O SOLDADINHO DE CHUMBO
(Folclore dinamarquês, recolhido por Hans
Christian Andersen, recontado em
versos por William Lagos, 28 ago 13)
O SOLDADINHO DE CHUMBO I
Era uma vez uma colher de estanho
que de sua dúzia fora desirmanada
e num cadinho então fora derretida,
para em forma depois ser derramada
e em vinte e cinco soldados transformada.
Mas não dera exatamente o seu metal
e um soldadinho teve menor banho,
ficando assim com uma perna só,
sem que, de fato, lhe fizesse mal,
que estava firme em pé, mesmo cotó...
Ora, entre nós, por estanho ser mais raro,
os soldadinhos em chumbo eram fundidos
(ainda recordo seu bom cheiro metálico),
que por veneno ter, foram banidos,
depois por plástico sendo substituídos.
Por tal razão, seu nome foi mudado,
(era um brinquedo, talvez, um pouco caro
e barato o plástico era, antigamente),
sendo em “soldado de chumbo” transformado,
tornando a história um tantinho diferente.
Tive centenas destes soldadinhos,
na maioria por meu avô fundidos,
nesse tempo em que possuía uma ferragem;
depois de prontos, eram todos revestidos
de tinta esmalte, ficando desabridos.
Estes da história envergavam uniformes
vermelhos e azuis e, bem esticadinhos,
traziam ao ombro fuzil e baioneta,
todos ao mesmo modelo bem conformes,
combatendo em qualquer guerra secreta...
Anos mais tarde, já vivendo com meus filhos,
comprei pincéis e meia dúzia de latinhas,
cada uma em diferente tom de esmalte
e repintei as figuras pequeninhas:
brilhantes cores, frescas e novinhas...
As botas, o cabelo e a cor dos olhos;
dei de presente meus velhos andarilhos:
sei que meus filhos os guardam ainda agora,,
camadas de papel como refolhos,
em suas caixas conservadas deste outrora.
O SOLDADINHO DE CHUMBO II
Eles traziam uniformes rebrilhantes,
azuis os dólmãs e seus calções vermelhos,
nas cabeças capacetes em dourados...
E por melhor afirmar os seus conselhos,
baionetas reluzentes como espelhos,
enfiadas nas pontas dos fuzis,
os vinte e cinco soldados triunfantes,
em posição de marcha bem comum,
suas botas negras, de aspectos viris,
colocados em seu estojo de um em um.
Todos iguais, vindos da mesma forma,
só que a colher de estanho não bastara,
ficando um deles assim meio aleijado;
o fabricante pouco ou nada se importara:
se do metal um pouco mais buscara
não soldaria bem com o inicial...
E com o último destarte se conforma;
eram duas dúzias que vendia em cada caixa,
o vinte e cinco era brinde!... No final,
prendeu o papel com encarnada faixa.
Estavam todos ainda entorpecidos
e a voz primeira que ouviram neste mundo
foi a do menino que ganhou o presente:
“Soldadinhos de chumbo!” E bem profundo
era o entusiasmo nesse tom jocundo,
enquanto batia palmas a criança,
que foi logo montando um batalhão...
De quatro em quatro dispôs cada fileira,
mas o último manteve na sua mão,
talvez pensando o fazer porta-bandeira...
Então notou que uma perna lhe faltava...
Bem na frente, atenção mais chamaria.
Por um momento o colocou atrás:
ali sozinho bem tampouco ficaria...
Ficou então sem saber o que faria.
Não pretendia desfazer-se do brinquedo...
Disse-lhe o pai que depois confeccionava
uma perninha de cera ou de palito...
Pôs o soldado à parte, num degredo,
deixando o pobrezinho muito aflito!...
O SOLDADINHO DE CHUMBO III
Por que não
fico com meus camaradas?
pensou o soldado, que se chamava Alberto
Soldado de Chumbo – ou antes, de Estanho,
Albrecht
Zinnsoldat, seu nome certo...
Bravo e sem medo de seu destino incerto,
ficou porém abandonado o pobrezinho,
as marchas assistindo, controladas
pelas mãos de seu novo proprietário,
que as fazia avançar, devagarinho,
as ordens dando de um jeito autoritário...
Sobre a mesa havia outros brinquedos:
era dia, afinal, de aniversário...
No meio deles, um castelo de papel.
Não fora feito por artesão ou operário,
mas pelo pai, em habilidades multifário,
recortado de uma folha de cartão,
durante a noite, meio que em segredos,
para dar uma surpresa a seu filhinho,
bem montado e pintado na ocasião,
como uma prova de adicional carinho...
Através do conjunto de janelas,
podiam-se ver figuras nos salões,
com um espelho servindo de laguinho,
por árvores cercado em profusões,
também elas recortadas de cartões...
E ainda cisnes nadando na água falsa,
feitos de cera, iguais que as aves belas,
tudo cercado por um gradil de arame;
de longe em longe algum suporte o calça,
qual um presépio que a imaginação conclame.
E uma bailarina, na porta do castelo,
com um saiote de gaze transparente
e sobre os ombros um tope em fita azul,
a perna esquerda erguida extremamente,
apoiada num pé só... E externamente
bonita e delicada e sem defeito
em qualquer ponto de seu rostinho belo;
sobre o peito uma azulada lantejoula,
sua perna levantada de tal jeito
que parecia só ter uma essa moçoila...
O SOLDADINHO DE CHUMBO IV
E num capricho, o menino colocou
o soldadinho de guarda no portão,
destacado para servir de sentinela...
Alberto, ao ver a dona da mansão,
já de chumbo lhe bateu o coração...
Eis aí uma
mulher que me convinha,
o soldadinho logo a seguir pensou.
Igual que
eu, ela tem uma perna só,
mas se
parece até com uma rainha!...
Se lhe
declaro meu amor, vai rir de dó!...
Além disso,
ela mora num castelo,
enquanto
eu, com vinte e quatro companheiros,
passo
deitado dentro de uma caixa!...
Não há
lugar para ela em tais poleiros,
mas não
parece ter jeitos sobranceiros...
Ela me olha
direto e me sorri,
nunca na
vida vi em sorriso tal desvelo!
Talvez
pareça até convencimento,
mas eu a
amei na primeira vez que a vi,
temos, ao
menos, de travar conhecimento!
Meio escondido por detrás de sua guarita,
o soldadinho observava a dama
e pareceu-lhe ter visto ela piscar!...
Seu coração, logo a seguir, se inflama
e empertigou-se, garantindo a fama
de ser soldado forte e corajoso...
Mas a bailarina de papel o vento agita:
seria o motivo de uma falsa piscadela?
O soldadinho mantinha-se garboso,
a tarde inteira só olhando para ela...
Chegou a noite e os demais soldados
foram guardados dentro da caixinha;
ninguém deu falta do pequeno Albrecht:
foi o menino para sua caminha,
o sentinela ainda olhando a damazinha...
E as luzes todas da casa se apagaram,
ficando os outros brinquedos espalhados,
desordenados, caídos sobre a mesa...
O sentinela e a dançarina se miraram,
por entre a escuridão, com incerteza...
O SOLDADINHO DE CHUMBO V
Então os brinquedos começaram a despertar,
para logo iniciar mil brincadeiras,
enquanto outros dançavam a contradança;
as bolinhas giravam bem ligeiras,
lápis de cera faziam paisagens bem
certeiras,
dava mil pulos o belo quebra-nozes,
os cavalinhos se puseram a galopar,
os soldadinhos agitando-se na caixa,
com grande esforço, fazendo ouvir suas
vozes,
mas fora a tampa bem fechada com uma
faixa...
Até o canário encetou a cantar
e se escutou o rufar do tamborzinho,
a melodia tocada na marimba,
os sons agudos num prateado clarinzinho,
um bilboquê a se embocar sozinho...
Imóveis só o soldado e a bailarina,
que agora começava a suspirar,
mesmo sem perna, para sair dali
e o joão-bobo balançava em dança fina,
todos alegres num grande rififi...
Mas de repente, se escutou um estouro,
a tampa ergueu-se de caixa quadrada
e projetou-se no ar comprida mola,
deixando toda a companhia apavorada,
fez-se silêncio, não se brincou mais
nada!...
Era a cabeça de um horrível feiticeiro,
com turbante e dois brincos, como um mouro.
“Soldado de chumbo”, falou, ameaçador,
“desvie seus olhares bem ligeiro!...
Só por mim a bailarina sente amor!...”
O soldadinho fez que não ouviu
e continuou parado onde se achava,
a bailarina imóvel nos degraus...
Com rispidez, o bruxo se zangava
e em voz roufenha, logo a seguir falou:
“Espera até amanhã e então, verás!”
Numa terrível careta, ele sorriu
e sua caixa se fechou num estalar...
Mas do festejo terminara o gás,
brinquedo algum atrevendo-se a dançar!
O SOLDADINHO DE CHUMBO VI
Não sei se o soldadinho adormeceu
ou se sua bailarina então dormiu,
mas de repente, já era de manhã...
Logo as janelas veio alguém e abriu
e um golpe de vento sacudiu
a saia de tule da bailarina bela...
Mesmo pesado, o soldadinho estremeceu:
foi carregado por feroz feitiço
e num instante, caiu pela janela!
Empertigado e sem perder o viço!...
Sua baioneta cravou-se numa fenda,
entre duas tijoletas da calçada:
ficou imóvel, com a base para cima,
quase não dava para se ver nada,
como os ladrilhos, era acinzentada...
O chofer procurava e a governanta
e quase o esmagaram, em meio à senda,
mas o soldado era muito corajoso
e se a voz por momento ele elevasse,
desonraria seu uniforme tão brioso...
Então a chuva começou a cair
e para dentro voltaram os empregados.
“Tinha defeito”, disse o pai. “Não falem
nada,
o garotinho terá outros cuidados,
irá brincar com duas dúzias de soldados
e desse aí vai se esquecer depressa...”
Passada a chuva, foram-no descobrir
dois meninos que passavam conversando;
da fenda a retirá-lo um já se apressa,
sua nova brincadeira arquitetando...
Ao longo da sarjeta corria a chuva
e os meninos arranjaram um jornal
para fazer um barquinho de papel...
“Esse soldado vai ser o general!...”
“Não, o almirante!” “Ora, não faz mal,
ele vai ser do barco o tripulante...”
Havia um espaço exato como luva
e ali ficou o soldadinho, bem de pé,
sempre aprumado, corajoso infante,
que ante o inimigo não daria marcha a ré...
O SOLDADINHO DE CHUMBO VII
Após a chuva, era forte essa corrente
e a perseguiam os garotos na calçada,
o barco a acompanhar, batendo palmas...
A folha do jornal fora dobrada,
para não ser facilmente desmanchada.
E o soldado conservava-se impassível,
até que um bueiro se abriu, bem à sua frente
e o barquinho, num instante, se afundou,
diretamente na escuridão horrível...
Porém Alberto não se acovardou...
Eu só
queria ter comigo a bailarina!
Não teria
medo e ficaria feliz...
Mas então apareceu um grande rato:
vendo o soldado, em voz bem rouca, diz:
“Onde está teu passaporte, meu petiz?”
Naturalmente, nada disse o soldadinho...
Seguiu o barco pela obscura sina
e o ratão, guinchando, o perseguia:
“É um invasor! Detenham o barquinho!...”
E o barco à frente sempre mais corria...
“Pare já!
Você não pagou passagem!
Vou devorá-lo se não tem um passaporte!”
(Bem indigesto seria aquele chumbo...)
Mas a corrente era cada vez mais forte
e o soldado conformou-se com sua sorte,
sentindo apenas a mágoa da saudade...
Desembocou a correnteza na voragem
E em cataratas, foi cair no mar!...
Pensou o soldado, em sua infelicidade:
Minha
dançarina nunca mais vou encontrar!
Todo ensopado, se rasgou o papel
e o soldadinho na água se afundou,
pensando escorregar até o fundo...
Mas veio um peixe, que logo o tragou,
bem indigesto o petisco que almoçou!...
A escuridão tornou-se ainda pior,
mais que na caixa que lhes servia de quartel
e o soldadinho ficou todo apertado...
Mas o destino que o aguardava era melhor,
já que o peixe, bem depressa, foi pescado!
O SOLDADINHO DE CHUMBO VIII
Por algum tempo, o peixe se agitou,
até ficar bem quieto, inteiramente:
o soldadinho não largou sua baioneta!
Súbito um raio brilhou de luz fulgente,
batendo em cheio de seu olhar na frente.
A barriga fora aberta por facão,
porém a lâmina em Alberto nem tocou.
Tem o destino seus próprios segredos...
“É um soldadinho de chumbo, meu patrão!”
A cozinheira o agarrava entre seus dedos...
A boa mulher lavou-o, sob a pia
e lá estava ele, de uniforme,
de perna só e a segurar a baioneta!
Só a cor é que ficara desconforme;
sem uma perna, ainda assim conforme
ao soldadinho então desaparecido!
Toda a família assim se surpreendia
com a viagem que fizera tal brinquedo!
Sempre mudo, conservando seu sentido,
o pobre Alberto mantinha seu segredo...
Não se sentia, porém, nada orgulhoso,
até o momento da melhor surpresa;
após viajar dentro daquele peixe,
piscando os olhos, para ter certeza,
viu de novo se achar na mesma mesa
e lá estava pairada a bailarina!...
Notou, contudo, estar menos garboso:
seu uniforme desbotara um pouco!...
E até vergonha teve da menina,
pois viu-se feio, triste, quase louco!...
Mas pondo o olhar sobre sua bem-amada,
ficou Alberto inteiramente comovido
e algumas lágrimas verteu, feitas de chumbo!
A bailarina pensou ter-lhe sorrido;
ficou parado numa perna, em mau sentido...
Nesse momento, uma tampa pipocou:
do feiticeiro a caixa escancarada!
O bruxo o olhou com jeito furibundo,
a cara feia, mas sem fazer ruído,
a demonstrar, porém, ódio profundo!...
O SOLDADINHO DE CHUMBO IX
E de repente, assim sem mais aquela,
o irmão mais velho do aniversariante
pegou Alberto, na sua palma em concha...
“Esse brinquedo não é mais interessante!
Já era aleijado e perdeu todo o corante...”
“Eu quero ele na frente do castelo!”
“Mas por que? Não serve mais de sentinela;
vai destoar, se o puser na formação!,,,”
“Mas ele é meu e ainda quero tê-lo!”
disse o menino, puxando-o de sua mão...
E não se sabe se foi só por acaso
ou por ser praga daquele feiticeiro
ou se o irmão ficara com inveja,
mas foi cair dentro do fogo, bem ligeiro,
acesa a lareira bem cedo, era Janeiro,
na Dinamarca, bem no meio do inverno...
Caiu nas chamas o soldadinho raso,
ainda intrépido, mas começando a derreter,
contemplando a dançarina desde o inferno,
sem um gemido deixar transparecer...
Se arreganhava o feiticeiro, bem feliz,
porque sua praga se havia assim cumprido!
A sua cabeça alegre a balançar,
enquanto Alberto ia sendo derretido,
nenhum retorno agora concedido...
Do feiticeiro seria a bailarina,
da mesma forma que ele sempre quis...
Mas uma porta abriu-se, de repente,
e em lufada de vento, a dançarina
subiu no ar e pulou na chama ardente!
E como fora feita de papel,
caindo ao lado do seu soldadinho,
consumiu-se no fogo, inteiramente,
enquanto ele, apesar de seu carinho,
virava líquido cinza e muito quente...
Não havia como salvar qualquer dos dois
e nem sequer fazia falta em seu quartel...
Para consolo do menino que chorava,
o pai pegou um cartão, logo depois,
e bailarina igualzinha recortava...
O SOLDADINHO DE CHUMBO X
Depressa o garotinho consolou-se
e nem pensou depois no soldadinho;
afinal, tinha outros vinte e quatro...
O irmão se arrependeu de ser mesquinho
e as pazes logo fez com o irmãozinho.
Porém a mãe olhou o bruxo, desconfiada:
O bicho
feio infelicidade trouxe!
E foi escondê-lo em escura prateleira;
por longos anos ficou a caixa ali guardada,
e então uma rata a roeu, interesseira...
No dia seguinte, chegou a empregada
para fazer a limpeza da lareira,
com pá e balde para tirar as cinzas...
E viu uma coisa em nada corriqueira:
uma bolinha de chumbo na peneira...
Era o chumbo em que virara o soldadinho.
Examinando, porém, ficou espantada,
pois claramente parecia um coração,
nele grudada, quase com carinho
a lantejoula azul, nessa ocasião...
Foi mostrar bem depressa à sua patroa,
que o mandou engastar numa corrente,
pois não teve a menor dúvida do que era;
e então usou como colar, frequente,
tal joia cinza e azul e muita gente
se admirava de que mulher tão rica
ostentasse um berloque tão à toa!...
E ela dizia: “Vocês não sabem o valor
que este biju para mim significa:
é a prova mais sincera de um amor!...”
E quem sou eu para poder negar
que aquela fosse verdadeira união!...
Pois unida continuou essa família,
a joiazinha de pequena ostentação
sempre aquecida por um coração...
Os dois pendentes ao colo, na corrente,
pela sua respiração a balançar...
A lantejoula nunca se despregou
do pequeno coração cinza e valente,
nem a família jamais os desprezou...
EPÍLOGO
Há muitos anos foi esta história redigida;
não te garanto que seja verdadeira,
porque seria uma extrema coincidência
que assim tivesse ocorrido por inteira...
Para alguns triste, é narrativa alvissareira,
de pai a filho sempre a ser contada,
linda lembrança para a nossa vida!
Talvez, em algum lugar da Dinamarca,
tenha Andersen esse estojo contemplado
que o coração e a lantejoula abarca!...
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