MENTES DE PAPIRO I (2 ago 11)
(RITA HAYWORTH, apogeu de Hollywood)
Eu só presumo que exista na minha mente
algum arquivo dos versos que já fiz.
Sei que não digo o que todo mundo diz,
mas como evito se plagiem mutuamente
versos antigos de esplendor frequente
e os versos novos que ontem mesmo quis
trazer à luz, em seu luar de giz,
trazer ao mundo, rindo brandamente...?
Pois este é o fato: eu me surpreendo tanto
ao ler os meus sonetos do passado,
ou outros tipos de poemas feitos
por outros de mim, que já perdi no enquanto,
cada um em simples cela emparedado,
pelas grades de mil versos já desfeitos!...
MENTES DE PAPIRO II
Talvez eu tenha alguma biblioteca,
nos escaninhos neurais, esconsamente,
guardada em mil papiros, de potente
resistência contra o tempo que os resseca.
Indubitavelmente, possuo discoteca:
melodias aos milhares, certamente,
eu reconheço, de ouvi-las novamente,
ou as reproduzo, nas vezes que me seca
a fonte externa de sons mais musicais.
A audição tem memória permanente...
Já os livros, não são todos que recordo
e até existem alguns originais
de que me foge o conteúdo à mente,
desses que escrevo quando à noite acordo.
MENTES DE PAPIRO III
Tenho um retalho de minhalma, que até hoje
sobrevive tão só no pensamento.
O que farei quando o dia em mim se aloje,
em que terá de ser dado em casamento?
O que farei, se da lembrança foge
qualquer detalhe de tal procedimento?
Não sei onde puxar, para que apoje
esse abstrato leite do argumento...
Com que livro casarei, com qual poema,
esse retalho de minhalma virgem?
A qual mulher erguerei meu juramento,
comprometendo esse retalho em cego lema,
que uma alma e outra alma cerzem,
no próprio sangue de seu defloramento?
MENTES
DE PAPIRO IV—28 NOV 23
Mas
se o retalho de minhalma, em casamento
darei
a ti, em seu travestimento;
se
me envolvi em ti, qual véu de noiva,
retirado
de minha mente a talho e goiva;
Se
a mim mesmo deflorei constrangimento,
ao
te prestar sincero juramento;
se
minha lembrança te falou, constante,
em
mil palavras de apego delirante;
Se
nesses cantos de minhas ilusões,
com
sangue costurei dois corações;
se
tantas coisas que pouca gente diz
a
sussurrar-te nalma então eu quis;
dentro
em minha solidão, apenas penso
como
me é confrangedor o teu silêncio...
MENTES
DE PAPIRO V
Meus
sonhos reduzi no teu papiro
e
os teus sobre o puro pergaminho
desse
retalho dalma, pequeninho,
que
sai do meu olhar quando te miro...
Anda
dentro de ti e faz o giro,
depois
volta, reduzido de mansinho
dos
hieróglifos captados no caminho,
por
esse amor com que a mim mesmo firo.
Mas
no papiro escrevi porque queria,
na
imensidão do amor que então sentia,
nos
fragmentos da alma que te dei.
No
pergaminho, porém, não escreveste,
fui
eu que fui buscar o que escondeste,
teus
sentimentos mais profundos que roubei.
MENTES
DE PAPIRO VI
E
quando o meu desejo furibundo
se
lançou sobre tuas vistas e as roubou
este
reflexo de amor que captou,
parecendo
o mais sincero olhar do mundo
e
no beijar de teus lábios rubicundos
uma
flora ali escondida divisou,
pequena
flor que apenas tremulou,
ao
vento do desejo mais profundo.
E
foi assim que fiz: não foi entrega,
não
foi a meiga e pura aceitação,
que
se envolveria em mim com pura calma,
foi
mais o arroubo de uma fúria cega,
manifestada
em chispas de implosão,
com
que consigo arrancar-te a flor da alma.
MENTES
DE PAPIRO VII -- 29 novembro 2023
Há
uma história de fadas muito antiga,
sobre
uma certa Princesa Flor-de-Ervilha,
a
quem a sogra preparou uma armadilha,
sobre
essa cama que seu corpo abriga.
Ela
estendeu doze colchões em fina intriga,
para
confirmar a delicadeza dessa filha
e
neta de reis que a saga encilha
e
sob os doze pôs ervilha a inimiga...
Pela
manhã encontra-se a princesa,
tonta
de sono e toda estremunhada,
não
conseguiu pregar olho a noite inteira;
só
a sogra adquiriu então essa certeza
de
que sua pele era assim tão delicada,
por
ser de fato uma princesa verdadeira!
MENTES
DE PAPIRO VIII
E
desse modo és tu: coisa bem pouca
já
basta a despertar o teu rancor,
ocultar
muito bem o teu amor,
sob
essa pilha de perfídia rouca;
a
minhas desculpas tua audição é mouca,
por
uma só ervilha o teu pendor
se
exalta em ladainhas de calor,
tal
qual tua mente se volvesse louca.
E
nada adiante ter te dado dez colchões,
doze
que fossem, qual na história da princesa,
que
da pequena ervilha te apartassem,
pequena
ofensa nos separa os corações,
numa
enxurrada de frases sem leveza,
que
por tua mente talvez sequer passassem!
MENTES
DE PAPIRO IX
Assim
eu vejo as manchas no papiro,
quando
tentei redigir em minha clareza
e o
pergaminho espelha essa impureza,
na
acusação do golpe com que firo.
Mas
se em resposta sem querer minha língua giro,
quando
menos por fazer a minha defesa,
surge
avalanche permeada de altiveza,
nessa
tua voz a atingir o meu retiro.
E
então penso, em tal lençol de mágoa,
como
é fácil para ti o reverter,
transformado
em desgosto o meu prazer,
no
prolongar constante dessa frágua,
em
que não pensas sequer reconhecer
tal
tempestade feita em copo d’água!
MENTES
DE PAPIRO X – 30 novembro 2023
Mas
nisso tudo sobressai uma verdade,
estando
secos e ancestrais esses papiros,
ressecados
ao vento nos seus giros,
fácil
rasgados em pulvericidade.
Também
se esgarça em tal fragilidade
o
pergaminho dourado como círios,
que
fora um dia branco como lírios,
mas
foi malhado pelo tempo em veleidade.
Por
isso lágrimas talvez sejam necessárias,
a
fim de restaurar-lhes a umidade
ao
papiro e ao pergaminho ressequidos,
que
nas suas fibras se prendam solidárias,
a
reviver-lhes a ultrapassada mocidade
dos
juramentos há tanto proferidos.
MENTES
DE PAPIRO XI
E
assim nascem as videiras pelos céus,
sejam
dos ares, sejam de tua boca,
enquanto
ervilhas, que tortura louca,
conseguem
penetrar por tantos véus.
São
pés de erviha somente dos incréus,
mas
com gavinhas tecerás a touca
e
com pevides essa esperamça rouca,
dando
acolhida a minúsculos arpéus.
Derramo
o vinho sobre o pergaminho,
sobre
o papiro suco de ervilhaca
e
assim renovo sua anterior vitalidade,
porém
não os posso restaurar sozinho,
só
o teu amor traz a perfeita goma-laca,
com
que rebrilha o seu pendor de opacidade.
MENTES
DE PAPIRO XII
Pois
assim estão em cela emparedadas
as
mil recordações desse passado,
tão
laboriosamente registrado,
nessas
miríades de frases apressadas,
nessas
sentenças de datas ressecadas,
nesses
poemas de fulgor semiofuscado,
nesses
registros de pó acumulado,
gélido
pó de lápides quebradas.
De
certo modo, se erguem da memória
velhos
sonetos de amor que já escrevi,
os
mil poemas de espanto revestido
e
quase sem sentir, afasto a escória
dos
pergaminhos e papiros que perdi,
só
um verso nu na mente a ser ouvido...
Nenhum comentário:
Postar um comentário