sábado, 7 de setembro de 2013






A JUVENTUDE DE KRISHNA
(mitologia hindu, recontado por William Lagos, 31/7/2011).

            Um mito é uma história que contamos sobre gênios, heróis ou deuses antigos, em que realmente não acreditamos, mas que quase todo mundo sabe quem são.  Por exemplo, quando se fala no Gênio da Lâmpada, todos recordam de alguma versão da história de Aladim e muita gente até gostaria de ganhar os três desejos, mas ninguém  espera seriamente tropeçar na lâmpada mágica.   Quando se fala em Hércules, todo mundo recorda que era um homem muito forte, mas ninguém realmente pensa que ele possa morar até hoje no monte Olimpo.  E quando falamos em Zeus, Vênus ou Apolo, nem mesmo os mais românticos acreditam de fato na existência desses deuses, por mais que gostariam que fossem reais.
            A diferença entre a mitologia greco-romana com que estamos acostumados e a mitologia hindu é que ainda hoje centenas de milhões de pessoas através da Índia e mesmo nos países vizinhos acreditam realmente na existência dos deuses e heróis que a povoam, dedicam-lhes templos e lhes rendem culto.  Contudo, no mundo ocidental, eles são apenas mitos descritos em histórias pouco conhecidas, mas de grande beleza.  A história de Krishna é uma delas, um homem de grande formosura e inteligência, que  provavelmente até existiu, mas que, segundo o mito,  era um avatar do deus Vishnu, um corpo humano criado e ocupado temporariamente pelo espírito divino. 
            A religião dos hindus é politeísta, ou seja, admite a existência de numerosos deuses; contudo, existe uma trindade suprema, Brama, o Deus Pai, Vishnu, o Deus Filho e Shiva, o Deus Preservador da Natureza, que pode ser perfeitamente equiparada à Santíssima Trindade dos cristãos, Pai, Filho e Espírito Santo.   Nesse sentido, é mais parecida com o Cristianismo que as religiões rigidamente monoteístas, acreditando em um só deus, como o judaísmo e o islamismo; ou que as demais religiões politeístas, em que uma trindade comparável realmente não pode ser identificada.  Mesmo assim, é preciso recordar que Brama, Vishnu e Shiva são três deuses perfeitamente distintos entre si, enquanto a Trindade cristã é formada por três Pessoas em um só Deus, coisa bastante difícil de entender e que deve ser aceita pela fé, como nos ensinou Santo Agostinho.
Ora, Vishnu sempre foi o protetor da humanidade e assumia os seus avatares para proteger os seres humanos.   Krishna foi seu oitavo avatar e, desta vez, dedicou-se mais ao aperfeiçoamento da raça humana do que a combater os gênios do mal como o fizera em encarnações anteriores.  Este avatar era perfeito da cabeça aos pés, sem um único defeito e dispunha apenas de dois braços e duas pernas, diferentemente dos avatares anteriores, que apareciam com seis braços, quatro pernas e até mais.  Por que motivo Vishnu decidira aparecer com tantos membros ou porque assumira a forma de animais é coisa que só pode ser explicada pela própria mente divina.
            Mas desta vez, quando apareceu como Krishna, era tão belo que o chamavam de O Adorável e todas as mulheres que o viam, logo se apaixonavam e queriam conquistá-lo, a um ponto que Krishna se casou dezesseis mil e cem vezes e teve a bagatela de cento e oitenta mil filhos.  É admirável que tenha achado tempo para fazer outras coisas...  A maior parte dos povos do passado – e muitos ainda no presente – praticam a poligamia, isto é, um homem pode casar com quantas mulheres puder sustentar, justamente para ter o máximo número possível de filhos, seguindo o primeiro mandamento dado por Deus aos homens, como consta no livro de Gênesis: “Crescei e multiplicai-vos!...”
            Na sociedade ocidental moderna, o sistema é a monogamia – uma única esposa, pelo menos até que a morte ou o divórcio os separem, o que limita bastante o número de filhos.  Mesmo porque uma única esposa já dá bastante trabalho e hoje em dia sai muito caro educar os filhos...  O sistema oposto, a poliandria, uma mulher com muitos maridos, já foi também experimentado, mas nunca deu certo, porque um homem pode ter filhos com muitas mulheres ao mesmo tempo, mas a mulher só pode ter um por vez.  Mesmo no caso de ter uma série de gêmeos, dificilmente terá mais do que vinte filhos em toda a vida e o resultado sempre foi uma drástica diminuição da população. 
            Praticamente todo o povo hindu deve ser hoje descendente de Krishna e de um dos múltiplos avatares de sua esposa Lakshmi, a deusa do amor, que corresponde à Vênus/Afrodite dos romanos e gregos.  Ao adotarem formas humanas perfeitas, geraram corpos mais ideais para servirem de morada a milhares de almas destinadas ao serviço e ao louvor de Brama.   Há quem afirme que todas as dezesseis mil e cem esposas de Krishna eram avatares de Lakshmi e que Vishnu podia duplicar seu avatar Krishna de modo a coabitar com a maioria delas (ou até com todas!) ao mesmo tempo, o que indica um alto grau de empreendedorismo de parte a parte... Seja como for, embora tantas vezes tivesse encarnado em avatares guerreiros, Vishnu sempre deu preferência à paz e quando precisava eliminar seus adversários, em geral o fazia sem derramamento de sangue (e sem grandes remorsos, tampouco, porque sabia que eles reencarnariam).  Mas para cumprir a sua missão renovadora, teria de encarnar em um ambiente adequado, em que todas as suas necessidades materiais fossem satisfeitas e no qual pudesse gozar do respeito da maioria dos que o rodeavam.
            Assim, Vishnu fez com que seu avatar fosse gerado por pais de sangue real, do mesmo modo que aconteceria milênios mais tarde com Gautama, que veio a ser chamado de Siddharta, por ter alcançado a meta da perfeição e de Buddha, o Iluminado.  Nasceu, portanto, do ventre de Devaki, gerado pelo nobre Vasudeva, na corte de Mathura.  Devaki era sobrinha do rajá Ugrasena, filha de seu irmão Devaka, enquanto Vasudeva pertencia a um ramo afastado da família real.   Mas nenhum deles podia aspirar ao trono, porque Ugrasena era o herdeiro legítimo, irmão mais velho de Devaka e, além disso, tinha um filho já adulto, Kamsa, que o sucederia no trono por linha direta.
            De qualquer modo, ambos viviam no palácio real, sem que nada lhes faltasse e a aspiração ao trono nem por um momento passava pela cabeça de qualquer dos dois, porque significaria apenas mais responsabilidade, sem quaisquer vantagens adicionais.  A única coisa que não tinham e que desejavam ardentemente, era um filho ou uma filha, porque já estavam casados há sete anos e Devaki não engravidava.  Vasudeva era um súdito leal de Ugrasena e um dos melhores amigos de seu primo Kamsa.  O próprio fato de não ter filhos o tornava inelegível para o trono, pois não teria sucessor, ao passo que Kamsa já tinha uns doze ou quinze com suas várias esposas, ele até já perdera a conta, mesmo porque não era grande apreciador de crianças.
            O que Kamsa queria, acima de tudo, era subir ao trono.  Seu pai já estava velho, mas gozava de perfeita saúde e não demonstrava o menor declínio físico ou mental.  Delegava o comando das tropas para Devaka, que era um excelente general e os negócios do reino para seu vizir e o conselho de ministros, de modo que passava gozando a vida, no ócio dourado a que tinha direito, somente se apresentando em festividades e ocasiões formais e, mesmo assim, reclamando por deixar de gozar os seus prazeres e pelas roupas e jóias incômodas que tinha de usar nessas ocasiões. 
Como tantas vezes acontece, o herdeiro do trono se viu rodeado por um bando de aproveitadores, que o adulavam e lhe davam maus conselhos.  O único amigo sincero que tinha era Vasudeva, mas raramente o escutava.  Aos poucos, foi-se tornando arrogante e violento, maltratando a quantos encontrava pela frente, o que lhe granjeou não poucos inimigos, que murmuravam contra ele, mas não ousavam se queixar a seu pai, sabendo  que este não tomaria a menor providência.  O vizir, naturalmente, nem sequer repreenderia Kamsa, não era a sua função, limitando-se a pagar indenizações aos que ele prejudicava e a apaziguar os ânimos dos cortesãos ofendidos.   Mas quando seus malfeitos chegaram aos ouvidos de Devaka, ele foi falar com o rajá e este o autorizou a convocar Kamsa para o exército, a fim de aprender a lutar e agir com disciplina. 
A princípio, Kamsa se recusou, mas seu tio lhe falou com brandura, convencendo-o de que precisava de experiência militar para quando subisse ao trono, pois a partir de então seria ele a comandar as tropas.  Devaka já estaria então velho demais para essa função ou, pelo menos, foi o que lhe disse.  Kamsa entrou na tropa como um oficial subalterno e logo pegou gosto pela vida militar e pelos frequentes combates, porque o reino tinha muitos inimigos ambiciosos entre seus vizinhos.  Demonstrou bravura e coragem e foi até mesmo temerário, lançando-se ao aceso do combate, quando o tio o queria preservar. Desse modo, foi ganhando promoções por mérito e não por ser o filho do rajá, o que o tornou ainda mais orgulhoso e prepotente nos tempos de paz.
Seus falsos amigos começaram a lhe dizer que os nobres da corte e até mesmo o povo comum andavam sussurrando que ele seria um péssimo rajá e começavam a invocar um velho costume, segundo o qual, por morte do rei, ele deveria ser sucedido por um de seus irmãos, no caso, Devaka.  Este tampouco tinha pretensões ao trono, era leal ao irmão mais velho e ao reino, mas seu prestígio como general era muito grande, porque até então nunca fora derrotado e os soldados o adoravam.  Kamsa viu o perigo.  Embora estivesse rapidamente ascendendo nas fileiras do exército e fosse respeitado como guerreiro, seu prestígio era de longe ofuscado pelo de seu tio.  E assim, começou a imaginar um meio para livrar-se dele.
A ocasião não se fez esperar.  A essa altura, Kamsa já era um dos três subcomandantes e, em uma nova batalha, recebera a missão de cercar o inimigo, enquanto seu tio os atacava diretamente.  Mas Kamsa fingiu interpretar mal as ordens de seu general.  Realmente, fez um rodeio com seu regimento e se posicionou por trás das tropas inimigas, mas esperou até que Devaka ficasse isolado e, apesar de combater com grande valor, acabasse por ser morto em combate.  Kamsa, que tinha olhar aguçado e tudo contemplava, esperou até Devaka cair do cavalo e ser cercado, só então dando ordem a seu regimento para que avançasse contra a retaguarda do inimigo.
A manobra foi brilhante e os inimigos foram esmagados.  Quando a reserva viu Kamsa avançar, lançaram-se também ao combate, segundo as instruções deixadas por Devaka.  Mas ao inspecionarem o campo de batalha, encontraram o corpo de Devaka, caído junto aos cadáveres de sua guarda pessoal, de mistura a centenas de inimigos.  O general foi levado a uma pira de madeira de sândalo e cremado, como era o costume, sendo suas cinzas colocadas em uma bilha de barro.  Os demais mortos mathuranos foram cremados em piras coletivas e deram permissão aos prisioneiros para que igualmente queimassem os restos de seus milhares de mortos.  Os hindus respeitavam muito os despojos humanos e não permitiam que fossem abandonados ou enterrados em valas comuns.  Além disso, havia muitas florestas e a madeira era abundante.
Kamsa retornou a Mathura como herói nacional e chefe inconteste do exército. As cinzas de Devaka foram transferidas para uma urna de jade e entregues cerimoniosamente à sua filha Devaki, para o sepultamento ritual.  O rajá e o vizir confirmaram Kamsa no comando do exército, que ele conduziu habilmente nas batalhas que se seguiram.  Afinal, tivera tempo e disciplina suficientes para aprender tática e estratégia sob o comando de seu experiente tio. 
Mas o tempo foi passando e Ugrasena se obstinava em não morrer.  De fato, constantemente comprava novas concubinas e já tinha quase uma centena de filhos, possíveis rivais futuros, embora Kamsa fosse o mais velho e o único filho da rainha legítima.  Mas... e se seu pai caducasse ou se tomasse de amores por um dos mais moços e decidisse nomeá-lo herdeiro em seu lugar?  Kamsa estava afastado da corte de Mathura a maior parte do tempo, vivendo nos acampamentos e quando se contemplava em uma bacia cheia d’água ou contra a superfície de um escudo polido, percebia seus cabelos já grisalhos e as rugas que se aprofundavam em seu rosto, devido à constante exposição ao sol e ao vento... Para prevenir-se, começou a convocar para a tropa todos os seus irmãos, assim que atingiam uma certa idade e os colocava em posições perigosas, nas quais muitos deles pereceram... mas eram os azares da guerra.
Um dia, reuniu seus generais e obteve sua aprovação.  Marchou de volta a Mathura depois de uma grande vitória, carregado de despojos e de prisioneiros, pois conquistara a capital de um reino inimigo e o anexara a Mathura, sendo aclamado delirantemente pela multidão.  Ao invés de a guardar para si, mandou distribuir entre o povo a sua parte do saque, depois de entregar aos oficiais e soldados o que competia a cada um.  Foi novamente louvado pela sua munificência e, percebendo que dificilmente alcançaria um grau maior de popularidade, rodeou-se de seus oficiais e de sua guarda pessoal e foi até os aposentos do rajá, que o recebeu reclinado em almofadas, comendo e bebendo à farta e rodeado de concubinas, sem dar a menor importância à estrondosa vitória obtida por seu exército.
Os oficiais se entreolharam e acenaram com as cabeças para Kamsa,  que então se dirigiu formalmente ao pai, exigindo que, pelo bem do reino, abdicasse em seu favor.  O velho rei estava embriagado e, a princípio, nem entendeu do que se tratava, depois quis recusar, mas Kamsa mandou prendê-lo em uma das torres do castelo, convocou o vizir e lhe ordenou, sob pena de morte, que recolhesse a assinatura do rei no pergaminho da abdicação.  O vizir foi até a torre, ouviu calmamente os gritos de raiva do rajá e insistiu para que este assinasse.  Quando ele novamente se recusou, o vizir não teve dúvidas: assinou em nome do rei, como já o fizera em tantos outros documentos e lacrou a proclamação com o Grande Selo do Reino, que mantinha em sua posse há vários anos.
Kamsa foi imediatamente coroado, sob aprovação geral do exército e do povo, embora encontrasse uma escassa resistência dentro da corte.  Não se portou como um mau filho: mandou instalar na torre todo o luxo necessário, colocou à disposição do rei todos os seus criados, copeiros e cozinheiros e um número aceitável de concubinas, músicos, eunucos e dançarinas, instalando uma guarda de seus soldados mais fiéis na entrada da torre, armados da cabeça aos pés.  A torre tinha instalações sanitárias adequadas e determinou que os servos e concubinas do rei dormissem nos andares inferiores, onde também foi montada uma ótima cozinha e até se achou lugar para uma adega.  De fato, a vida de Ugrasena praticamente não se modificou, porque ele raramente saía de seus aposentos durante o tempo em que governava e tinha plena liberdade.
O novo rajá procurou governar com justiça e equidade; as conspirações palacianas foram rapidamente afogadas em sangue e o vizir foi substituído em suas funções por seu primo Vasudeva, em quem depositava total confiança, embora ele mesmo conservasse o Grande Selo em um cofre de que só ele tinha a chave e se desse ao trabalho de examinar as leis e decretos um por um antes de os assinar pessoalmente.  Aumentou o soldo dos soldados e lhes concedeu alguns novos privilégios, o que ocasionou um pequeno aumento nos impostos, mas como a nação prosperava, os protestos foram poucos.  Logo firmou seu domínio sobre o reino vizinho que conquistara e dominou facilmente as alianças travadas por seus demais vizinhos, que acabaram por mandar embaixadas para lhe pedir a paz e a se comprometerem a pagar tributos a Mathura... Alguns até lhe ofereceram o título de Marajá, que significa “Imperador”, mas a arrogância e orgulho de Kamsa eram temperados pela ponderação que adquirira nos campos de batalha e recusou, sabendo que não passava de um título vazio. 
Mas embora tantos falem contra a guerra, é na paz que prospera a corrupção.  Kamsa deu títulos de nobreza e pensões a seus amigos de juventude, os antigos aristocratas não cessavam de o adular e pedir este ou aquele privilégio, suas concubinas queriam tecidos custosos, jóias e perfumes e aos poucos, a corte se encheu de um fausto que, para ser mantido, precisava de quantidades crescentes de dinheiro.  Seu primo, o novo vizir, o aconselhava em contrário, mas obedecia às decisões do rajá e os impostos e taxas foram aumentando.  Logo organizou grandes feiras para atrair comerciantes e mercadores de terras distantes e os impostos cobrados sobre as vendas mais ou menos equilibravam as despesas de manutenção do luxo e opulência da corte.
Não obstante, o comércio prosperava cada vez mais, os operários encontravam sempre trabalho nas construções dos ricos, os artesãos não tinham dificuldade em vender seus produtos e, sobretudo, os camponeses podiam plantar e criar seus animais em paz.  Os ricos ficavam cada vez mais ricos, os pobres cada vez mais pobres, mas paciência!  Pois não fora sempre assim?  Não era a vontade dos deuses?  Protestavam, mas pagavam os impostos e ainda se mostravam agradecidos por não serem convocados para combater e deixar as colheitas abandonadas, como acontecera tantas vezes nos tempos do antigo rei. E se alguém achava alguma coisa errada, não se atrevia a protestar; Kamsa ainda não se revelara um tirano, mas lembravam o que acontecera com os que haviam conspirado no início de seu reinado e se calavam.  Apenas Vasudeva, cuja posição de vizir o autorizava, além de sua antiga amizade com Kamsa, dizia ao rajá que não tirasse do povo mais do que lhe dava.
E as coisas poderiam ter continuado assim por muitos anos, porém um adivinho se apresentou na corte, dizendo chamar-se Nardamuni e ser um astrólogo de grandes conhecimentos, capaz de revelar o passado, o presente e o futuro.  Primeiro as mulheres, depois os nobres ociosos passaram a consultá-lo e logo ele adquiriu grande prestígio na corte e prosperou.  Kamsa determinou a Vasudeva que lhe encontrasse uma residência adequada e lhe desse uma pensão: o vizir obedeceu, embora fosse totalmente contrário a esse desperdício, não fazendo segredo de sua opinião.  Mas Nardamuni espertamente  observava os sinais do tempo e previa o clima dos próximos dias e lia as expressões das pessoas de modo a acertar seus horóscopos, logo alcançando grande renome, até que todos lhe mostravam deferência...  Apenas o vizir não se curvava à sua  passagem.
Sendo uma criatura rancorosa e julgando que Vasudeva era seu inimigo, logo o falso astrólogo procurou intrigá-lo com o rajá.  Usou de um truque tão velho como o mundo.  Disse a Kamsa que possuía a inspiração divina e que era assim que traçara o seu horóscopo.   A essa altura, o rei já se deixara corromper pelo luxo e ociosidade e, embora não confiasse muito nele, deu-lhe ouvidos para se distrair.  “Majestade,” disse Nardamuni, “o senhor perecerá pela mão de alguém em quem confia, alguém que acolhe em seu próprio palácio... É isso que dizem os astros que governam seu horóscopo.”
Kamsa era desconfiado por natureza e tampouco confiava nesse forasteiro, mas não duvidava da possibilidade de alguma conspiração.  Porém quando o adivinho mencionou o nome de Vasudeva, soltou uma gargalhada.  Logo o seu mais fiel súdito, a única pessoa que se atrevia a lhe dizer a verdade cara a cara!... “Senhor,” insistiu o falso mago, “Vossa Majestade sabe que Vasudeva é o oitavo filho de seu pai.  E a profecia diz que Vossa Majestade há de perecer pela mão do oitavo filho de um oitavo filho.”  Kamsa sabia que não era assim, mas mandou consultar os registros da corte e logo o chamou de volta: “Nardamuni, você está equivocado, como eu já suspeitava.  O pai de Vasudeva foi o terceiro filho de seu pai.  Além disso, fiz algumas investigações e sei que você tem ciúmes do meu vizir.  Você é um homem traiçoeiro e me insulta pensando que pode me enganar. Agora, cale essa boca de serpente e me deixe pensar um pouco enquanto decido se vou mandar cortar-lhe a cabeça, torturar primeiro ou simplesmente bani-lo de minha corte.”
“Não, Majestade, eu só interpretei mal os sinais do horóscopo.  Quem o irá matar será o oitavo filho de Vasudeva, por mais que ele mesmo lhe seja leal...”  O rei soltou outra gargalhada:  “Além de intrigante e mal-informado, você é um bobo, adivinho!... Vasudeva não tem nenhum filho, está casado há quinze anos e minha prima Devaki ainda não concebeu.  Todos dizem que ela é estéril, mas Vasudeva não quer tomar uma segunda esposa e muito menos alguma concubina, como qualquer outro o faria em seu lugar... Guardas, levem este mentiroso para a masmorra!”
“Espere, meu rei!... Sua prima Devaki ainda não completou trinta anos e pode muito bem ter filhos.   Não esqueça que é sua prima-irmã e, embora ela não possa ascender ao trono, um filho seu pode querer destroná-lo!”  “Você continua tentando me enganar, Nardamuni.   Mesmo que minha prima tivesse um filho milagroso gerado pelos deuses e o desse à luz hoje mesmo, eu já estarei velho quando ele tiver idade suficiente para me atacar, ou talvez até já tenha morrido...”  E fez um sinal para os guardas.
O astrólogo teve uma inspiração maligna.  Aproveitando a sugestão, gritou enquanto os soldados o agarravam: “Senhor, é o próprio Vishnu que vai encarnar nela!... É o deus Vishnu que vai criar um avatar especialmente para o matar!”  A menção de Vishnu fez com que todos se calassem, mas Kamsa apenas sorriu.  “Com todo o respeito ao grande deus, o santo Vishnu vai ter de demonstrar grande paciência até que minha prima estéril traga ao mundo seus sete primeiros filhos, antes que ele possa encarnar... E depois, por que motivo ele me quereria matar, se sempre fui fiel aos preceitos de Brama e meus únicos crimes de sangue foram cometidos no campo de batalha?  Se eu mesmo não fosse protegido de Vishnu, já teria sido cremado há muito tempo...”
Nardamuni forçou a imaginação: “Ai, meu senhor, eu não queria lhe dizer, assim na frente de toda a corte!... Mas o seu horóscopo revela que Vossa Majestade é a reencarnação do Asura Kalanemi, que já foi morto várias vezes por Vishnu durante guerras ou rebeliões!...”  Desta vez, a confiança de Kamsa foi abalada.  Mandou soltar o adivinho e tanto mais ele disse que acabou por mandar prender Vasudeva e Devaki em outra das torres do palácio.  Vasudeva reafirmou sua lealdade e Kamsa até se desculpou com ele, mas disse que, embora não tivesse motivos para duvidar dele, uma profecia o obrigava a isso.  Porém mandou tratar os dois com o máximo respeito, dando-lhes servos, músicos e eunucos e todo o luxo possível, tal qual fizera com seu pai Ugrasena, que ainda gozava de excelente saúde.  A única coisa que não lhe permitiu foi ter concubinas ou dançarinas, mas Vasudeva tampouco as queria.
A prisão foi realizada tão depressa, que nem Vasudeva nem Devaki ficaram sabendo do motivo real.  Sozinhos na torre, apegaram-se ainda mais um ao outro e, subitamente, Devaki concebeu, depois de quinze anos de tentativas inúteis.  O rajá foi informado e nada disse, mas tão logo nasceu o menino, mandou retirá-lo dos pais, sendo levado para a masmorra, onde o carrasco o executou.  Mas aos pais somente foi dito que o rajá queria educá-lo junto com seus próprios filhos, porque não achava certo que crianças inocentes fossem criadas em uma prisão.  Os pais não podiam fazer nada e logo veio outro menino e mais outro, até se completarem sete, que tiveram idêntico destino.
Como não atendiam a seus pedidos para que lhes trouxessem os filhos, ao menos para ver com estavam, já que não podiam sair da torre, Vasudeva e Devaki começaram a desconfiar que alguma coisa estava muito errada.  E quando Vishnu criou seu avatar no ventre de Devaki, grávida pela oitava vez, Vasudeva fez o que estava a seu alcance para o proteger.  Com a ajuda de um eunuco que lhe era fiel, conseguiram que uma criada, que sempre vinha ao pé da torre, a fim de recolher a roupa suja para lavar, se dispusesse a levar o menino escondido no meio dos panos.  A peso de ouro, o eunuco conseguiu que um dos guardas lhe trouxesse, também às escondidas, o cadáver do filho de uma escrava, que morrera ao nascer justamente nesse dia, enquanto Yashuda, a criada, cumpria o combinado e levava com ela o principezinho recém-nascido, no fundo da cesta de roupa suja.  No mesmo dia, ela deixou o palácio e retornou para sua terra, num vale protegido por altas montanhas.
Ora, Yashuda era a esposa de Nanda, o chefe da tribo de criadores de gado leiteiro que morava no aprazível vale de Vrindavana.  O menino foi sendo criado como se fosse seu próprio filho e ao ver o pequeno cadáver, Kamsa não duvidou que fosse o oitavo filho de Devaki e Vasudeva.  E disse ao astrólogo que sua profecia falhara, porque o oitavo filho do oitavo filho já nascera morto e, caso Vishnu se decidisse a encarnar no seguinte, um nono filho nada poderia fazer contra ele, de acordo com o que o próprio mago lhe profetizara...   Seus sete priminhos tinham sido mortos sem razão e nem motivo.  Nardamuni, vendo que o prestígio lhe fugia, fingiu ir consultar seus alfarrábios, mas como se tornara o novo vizir, conseguiu rapidamente descobrir o truque e soube do paradeiro de Yashuda. Foi então dizer ao rajá que os deuses lhe haviam revelado que Vishnu ainda vivia no vale de Vrindavana e que ele fora enganado. 
Em sua fúria, Kamsa mandou torturar todos os criados e eunucos, até confirmar o que Nardamuni lhe dissera.  Os que haviam sobrevivido foram mortos e Kamsa acabou por mandar executar seus primos, sem ao menos escutar o que lhe tinham a dizer, ainda mais que soubera que, mesmo passados vários meses, Devaki cessara de engravidar após ter o oitavo filho.  Tudo o levava a crer que a profecia era verdadeira.
Mandou então emissários a Nanda, pedindo que lhe mandasse o menino de volta, mas o chefe dos pastores declarou que o filho era seu e que não o entregaria.  Ora, a tribo de Vrindavana era muito ciosa de sua independência e seus homens eram soldados aguerridos, que formavam o núcleo do exército de Mathura, mas se retiravam para seus lares assim que retornava a paz.  Apenas um desfiladeiro estreito dava acesso ao vale, que podia ser defendido facilmente contra um ataque de milhares de soldados.  Por essas e por outras razões, Kamsa não podia ordenar a Nanda que lhe entregasse o menino; mandou outros embaixadores que tentaram convencê-lo, mas sem resultado.  Enquanto isso, o menino recebera o nome de Krishna, por ser tão perfeito, belo e adorável.
Então Kamsa mandou um assassino, que conseguiu chegar até o berço de Krishna, mas este o fitou com imensa ternura e o malvado, não conseguindo erguer a mão contra ele, cravou o punhal no próprio peito.   Kamsa mandou mais dois assassinos e estes, conquistados pela beleza da criança, degolaram um ao outro.  Assim que o sangue correu para o solo, coagulou-se e enegreceu, por isso Krishna foi apelidado pelos montanheses de O Negro e é mesmo representado algumas vezes com a pele inteiramente preta.  Kamsa mandou então três assassinos e depois mais quatro, que conseguiam se introduzir habilmente na casa, enquanto Nanda e Yashuda trabalhavam nos campos com os demais montanheses, mas com idêntico resultado.  De cada vez, Nanda enviava os mortos de volta para Mathura, mandando perguntar se alguém os conhecia por lá, mas ninguém falava nada, por medo do rajá e este sempre dizia que nunca os vira antes, sem mentir, porque era Nardamuni que os enviava.
Então o astrólogo, que nesse meio tempo adquirira livros de magia negra, convocou um gênio mau, o Asura Purana, que se prontificou a matar Krishna, ao saber que era encarnação de Vishnu.  Voou para o vale e perseguiu o menino, agora já com cinco anos, para cima e para baixo.  Krishna corria mais, porém Purana não desistia. Finalmente, Krishna pegou os potes em que guardavam a manteiga do gado leiteiro e os esvaziou atrás de si.  Purana escorregou e bateu com a cabeça em uma pedra, soltando uivos de dor.  Krishna cortou-lhe a língua com uma pedra afiada e o gênio se engasgou com o próprio sangue. Deste modo, seu sangue não foi derramado por Krishna que, devido a essa proeza, foi também apelidado carinhosamente de Makhan Chor, que significa “Ladrão de Manteiga”.   Nardamuni e Kamsa enviaram então uma serpente, chamada Kália, que tinha sete cabeças e que, ao invés de atacar Krishna, procurou envenenar a água do rio que atravessava o vale, para matar o gado e seus pastores.  Krishna, que agora tinha dez anos, se acordou no meio da noite, soube o que estava acontecendo e foi pegar um machado, com o qual cortou as sete cabeças da cobra antes que ela pudesse realizar o seu malefício, alcançando ainda maior prestígio entre os montanheses, que já o adoravam por sua beleza, mas agora também por sua bravura.
Em desespero de causa, Nardamuni e Kamsa suplicaram o auxílio de Indra, o deus do sol e o senhor das chuvas.  Ora, Indra tinha um velho ressentimento contra Vishnu, porque perdera o amor de Lakshmi por sua própria arrogância e a partir de então, a Deusa do Amor se tornara a esposa de Vishnu, enquanto Indra tivera de se contentar com Chandra, a Deusa da Lua, que só podia encontrar por algumas horas, ao entardecer ou no começo da aurora e mesmo assim, somente em alguns dias a cada mês.  Então Indra se dispôs a ajudar e provocou uma imensa tempestade que já ameaçava inundar o vale inteiro!... Krishna, agora com quinze anos, arrancou dos alicerces o monte Govárdana e o sustentou com uma só mão, enquanto com a outra puxava as pessoas e o gado para baixo dele.  Inclinando este guarda-chuva improvisado, não apenas protegeu o vale inteiro, como projetou o dilúvio para além do desfiladeiro, indo inundar a planície de Mathura, que ficava junto das montanhas.
A essa altura, Krishna já tivera inúmeras namoradas, porque nenhuma das mulheres montanhesas resistia ao Adorável.  Mas os homens também o adoravam e lhe perdoavam todas as aventuras.  Então, para vingar-se do último ataque, Nanda convocou todos os guerreiros da tribo e se pôs sob as ordens de Krishna.  Eles desceram a montanha para travar batalha contra Kamsa diante de sua capital.  Mas Krishna, mesmo sabendo que seus pais e irmãos tinham sido executados, queria evitar derramamento de sangue e, deste modo, avançou sozinho à frente das tropas que se haviam estacionado em posição de batalha.  Ao avistarem o Adorável, os soldados de Kamsa simplesmente não conseguiram lançar-lhe flechas ou lanças ou atacá-lo de outro modo, apesar das ordens furiosas do rajá.  Krishna sorria, vestindo uma túnica leve e armado apenas com um frágil caniço.  Kamsa lançou-se contra ele, usando armadura completa, brandindo lança e espada, mas quando o contemplou, sentiu todo o ímpeto se esvair dele.  Então virou o rosto e tentou cravar-lhe a lança, mas como não via onde ele estava, errava todos os golpes.  Depois fechou os olhos e tentou atingi-lo com a espada, mas perdeu o equilíbrio e caiu ao solo, onde o peso da própria armadura o prendeu.
Nesse momento, Nardamuni saiu do meio das fileiras e, fosse para obter o perdão de Krishna, fosse porque não resistia a seu encanto, matou o próprio rei, seu protetor.  Então, ergueu os olhos e ao fitar Krishna, o malfeitor não resistiu ao remorso e tanto chorou que se afogou no próprio pranto por todo o mal que lhe causara antes.  O exército inteiro se prostrou perante Krishna, que abençoou a todos e entrou na cidade sem encontrar resistência.  Foi até a lápide que recobria as cinzas de seus pais, encomendando suas almas a Brama e então deu ordens para que libertassem Ugrasena, o qual, apesar da velhice, ainda gozava de perfeita saúde e o restaurou no trono, com a recomendação de que doravante se esforçasse para governar a nação com justiça e sabedoria, até o final de sua já longa vida, sem delegar o poder para outrem, mas cumprindo os deveres que lhe competiam como rei.
Ugrasena estava perfeitamente lúcido, aceitou as recomendações e, como prova de agradecimento, o nomeou seu herdeiro, apesar de todos os filhos que ainda lhe restavam.   Krishna pretendia retirar-se de novo para a paz do vale, mas Djarassandra, o rei do país vizinho de Maghada, que se casara com uma irmã de Kamsa, invocou em seu favor uma antiga lei e se auto-proclamou o vingador do cunhado.  Naturalmente, o que ele queria era anexar Mathura a seu reino. 
Mas Krishna quis outra vez evitar derramamento de sangue e recusou combate dezoito vezes, deixando que Djarassandra conquistasse Mathura, mediante a promessa de que não destronaria Ugrasena novamente.  Retirou-se então com seus homens e suas famílias para a região de Guzarate, na época despovoada e coberta de florestas, onde fundou a cidade de Duaraka, para ser a capital de seu novo reino.  Mas Djarassandra não cumpriu a promessa e logo destronou o velho rei.  Krishna então, com um suspiro, reuniu de novo suas tropas e invadiu Mathura.  Djarassandra foi ao seu encontro com um exército aguerrido e numeroso e, mais uma vez, ao verem Krishna vestido somente com sua túnica cor de açafrão e usando como arma apenas um caniço, suas tropas se recusaram a lutar.  O próprio Djarassandra foi prostrar-se diante dele, dizendo que abandonaria Mathura e se contentaria com a coroa de Maghada.
Porém Krishna sabia que não podia confiar nele e o levou acorrentado à presença de Ugrasena, mais uma vez sentado em seu antigo trono e submeteu Djarassandra a seu julgamento.   Ugrasena declarou que ele não perderia ocasião para desobedecer novamente a Krishna e deu ordem para que fosse executado.   Pouco tempo depois, Ugrasena foi reunir-se a seus antepassados e Krishna foi coroado.  Era agora o senhor de três reinos, Mathura, Maghada e Guzarate, sem que ninguém lhe contestasse o poder, não porque o temessem, mas porque sua formosura era tal que todos ao vê-lo se prostravam e o adoravam.
Algum tempo depois, uma das filhas de Saurashtra, o rei da vizinha Vidharba, chamada Rukabal, deu à luz uma criança deformada, com três olhos, três braços e três pernas.   Se fossem em número par, até pensariam que era o avatar de algum deus, mas como era ímpar, acreditaram que era a encarnação de um demônio e o queriam matar.   Rukabal foi consultar um anacoreta que vivia no alto de uma montanha e este lhe disse que Krishna poderia curar seu filho, pois era o avatar de Vishnu nessa era.  Rukabal mandou uma grande comitiva, com cavalos, camelos e elefantes, à procura de Krishna, suplicando-lhe que viesse a Vidharba para salvar seu filho.  Krishna acedeu, colocou o nenê em seu colo e lhe cuspiu no terceiro olho e nos membros em excesso, que imediatamente secaram e foram sumindo até desaparecer.
Durante as festividades, o rei Saurashtra concebeu o projeto de casar o menino com a irmã de Rukabal, sua tia Rakmini, que então tinha quinze anos, como uma forma de invocar a bênção dos deuses, segundo sua maneira de pensar.  Logo que começou a cerimônia, Krishna e Rakmini se entreolharam e se reconheceram imediatamente como avatares de Vishnu e Lakshmi.   Então Krishna se ergueu e disse que aquela noiva lhe pertencia.  Foi um assombro geral, mas a presença de Krishna era tão marcante e tão digna de adoração, que logo o rei se convenceu ser muito melhor uma aliança com um rajá de três reinos do que continuar com aquele estranho projeto de casar o neto, ainda uma criança de colo, com sua própria tia.
Assim, as cerimônias continuaram, apenas foi trocado o noivo, que mandou trazer ricos presentes para seu futuro sogro.  O menino, que recebera o nome de Susipala, era pequeno demais para entender o que se passara, porém mais tarde, quando lhe contaram, achando que seria uma história divertida, sentiu-se profundamente ofendido e seus olhos brilharam de raiva, jurando que um dia se vingaria de Krishna.  Mas Rukabal, sua mãe, que tivera uma premonição do futuro, havia pedido a Krishna como um presente de casamento (embora a noiva fosse sua irmã) que perdoasse cem vezes as ofensas que Susipala lhe pudesse vir a fazer no futuro e Krishna magnanimamente havia consentido.
Entrementes, o gênio mau Nakasura resolvera combater a influência de Vishnu em Vidharba e percorreu o reino inteiro, roubando dezesseis mil donzelas para formar um grande harém, pretendendo ter com elas filhos à sua imagem e semelhança.  O demônio não era invulnerável, mas ninguém conseguia tocá-lo.  Pediram a ajuda de Krishna, que foi enfrentar o Asura, agarrando-o pela barba, que era onde se encontrava a sua força. Incapaz de se defender, Nakasura teve de olhar Krishna nos olhos e sua pureza era tanta que o gênio foi definhando e encolhendo, até que se transformou em uma pequena bola, que Krishna calcou aos pés, sufocando-o, novamente sem derramar sangue.
Mas surgiu logo um outro problema.  As dezesseis mil donzelas foram consideradas como degradadas pelo contato com Nakasura e suas famílias não as queriam receber de volta, porque ninguém iria querer casar-se com elas, mesmo que o número de jovens casadouras tivesse sido reduzido drasticamente no reino.  Então Krishna obteve a aprovação de Rakmini, que era a encarnação de Lakshmi e organizou uma grande cerimônia, em que ele próprio se casou com as dezesseis mil moças, libertando-as da desonra e forçando as famílias a aceitá-las de volta.  Segundo consta, todas elas eram avatares da própria Lakshmi e Krishna, de uma forma ou de outra, conseguiu engravidar a todas, a maioria mais de uma vez.  Mas conservou para si somente as oito mais nobres, dentre as quais a principal era Satyabhama e proclamou estas oito como rainhas secundárias, sem que Rakmini demonstrasse qualquer ciúme ou rancor.  Assim, ele gerou com elas e outras mulheres cento e oitenta mil filhos, renovando totalmente a raça humana, “mais por dever que por quaisquer prazeres, bem mais por honra que por desejo vil”, como cantaram os antigos aedos do Rig Veda.
Passaram-se quinze anos e o rei Yudisthira reuniu sob seu cetro uma vasta região da Índia, abrangendo trinta e dois reinos.  Krishna aceitou seu domínio sem combater, em troca de seus três reinos serem deixados em paz.  Yudisthira organizou então vastas festividades para sua coroação como Marajá, o imperador de todos esses reinos e convidou os trinta reis seus vassalos para a cerimônia.  Nenhum se fez de rogado e os cortejos rivalizavam em pompa e esplendor.  O novo marajá tratou a todos com a maior  cordialidade, porém deu uma atenção toda especial a Krishna, por ser três vezes rei, talvez porque soubesse Quem ele era realmente ou por também se achar sob a influência de sua adorabilidade, pois Krishna em nada envelhecera durante todos esses anos.
Ora, Susipala era um desses rajás, pois herdara a coroa de Vidharba por morte de seu avô Saurashtra e se sentiu duplamente insultado pela deferência com que Yudisthira tratava Krishna e pelo fato de que ele lhe havia tirado a noiva (pior ainda, porque não se contentara com ela!) e, durante o banquete, sob a influência do vinho, começou a insultar Krishna, que fingia não ouvir, recordando a promessa feita à sua mãe Rukabal, de que o perdoaria cem vezes.  Depois de noventa insultos sem receber resposta, Susipala pegou uma lança e dez vezes tentou matar Krishna com ela, mas este se desviava facilmente dos arremessos do jovem embriagado.  Em vão o marajá suplicava que não derramassem sangue em seu caminho no dia de sua coroação. Sem lhe dar ouvidos, o adversário tentou cravar a lança em Krishna uma décima-primeira vez, o que completava o centésimo-primeiro insulto.   Então Dantavakra, seu primo, filho de Djarassandra, que reinava sobre um pequeno território que Krishna lhe concedera, mas que achava que o reino de Maghada lhe tinha sido roubado, veio em seu auxílio, tentando agarrar Krishna para que este não se desviasse mais e Susipala o pudesse acertar.
Nesse exato momento, liberado de sua promessa, Krishna se transformou em Vishnu, mostrando todo o seu esplendor; e o brilho que lhes dirigiu de seu Chakra principal foi tamanho que Susipala e Dantavakra foram calcinados e se transformaram imediatamente em pó e cinzas, que se dissiparam mais rapidamente do que dura uma prece.  Acontece que esses dois reis eram avatares de Jaya e Vijaya, os dois porteiros do palácio de Vishnu, que um dia se haviam embriagado, deixando sem proteção o magnífico portão de ébano e madrepérola.  Como castigo, Vishnu os banira para a Terra, tendo sido forçados a encarnar.  Ao matá-los, Vishnu completava seu castigo e os perdoava... Os espíritos de Jaya e Vijaya retornaram ao paraíso e se prostraram perante Vishnu, que os abençoou e nunca mais descuraram de suas funções.  E ninguém pense que ele abandonou seu avatar Krishna ou que isto aconteceu mais tarde.  Vishnu tinha o dom da ubiquidade, podia estar em muitos lugares ao mesmo tempo; também fora assim que Krishna conseguira engravidar tantas esposas em um espaço de tempo tão curto.
Assim que a poeira e a cinza se dissiparam, Dhritarashtra, um rajá cego, suplicou a Vishnu que lhe restaurasse a luz do olhar pelo menos o tempo suficiente para contemplar o seu esplendor.   Mas ele era um avatar de Hiranya, o velho Asura que tantas vezes combatera Vishnu e pretendia aproveitar a ocasião para matar Krishna.   Dizem alguns saddhus que ele o fazia na esperança de libertar Vishnu de seu avatar, o que seria uma ação meritória e lhe valeria o perdão de Brama por suas más ações anteriores.  Hiranya estava preso na Sansara e tinha de reencarnar continuamente, porque não aprendia com seus erros, igual que a maior parte dos seres humanos.
Mas Vishnu atendeu o seu pedido e a visão do esplendor divino foi tanta que sua mente humana não resistiu ao fulgor e desmanchou-se inteira, em implosão, sem derramar sequer uma gota de sangue.  Por dois mil anos permaneceu o Asura longe da Terra, até que Vishnu novamente encarnou em Siddharta, quando tentou desviá-lo do caminho da perfeição, porém sem sucesso.   O olhar de Buddha foi o suficiente para que se recolhesse novamente ao planeta que Vishnu concedera a Bali, o rei dos Asuras, para governar até o fim dos tempos.  E só irá retornar no final da atual era de Kali Yuga, quando tentará dominar Kalkin, o cavalo alado, o décimo e último avatar de Vishnu, que ainda não surgiu entre nós.  Hiranya voltará então, na forma de um dragão negro e combaterá no espaço Kalkin, na forma de um cavalo branco, até ser novamente derrotado por ele.  Então Kalkin vencerá a própria Kali e a morte será banida do meio dos homens.
Vishnu retornou à forma humana e Krishna disse ao marajá Yudisthira que as festividades da coroação podiam prosseguir, visto que nenhum sangue fora derramado e que os convivas de mau coração já haviam sido afastados. 
Muito mais coisas há que fez Krishna, em sua idade madura, sendo a principal das quais sua aliança com Ardjuna, a quem serviu como auriga, o cocheiro de seu vimana, ou carro alado, mais uma vez sem derramar sangue nas batalhas.  Ardjuna seguiu seus conselhos e venceu todos os combates, impondo-se sobre seus adversários.  Não cabe aqui narrar os pormenores desta guerra, perfeitamente descrita nos versos imortais dos magníficos poemas Ramayana e  Mahabharata.  Muito mais tarde, quando Ardjuna faleceu de boa velhice, foi levado ao castelo de Svarya, o paraíso de Indra, porque era filho do deus-sol e através de sua amizade com Krishna, desapareceu finalmente a velha rivalidade de Indra com relação a Vishnu.
Mas Vishnu já estava cansado de sua longa permanência naquele corpo adorável, que não envelhecia e nem se feria, porque ninguém, homem ou gênio, ave ou animal, nem doença, nem a morte e nem o próprio tempo se atreviam a tocar.  Não seria correto abandonar simplesmente um corpo que lhe servira tão bem e no qual investira uma parte importante de sua divindade.  Então um dia, durante uma caçada, iludiu seu amigo, o caçador Djara, que pensou enxergar nele um cervo e disparou-lhe uma flecha em pleno coração.  Djara arrependeu-se amargamente ao ver o corpo de Krishna estendido no solo, mas Vishnu lhe apareceu para absolvê-lo do assassinato e até lhe agradeceu por tê-lo libertado da permanência em seu avatar, de modo tal que Djara foi extremamente honrado pelo povo e o sucedeu no trono de Mathura.

E lá do alto Vishnu observa os homens e a Terra, pronto a defendê-los de qualquer perigo, “porque esse Filho de Brama é nosso amigo e para os homens se demonstra dadivoso, a cada vez que uma ameaça se apresente”, como nos refere o magnífico poema Bhagavâd Ghita.  

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