, que pirraça!
tornou-se em saquitel de amor aflito...
GOROVINHAS III
Tenho pensado em versos descabidos
com lâmina escrever, de aço e ferro,
mas as palavras se ameigam, só encerro
o testamento de meus dias vencidos.
Porque lavei minha lança em goma-laca
e as fibras do cristal mais pontiagudo
serviram de morrião no meu estudo
dessas almas imperfeitas de mulher;
talhado pela chuva, eu viro faca,
mas sou lâmina encerrada em malmequer.
Na fúria desse azul serpentiforme,
coloquei perante os olhos para-brisas,
para atacar o vento e as monalisas,
mas em tudo para ti fui multiforme,
nesse soprar dos cílios para fora,
a preparar-me para o teu agora.
Abri uma fístula na veia a canivete
e me acerquei de ti, chamei de novo
e construímos um barco de confete.
E quando entrares no meu barco do
absurdo,
te levarei para bem longe desse povo
que não escuta nada e me acha surdo.
GOROVINHAS IV – 28 maio 2023
Escrever versos é pôr no quaradouro
a alma enxovalhada, trema e til,
para ser embranquecida pelo anil,
nas ripas finas desse paradouro...
E como é estranho que essa roda azul,
misturada a sabão e a malefícios,
consiga diluir antigos vícios,
nessa mortalha viva do passado,
transformada em sentença de curul,
amarrotada com o resto do lavado!
Já foi levada no alto da cabeça
dessas mil lavadeiras sem beleza,
purificada por águas de tristeza,
muito mais que por prece que se esqueça.
Alma entrouxada muito mais anil requer
do que a força braçal de uma mulher!
Assim invoco os duendes tutelares,
espíritos geniais, quatro elementos,
para que venham trazer ao lavadouro
muito mais do que pecados aos milhares:
lavem fracassos pelos quatro ventos,
dourando a alma, tal qual no nascedouro!
GOROVINHAS V -- 28 maio 2023
Ao invocar desses quatro elementos,
devoro para mim as alquimias,
as santas mágoas que então me trazias,
recolhidas em tsunamis de portentos.
Da água espero dotes em cachoeira,
que me arranhem a pele sem piedade
e me exponhma as artérias, veleidade
tornada inútil ao final da vida inteira,
porque essas águas que me peito lanham
lavam por dentro e o coração me banham.
Do ar só espero a dança dos pulmões,
que me assoprem para o céu sem
complacência,
que me façam voar em sua potência
e aos próprios ossos transmudem em
emoções.
Que assim viva dentro em mim a
tempestade,
que no meu peito se extinguir não há-de!
Da terra espero apenas me devore
até a alma, pelos pés, em diapasão,
enquanto vai-me transmutando em poeira...
Mas para o fogo é preciso que mais ore,
que me atice em furor respiração,
mesmo que a mente me queime por inteiro.
GOROVINHAS VI
Não é que a alma mais santa se torne
ao redigir-se o rol de crimes do lavado,
antes o cérebro se faz desmemoriado
e só lembrança retém que a mente amorne.
São assim as recordações da infância,
que tão frequente dá a impressão de ser
feliz
ou pelo menos é o que a maior parte diz
e que repete na certeza da constância:
para onde foram as mágoas e tristezas
nessa idade que conteria só belezas?
Fácil se esquecem as dores e os castigos,
os tombos, arranhões, febres, doenças,
memória falsa em disfarce de outras
crenças,
às lembranças das lembranças dão-se
abrigos.
Mesmo ao lembrar de ter estado doente,
a intensidade se desvanece e é mais
clemente.
Mas o sabor dos antigos alimentos,
as lantejoulas gentis das brincadeiras
são recordados com maior intensidade,
nesse funil que nos peneira pensamentos
e assim nos doura as horas mais ligeiras,
em que lembramos do falso qual verdade.
GOROVINHAS VII – 29 maio 2023
Mas será que, de fato, eu deveria
só querer me recordar do verdadeiro?
Lembrar-me exatamente do primeiro
momento em que prazer ou dor sentia?
Que ocorreu na maioria dessas vezes
em que lembrei do que de fato aconteceu
e nesse instante já um véu se intrometeu
e surge outra memória que sopeses,
já a lembrança de uma recordação,
nunca a verdade real dessa ocasião?
Sempre se lembra um pouco diferente,
falta um perfume ou se acrescenta glória
e nos domina outra versão da história,
diversa daquela ao real passado pertencente.
E se a inicial queremos de novo recordar
já a fazemos outra vez se transformar.
Só a lembrança da lembrança que tivemos
e nem sequer lembrança mais do evento,
desse passado que se foi e não retorna!
Por isso às vezes nos desentendemos
com quem recorda tal acontecimento
de forma outra que esta que nos torna...
GOROVINHAS VIII
Falar de amor também é pendurar
o coração no varal de secar roupa:
o vento espalha o amor e torna pouca
essa emoção que se queria demonstrar.
Fica esse amor enforcado num arame,
erguido ao alto com vara de bambu,
um coração rosado posto a nu,
desbotado na lavagem que o difame,
apenas firme pelos prendedores,
o vento aos poucos carregando seus
amores...
Falar de amor é coisa bem singela:
se for sincera, é uma lenta exposição,
se for fingida, um diário de ilusão,
toalha de inverno que no frio congela.
Quando são sonhos esquecidos nessa corda
a noite inteira, que só se vê quando se
acorda...
Endurecidos por sereno e geada,
qual amor falso em busca de vantagem,
enquanto o verdadeiro mal se anima
e a emoção mais sincera é desprezada
pela ilusão de melhor tagarelagem
de qualquer conquistador parado à
esquina!
GOROVINHAS IX
Também com livros acontece coisa assim:
tomamos deles o que nos interessa,
que se encaixe facilmente, nova peça,
quebra-cabeças completado enfim!
E ao comentarmos as nossas conclusões
com alguém que até buscamos convencer
e a quem emprestamos o livro para ler,
tiraram dele bem diversas as lições,
algumas vezes a assumir até o contrário,
que mais combine com seu velho
itinerário.
Destarte a mesma passagem é interpretada
conforme a outra impressão que já
formava,
sentença alguma seu parecer mudava,
somente a antiga opinião já reforçada.
E então ficamos sem poder nada entender:
mas está claro o que ali se pode ler!
Mas diz o outro que achou claro também,
de um jeito bem diverso do que achamos,
como se pode tal coisa confirmar?
Ou a companheira a nos olhar, porém,
como se nada do que interpretamos
pudesse o texto para si justificar...
GOROVINHAS X – 30 maio 2023
Amor sentir é expor-se mais ainda:
para a mulher importa mais a segurança
ou pelo menos manter uma esperança
de que esa segurança há de ser vinda.
Amor numa choupana é coisa pouca:
fica o poeta sentado à escrivaninha
e sua amante a cuidar pequena hortinha,
bela receita para pôr-se rouca –
caso contrário, os dois passarão fome,
que amor, por lindo seja, não se come...
É justamente o que transcorre com a poesia:
ainda bem que eu escrevo bem depressa,
mesmo enfrentando a fonte que não cessa,
como em versos iria gastar inteiro o dia?
Mas os poemas também são enxovalhados,
fios de sonho aos milhares ressecados.
Quando os arejo, se enche o ar de traças!
E é por isso que os repasso lentamente,
enquanto vou encordoando seus mil furos
e bordo neles cristalinas graças,
mas que depois esqueço totalmente,
nesses retábulos da mente mais escuros...
GOROVINHAS XI
É nesses furos que encontro mais beleza,
não nos restos mortais de suas mortalhas,
não nos cantos navais de suas navalhas,
mas em sua incerta certeza de incerteza.
Sabe-se lá o que esse eu do antanho
pensava ao redigir tantos rascunhos,
ossos doendo, massacrando os punhos,
sem aguardar sequer o menor ganho,
tão somente registrando o que escorria
por entre os dedos enquanto não dormia!
Mas não me entendas mal. Estão inteiras
e bem legíveis as palavras nos cartões,
o que secou-me foram suas percepções,
ali gravadas em linhas corriqueiras.
Que o verbo nunca expressa exatamente
o que a alma ansiava mais premente.
As rimas correm, colares de cerejas,
pelo tampo da mesa e os sentimentos
nelas se afogam em cores de verniz.
Os versos brotam como brotoejas,
mas aqueles mais perfeitos pensamentos
nunca resultam tão bonitos quanto eu
quis.
GOROVINHAS XII
Nunca fui tolo de o sonho acalentar
de viver inteiramente da poesia,
tal como não vivi da melodia,
que outros valores é preciso se aceitar.
Deste modo, a vida inteira trabalhei
e mil poemas só deixei para secar,
depois de toda a roupa retirar
do quaradouro em que o anil lancei;
escrevi mais de trezentas traduções
e exerci bem variadas profissões.
Sempre ganhei o pão de cada dia,
nunca obriguei a esposa, coitadinha!
a viver dos repolhos de sua hortinha,
plantou flores no jardim porque as
queria.
Comprei-lhe mudas com o fruto do trabalho
que lhe pagou tanto a cebola quanto o
alho!
Mas ainda versos escrevo em intervalos,
rápida corre a ponta da caneta,
enquanto a Lua corre e o Sol se esconde,
nunca deixando os deveres meus trocá-los,
ainda que nutra essa ambição secreta
de largar tudo e me perder quem sabe
aonde!
GOROVINHAS XIII – 31 maio 2023
Mesmo assim, nunca falha a maravilha:
sempre levo o coração, que desbotado
já ficou de tantos versos, esfarrapado,
puído de torcer na água da bilha...
Meu coração, que já tornou-se cor-de-rosa,
que me perdõe a próclise, que a métrica
me vale muito mais do que essa tétrica
gramática, das traças fiel esposa.
Meu próprio fígado já se encontra esburacado
na dionisíaca cirrose do pecado.
Não que me deixe levar por boemia,
minhas falhas todas são muito responsáveis
e se recusam a bebedeiras mais amáveis,
que o corpo inteiro por igual recusaria.
Mesmo meu cérebro deixou de ser cinzento,
embranqueceu, coitado! E o velho pensamento
não tem nele lugar, tão só a emoção
ou esse longo esfiapar de mil deveres
para os impostos e as taxas sorridentes
e fazer minha própria ladainha de oração,
sem qualquer penitência, por prazeres
já enxovalhados, só por se achar ausentes!
GOROVINHAS XIV
Também a história humana é roupa suja,
lavada apenas pelos vencedores,
vastos ódios liquefeitos em amores,
com mil louros de glória por lambuja!
De quando em vez me aparece um
jornalista,
um pouco mais raramente um escritor
que se disponha a aplicar outro lavor
nesse relato das guerras de conquista:
seus depoimentos são mal assimilados,
sob outros mil depois bem enterrados.
É trabalhoso mudar livros de história:
já levaram cem anos de ironia
a convencer que do Brasil a monarquia
valeu bem menos que a republicana
glória...
Ainda recordo daquele falso plebiscito
com que iludiram ao povo nesse grito
de ser democracia, porém já calculado,
desde o começo, com o parlamentarismo
e a monarquia sem termos de defesa.
Hoje só posso, num sorriso ensimesmado,
ver como é falso esse presidencialismo
que só promove a si mesmo, com certeza!
GOROVINHAS XV
Lavadas as ceroulas da memória,
alçada ao vento a glória dos fundilhos,
louvemos dessa história os falsos
brilhos,
empoeirados pela lama de sua escória!
Essa matilha de veraz corrupção,
que só foi por breve instante controlada
após o Império, em que seria mais domada
nos breves anos da Revolução,
mas quando se afirmou a Democracia,
foi empregada como a Lei da Orgia!
O povo foi de novo esquartejado,
nunca pagando assim tantos impostos,
nunca sendo à violência mais expostos
do que depois de ter sido instaurado
o que chamaram de “democratização”,
mais compreendida pela liberação
da mais escancarada roubalheira,
cada partido ao povo mais traindo,
cada político buscando a sua vantagem...
E contudo, a brava gente brasileira,
apesar de um governo assim malvindo,
ainda trabalha diariamente com coragem!
GOROVINHAS XVI
Mas de repente, acata de um estranho,
sem pôr em dúvida, os mesmos argumentos
e se arguída sobre esses pensamentos,
nada responde, sem saber seu ganho.
Porém afirma, na maior convicção,
o que lhe haviam dito anteriormente,
negando-se a aceitar o transparente
e incontestável motivo de razão
e nos afirma ter-nos dito até o contrário
e só agora o resultado encontra vário.
Comigo isso ocorreu vezes sem conta:
parecem esquecer completamente
o que haviam renegado anteriormente,
se o resultado sua lembrança afronta.
É tão estranha essa memória seletiva,
quando a memória esperneia ainda bem viva!
Só então eu vou buscar nas minhas fontes
e lá se encontra a frase que eu dissera,
recebida na ocasião com zombaria
e assim eu vejo quão ralas são as pontes:
tão diferente sendo aquilo que se espera,
como é diverso do que antes se dizia!
GOROVINHAS XVII – 1º JUNHO 2023
Este fenômeno é até mesmo conhecido,
pela polícia, cujos interrogatórios
precisa realizar, após notórios
crimes, depoismento a ser recolhido
de qualquer transeunte ou de um passante,
que poderia servir de testemunha
e até já recebeu, como sua alcunha,
“Memórias Virgens”, por ser tão
interessante
essa notória variedade das lembranças
entre aqueles que assistiram tais
instâncias.
“Era homem negro ou branco, era alto ou
baixo,
fugiu num carro azul, verde, amarelo,
encarnado, garança ou branco-gelo,
as mil contradições formando um cacho
Porque a memória humana é flacidez,
cada um relata o que a impressão lhe fez.
E quanta gente foi já condenada assim,
devido a qualquer falso reconhecimento,
que parecia ser justo e bem sincero!
E só desejo não recaia sobre mim
essa terrível noção de julgamento:
nunca ser membro de um júri firme espero!
GOROVINHAS XVIII
Sei que a memória também a mim engana,
querendo relembrar o que me agrada,
juntamente com o que mais me desagrada,
em punição de minha própria culpa humana.
São relembradas as desilusões,
igual que os bons momentos de sucesso
e para me castigar, quando não peço,
mais me recorda daquelas ocasiões
em que as más ações eu pratiquei,
manifestadas contra ideais que herdei.
Mas por mais claras que sejam as
memórias,
não se comparam com a realidade,
elas não mais que disfarçam minha
verdade,
ouro e chumbo a refletir-se em tais
histórias.
De fato, só lembro do muito que lembrei
dessas camadas de lembrar que acumulei.
Outras que os fatos verdadeiros do
passado,
sendo as dores em geral mais atenuadas
e ampliados muitos dos prazeres.
E por mais que me sinta atribulado,
são só memórias de ilusões acumuladas,
que me impelem a cumprir novos deveres.
GOROVINHAS XIX
E assim ocorre com minhas trezentas traduções:
passado o tempo da vasta semeadura,
após o tempo em que a colheita dura,
pouco recordo de suas vastas extensões,
mesmo porque eu quase nunca leio
esses livros impressos que recebo;
eu os conservo igual que vinho eu bebo,
meses ou anos passados de permeio,
até que o tempo os encorpe e enriqueça
ou o veu do esquecimento também desça!
E pior ainda ocorre com meus versos,
que chego a esquecer completamente:
bastante rara a exceção que se apresente,
tomaram asas e no céu foram dispersos.
Já não precisam ser confiados à memória,
foram lançados para a vastidão inglória.
Lancei na rede sonetos aos milhares,
que quando os leio, me provocam sensação,
igual que lidos pela vez primeira
e assim me afogo em seus espanadares,
versos lançados sem absolvição,
para enfrentarem qualquer sina derradeira.
GOROVINHAS XX
Porque, enfim, esse é o destino do poeta:
que escreva versos por pura oompusão,
alguns são seus, outros porém, nem são,
só retratos de ilusão que a mente afeta.
Nesse momento entoado da canção,
breve domino o sonho transitório,
subsidiado por alheio exclamatório,
porém sujos por roçar na multidão,
que ao mundo expus, após serem lavados,
para serem novamente enodoados.
Mas mesmo assim, são retalhos de minha
alma,
os pecadilhos de minha roupa de baixo,
essas culpas pequenas em que encaixo
minhas pressas e temor em breve calma.
Poemas mansos, sonetos mais peraltas,
lançados ao estridor de incultas maltas.
Sem pena os lanço às criticas do mundo,
nesses meios eletrônicos do agora,
enquanto a inquietaçao no peito ruja,
em seu conjunto com o palpitar imundo
de cada erro cometido outrora,
nada mais que malcheirosa roupa suja...
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