sexta-feira, 20 de setembro de 2013





A NUTRIZ & MAIS
William Lagos


FACETAS XVIII -- A NUTRIZ I (14 JUL 06)

Bondosa é essa mulher que, na cozinha,
produz com grande esforço o alimento,
às vezes simples, de outras, um portento,
mas aplicada sempre; e acarinha

àqueles a quem serve, num sorriso,
ou nem sequer sorri, apenas serve,
e percebe o seu sucesso quando ferve
água para café, olhando o prato liso

que trouxe já da mesa, bem vazio,
deixando o estômago feliz e satisfeito,
ainda que o obrigado seja eructação...

e é então que se reforça no seu brio,
e a recompensa magra é seu direito
de comer o que sobrou da refeição...

A NUTRIZ II –18 AGO 13

Li certa vez, num romance de autor grego,
que rejeitar o alimento da mulher
é uma ofensa maior do que qualquer
rejeição outra...  De fato, não o nego...

Mesmo no amor, por mais que seja cego,
as mais das vezes é passivo seu mister:
ela se entrega ou só aceita quando o quer,
mais recebendo o fluxo do rego

que tomando parte ativa nesse ato,
até mesmo quando busca, em entusiasmo,
a maior satisfação de seu parceiro

e então se enobrece, ao simples fato
de partilhar com ele o mesmo orgasmo,
qual se fora seu momento derradeiro.

A NUTRIZ III

Mas quando vai preparar o alimento,
é meio mãe, mesmo inconscientemente.
E qual função da mulher mais pertinente
que dar a vida e a noção do sentimento?

Com o próprio sangue ela nutre seu rebento;
logo a seguir, em seu seio é nutriente;
pouco depois, é a mamadeira quente
e após papinha para o seu sustento...

Sempre acontece quando normal esteja
sua gestação, sem que o feto assim rejeite,
por um motivo qualquer, físico seja

ou da psique, quando amor não beija,
mas foi forçada ao nenê que agora aleite
e se rebele à situação que tal enseja.


A NUTRIZ IV

Basicamente, é mãe toda mulher,
pois para isso herdou seu organismo;
mesmo a freira sincera em seu teísmo,
que não pode ter os filhos que mais quer;

ou que, em violência biológica qualquer,
ficou solteira por força de um modismo,
malformação possuindo em cataclismo,
seu grão desejo sem poder satisfazer.

Mas normalmente guarda o instinto maternal
e se não pode adotar uma criança,
dedica-se a sobrinho ou a afilhado,

ou então inverte o sentido natural
e sobre um homem derrama sua bonança,
num incesto que não traz qualquer pecado.


A NUTRIZ V

Outras existem que derramam seu afeto
sobre gatos, cães ou outros animais;
pires de leite qual os fluxos naturais
(há quem dê mamadeira ao cão dileto);

pois, efetivamente, não é secreto
esse apego das mulheres mais normais
a algum felino.   Seus instinto maternais
sublimados em um bichano dialeto...

Porque miaus se assemelham a vagidos
e as carinhas dos bichos a nenês,
sem que cresçam demais e, junto ao peito,

os possam ter, em seu colo protegidos;
e mesmo em mães e avós tais coisas vês,
depois que os filhos se vão a estranho leito.

A NUTRIZ VI

É então que o ato de amor é positivo,
qual positivo é o cuidar de seus doentes,
trocas de fraldas em nenês, frequentes,
remédios e mingaus de modo ativo.

Por sorte, nas cidades não há motivo
comum de pranto por filhos falecentes;
mas certa morte veem em adolescentes
que quebram o umbílico, sem mais lenitivo.

Deste modo sua cozinha ela transforma
em quente útero de sabor a leite:
nela demonstra e controla seu amor

por aqueles que alimenta e que conforma,
sua nutrição ressurgindo o seu deleite
de alimentar o bebê com seu calor!...

ORNAMENTOS I – 19 AGO 13

Vive a mulher no meio de três lumes
que lhe despertam sensações contraditórias;
vendo no amado intenções exploratórias,
despertam nela, quentes, os ciúmes...

Quando seu faro sinta outros perfumes,
que seus não são, talvez de umas finórias,
desmentidas explicações perfunctórias,
surgem mais quentes ainda seus queixumes...

São três fogueiras de alheias labaredas,
que de um lado a expulsam a outro lado,
tal qual se chamas reais ali se erguessem

e só servissem de refrigério as ledas
lágrimas frias a brotar, ribeiro alado,
igual cachoeiras que então a protegessem.

ORNAMENTOS II

Sem dúvida, há razão nos seus queixumes:
tendem os homens para a promiscuidade;
mas usam outras, também, de falsidade,
por interesses reais ou azedumes...

Embora assim condenem os costumes,
é bem notória a competitividade:
de as outras superar, necessidade,
nesse jogo do amor cortantes gumes.

E é bem difícil aos homens resistir
a tais convites reais ou transitórios,
por mais que sintam o amor mais verdadeiro.

Branda tendência de aos lares destruir,
e então montar seus próprio ninhos decisórios
sobre os gravetos de um pranto derradeiro.

ORNAMENTOS III

E quando o choro escorre, qual cascata,
parte do cérebro com ele se derrete;
foge a razão no líquido confete,
enquanto em pérolas a alma se desata;

e em vão o médico chega e se intromete,
para dizer que é do sangue que se cata
esse líquido que em lágrimas se abata:
desce é da mente, por mais que se objete.

Porque o sangue se resfria no suor,
porém se aquece pelo pranteamento;
o coração só explode por injúrias,

enquanto a lágrima é joia furta-cor,
broto salgado que vem do pensamento,
purificando assim nossas lamúrias.

ORNAMENTOS IV

Poucos recordam que a palavra “lar”,
em sua origem, era apenas a fogueira
em um círculo de pedras, hospedeira
do alimento e proteção a conservar.

Daqui deriva, é claro, essa “lareira”,
em torno ao fogo seu calor a rebrotar,
como o antigo fogão da casa lar:
a ligação é fácil, corriqueira...

Mas como sempre se encontra confusão
entre a causa produtora e a consequência,
ergue-se o lar ao torno da lareira

e não o oposto, como a presente geração,
que vê em lareira uma nova conveniência,
faz conexão tão só novidadeira...


ORNAMENTOS V

De modo igual os lumes, rubras luzes
da flor vermelha e pura do passado...
O sol se esconde em cada ramo ressecado
e dessas chamas é o fulgor que cruzes

os dias de antanho com o porvir que esfuses,
nesse incêndio do presente consumado;
Lume da vida, líquido encarnado,
com que teu próprio caminho assim conduzes.

Fica assim essa coroa de queixumes,
a requeimar o feminino tirocínio,
mais atiçado ao fogo dos perfumes,

no imaginar de alheio lenocínio,
em seu tripúdio sob o manto dos ciúmes,
na rubra tiara do rompido raciocínio.

ORNAMENTOS VI

Desagradáveis que sejam os queixumes,
produzem rosas brancas de lamento,
entremeadas de vermelho, no ornamento
dos cravos verdes em calor de mil ciúmes.

E em tudo isso tremulam vagalumes,
que têm nos corações o seu assento;
por entre os lumes de seu convidamento,
lares se espelham em anéis como perfumes.

E que seria da mulher sem sua tristeza,
que como mãe e esposa a fortalece?
Cada queixume que destrata sua beleza

como um colar cristalino coalesce
e tais ciúmes que aparentam incerteza
são círios níveos ardentes como prece.

DESRITMO I – 20 AGO 13

SÃO ESSES VERSOS QUE REDIJO AGORA
O FRUTO MEIGO DE UM ÁRDUO PENSAMENTO,
A CONFISSÃO DE QUEBRADO JURAMENTO,
QUE HOJE DE MIM DISCERNO NESTA HORA?

OU SÃO OS VERSOS QUE PREMIA O OUTRORA
A REAL CONFIRMAÇÃO DESTE MOMENTO?
SÃO ELES QUE DESCREVEM SENTIMENTO
E ENTÃO FAZEM QUE EU O SINTA NESTE EMBORA?

FAÇO EU OS VERSOS OU SÃO ELES QUE ME FAZEM?
TALVEZ, NO FUNDO, EU NEM SEQUER EXISTA
(ESSE QUE PENSA ESTAR AGORA REDIGINDO),

MAS TAIS PALAVRAS SEJAM QUE ME ABRASEM
E ME CONVOQUEM PARA UM ALVO QUE CONSISTA
NOS DUROS VERSOS QUE ESTÃO ME DESTRUINDO.


DESRITMO II

DEDICO UM CERTO TEMPO A CADA DIA
A PERMITIR QUE FLUAM TAIS RASCUNHOS;
É A MIM QUE DEVORAM OS SEUS CUNHOS,
NESSA TINTURA DO INSTANTE QUE VIVIA.

EU PODERIA ME ESVAIR EM NOSTALGIA
OU VASILHAS CONFORMAR PELOS MEUS PUNHOS
OU DEDICAR-ME À MÚSICA EM COMPUNHOS
OU SÓ PASSEAR OLHANDO A GENTE QUE SORRIA.

EU PODERIA TRABALHAR NUM ESCRITÓRIO,
IR AO TEATRO OU ASSISTIR CINEMA,
PODERIA EM OUTROS BRAÇOS ME ESTIRAR;

TALVEZ AINDA, EM ESTUPOR PEREMPTÓRIO,
DORMIR O DIA INTEIRO, SEM MAIS PENA,
QUANDO EU MESMO ESCOLHERIA O QUE SONHAR!

DESRITMO Iii

OU A TARDE INTEIRA FAZER MEDITAÇÃO
E DEDICAR-ME AOS NECESSÁRIOS EXERCÍCIOS
OU QUIÇA ABANDONAR-ME A OUTROS VÍCIOS:
VIRAR BATATA DIANTE DA TELEVISÃO.

OU PODERIA ENTREGAR-ME À ORAÇÃO,
A LAMENTAR MEUS PRÓPRIOS MALEFÍCIOS
OU REALIZAR BENEVOLENTES BENEFÍCIOS
A TANTOS POBRES QUE A MEU REDOR ESTÃO.

AO INVÉS DE TUDO, EU ME DEIXO DOMINAR
POR ESTE TRANSE EM ALPHA OU LÁ O QUE SEJA
E DEIXO AOS VERSOS QUE ESCORRAM SEM PARAR,

SEM JAMAIS RECONHECER O QUE SE ENSEJA,
QUE EFEITOS POSSAM SOBRE OUTREM PERDURAR,
NA PALIDEZ DESTE AMOR QUE NÃO SE BEIJA.


SEVÍCIAS I – 21 AGO 13

TALVEZ NEM SAIBAS QUAL SIGNIFICADO
POSSUI O TERMO ADREDE ASSINALADO

TALVEZ MESMO O ENCARES COM MALÍCIA
E SÓ PENSES NO SEXUAL COMO SEVÍCIA

EMPREGO ALGUMA VEZ TERMO DOURADO
SEM DE ERUDITO QUERER-ME APRESENTADO

É QUE AS PALAVRAS ME ROLAM NA GARGANTA
COMO O CHILREAR que O ROUXINOL DESCANTA

ESSE PÁSSARO CUJO CANTO NUNCA OUVI
SALVO GRAVADO EM DISCOS QUE COLHI

MAS SENTIRIA GRADA SATISFAÇÃO
TÊ-LO AO ALCANCE DO OLHAR E DA AUDIÇÃO

SEVÍCIAS II

NÃO QUE QUISESSE TER A AVE SEVICIADO
NEM BUSCARIA SEQUER TÊ-LA TOCADO

PORÉM DIZEM QUE SEU CANTO É IRREPETIDO
PELO PASSADO JAMAIS SENDO CONTIDO

E EU QUE APRECIO TANTO A MELODIA
COM PRAZER AO ROUXINOL ESCUTARIA

POR ALGUNS DIAS SÓ PROVAVELMENTE
NO MEU ESPANTO DE SEU CANTO DIFERENTE

MAS SE DISCOS NO APARELHO PONHO A OUVIR
QUASE SEMPRE EU OS DEIXO A REPETIR

QUIÇÁ ATÉ ME CANSASSE O ROUXINOL
TAL QUAL NUNCA ME CANSA UM ARREBOL

SEVÍCIAS III

E SE FORÇADO ENTÃO FORA A ESCUTÁ-LO
SEM OUTRO SOLO DE DIFERENTE ABALO

TALVEZ AO ROUXINOL TÃO ALMEJADO
SEU CANTO TANTA DÉCADA ESPERADO

EU ACABASSE ABORRECIDO A SUSPIRAR
E O LONGO CANTO TERMINASSE POR ODIAR

E ENTÃO ME MANTERIAM NA GAIOLA
SEM QUE ENCONTRASSE FECHADURA OU MOLA

COM O PASSARINHO CANTANDO LÁ DE FORA
SEM QUE JAMAIS SE DECIDISSE A IR EMBORA

E EU VIVERA NESSA ETERNA IMPUDICÍCIA
AUDITIVA EM SUBMISSÃO A TAL SEVÍCIA


SEVÍCIAS Iv

HÁ MUITO TEMPO QUE ANOTEI O TERMO
PARA UM SONETO CONDUZIR A TERMO

E AQUI ME ACHO EM RIMAS PARALELAS
AO INCONSCIENTE COMO SEMPRE DANDO TRELAS

PLANEJARA PARA HOJE OUTRO DESTINO
MAS CIRCUNSTÂNCIA VEM E A TAL ME AFINO

TALVEZ POR GÊNIO, TALVEZ SÓ AUTOMATISMO
TALVEZ TALENTO, TALVEZ DILETANTISMO

E O ROUXINOL QUE SUA MÚSICA DESCANTA
ESCOLHE AS NOTAS OU AS FORMA SUA GARGANTA?

SE ALGUÉM ME LER VERÁ TODA A MALÍCIA
AO DESFRUTAR COMO TÍTULO A SEVÍCIA

SEVÍCIAS v

SE POR ACASO AO DICIONÁRIO FORES
PODERÁS DESVENDAR SEM ESTERTORES

QUE SEVÍCIAS NÃO PASSAM DE MAUS TRATOS
VIOLENTAS CHIBATADAS OU CONTATOS

DO MESMO MODO QUE O ROUXINOL DESCANTA
E QUIÇÁ SE APOQUENTE SUA GARGANTA

EU FAÇO VERSOS MIL SEM REPETIR
QUE SEJAM LIDOS GOSTO ATÉ DE ME ILUDIR

QUE ASSIM TIVESSE O LEITOR NA MINHA GAIOLA
E NÃO LHE DESSE fECHADURA OU MOLA

MAS REPETISSE MIL PALAVRAS COM PERÍCIA
EM MINHA PRÓPRIA VERSÃO DE UMA SEVÍCIA

MAGNETO I – 22 AGO L3

Os meus ímãs são rimas, são minas, são crimes
de tempo perdido em inútil vazão;
de nada me serve manter produção
de versos que leias, de versos que rimes.

Que a língua se perca no pouco que estimes
estames de times, de temas que são
do visgo que vejo de um só coração
cortado ao passado por setas de vimes.

Aquilo que escrevo comigo não levo:
deixei para trás, por detrás de minhas unhas,
pingado o meu sangue e as fontes dos ossos.

Aquilo que levo não é mais o que escrevo,
é o que cravam em mim suas múltiplas cunhas
na alma em remendos de antigos destroços.

MAGNETO II

A alma, contudo, após ser remendada
por pálidos pachos de dedos alheios
talvez seja mais forte por força dos meios
da cunha afiada em tal alma encravada.

Se minhalma rasgou tal cunha afiada,
fui eu que atraí seus atrozes meneios;
aos cortes me expus com escassos receios,
busquei esses talhos por força imantada.

E assim remendada, tal qual arlequim,
minhalma reflete menos partes de mim
que dalmas das gentes a quem atraí;

os forros dessalma um estranho jardim,
alternando carvão e perfeito jasmim
nos trapos da mente que assim constituí.


MAGNETO III

Destarte, se escrevo, não quero me impor.
A ideia é a oposta.  Se a alma ofereço,
nos versos esquálidos de pálido apreço
é o teu sentimento que espero compor.

Em cada farrapo um remendo de cor,
marcado de ti neste ímã que esqueço,
vibrando no éter, limites não meço,
quer venham prazer ou esgares de dor.

Que os ímãs de versos são só arcabouços,
varais, espantalhos, secos esqueletos:
só neles lerás o que neles puseres.

São grades maduras, são velhos, são moços,
buscando de ti, infiéis magnetos,
não mais e não menos que quanto me deres.

INSTRUMENTISTA I – 23 AGO 13

Como violoncelista, bem sei fracassei.
Eu nunca estudava, ninguém que me culpe,
que tempo não tive, sequer que me indulte
que em bem raras folgas também descuidei.

Fazia coisas demais na ocasião em que comprei
aquele arco antigo no estojo bem velho;
o lustro brilhava inda então como espelho;
trazia um manual e a mim mesmo ensinei.

Sem ter professor e sem ter compromisso;
de fato um título ainda tenho – bacharel
em música e harmonia, mas em lírico canto.

Instrumentos variados toquei além disso,
porém pratiquei sem brilhante laurel
e a meu violoncelo dediquei só meu pranto.

INSTRUMENTISTA II

Quem tudo quer, tudo perde.  Também eu perdi.
De há muito se foi minha voz empostada,
que em torno de mim só senti desprezada:
catarse eu encontro no que redigi...

Em outras empresas meu tempo assenti,
por outros empregos minha voz estragada,
até o violoncelo é carcaça queimada,
no incêndio da casa que há tempos sofri.

Redigir estar linhas incomoda-me um pouco,
que aos poucos somente renovei o perdido,
no início somente o que pagar eu podia.

E como já tinha certa fama de louco,
a amigos distantes dei meu preferido,
nos vastos circuitos da filatelia.

INSTRUMENTISTA III

Ao gume do tempo cumpri longa lida,
no ingrato mister de ser mais professor;
depois, lentamente, virei tradutor,
espelhando, talvez, biblioteca perdida.

De livros e discos retomei recolhida,
com máximo esforço e ingente suor,
sem jamais alcançar esse acervo maior
perdido no incêndio da casa esquecida.

Os livros que tenho são livros diversos,
diversos os discos que agora ajuntei,
diversos ainda são meus sentimentos,

em outros sentidos agora dispersos...
Porém em orquestras nunca mais eu toquei,
sem espaço na vida para mais instrumentos.

CORTEJO I – 24 AGO 13

a noite conhece a paisagem do dia?
como pode enxergar, se jamais alumia
nem rio
nem frio
que a fenda na estrada sequer pressentia
encontra uma sombra se não acendia
do breu
o seu véu?
olhando no escuro talvez eu nem creia
que exista essa noite que nada incendeia
nem calma
nem palma
talvez ela estenda seus fios numa teia
das horas do dia a roubar luz alheia

CORTEJO II

aguarda essa noite a passagem do dia
a noite profunda que então eu nem cria
no veio
do seio
do dia tranquilo que a noite não teme
ou será tão feroz que a noite é que geme
ao gume
do lume?
o dia quem sabe para a noite nos cegue
enquanto esse escuro de manso persegue
ao canto
sem pranto?
ou então ele foge tão só de passagem
em lento farol a esconder a paisagem

CORTEJO III

ele chega irradiante, exul de alegria
e em cavernas a noite então se escondia
ao cotejo
do pejo
e assim se aproveita tal qual fanfarrão
e a noite persegue em latidos de cão
(ou mia
esse dia?)
aquieta-se a noite e talvez adormeça
de medo do dia talvez desfaleça
é um guri
de gibi
e logo que acaba de vender seu jornal
o escuro retorna em azeviche caudal

CORTEJO IV

e retorna indolente a seu leito frequente
da paisagem candente ao frio conducente
sem brio
desse estio
é então que outro dia ele espanta em açoite
congregadas as nuvens ao som de um aboite
em tom
de bombom
e seguem-se ripas de nuance osmocolor
o dia a escorrer em fiapo indolor
sua cor
no estertor
nesse ínterim a noite que tudo domina
e em raios furtivos sua sombra fascina

CORTEJO V

ou então é o dia que assim evolui
e a sombra da noite derriba e então rui
no pago
alagado
mil setas de ouro o anil despertando
o arco-íris cinzor velozmente espantando
ao gris
do anis
quem manda de fato no eterno cortejo
existe uma luta ou a busca do beijo
na franja
laranja?
que fímbria se abre e que borla se agita
é belo o crepúsculo ou a aurora é bonita?

CORTEJO VI

no meu cativeiro a mistura versejo
só assisto se quero a ocasião desse ensejo
na hora
da aurora
ou contemplo impaciente essa réstia de beijo
que despede afinal o mesclado cotejo
no lusco
do fusco
mas ainda não sei como a noite caminha
enquanto o luar lá no céu se amesquinha
horizonte
sem ponte
e tampouco ainda sei como a noite faz sombra
sem luz pelo chão a servir-lhe de alfombra

gênesis I – 25 ago 13

há quem diga que o mar fecunda a terra
enquanto as ondas se espalham pela areia,
trazendo conchas e medusa que incendeia,
formando espuma e a roubando em eterna guerra.

sem duvidar, muita vida o mar encerra,
mas essa vida que na praia se volteia
em breve morre e só resta o que permeia
a areia sólida que um dia já foi serra.

porque o que o oceano nos traz são destroços,
madeira flutuante que talvez foi navio,
ou então tronco morto de sal calcinado,

as partículas são de miríades de ossos
que na praia derrama ao fragor de seu cio
tal qual tendo a areia então fecundado.


gênesis II

contudo, examinando com cuidado,
bem mais é a terra que fecunda o oceano:
correm os rios na direção do plano
e das cidades o despejo é derramado;

cada passo sobre a areia tem deixado
pequenas células em destroçar arcano:
raramente se percebe o seu descamo,
salvo se um talho em concha é provocado.

quem alimenta assim ao caranguejo
é a vasta viração que volta à terra,
desmanchada em seus ínfimos pedaços,

em vasto exército de insólito cortejo,
na escaramuça de perpétua guerra,
disfarçada na meiguice dos abraços.


gênesis III

pois raramente o oceano a terra aumenta;
bem ao contrário, faz é se expandir,
os sedimentos para o fundo a conduzir
a cada espasmo que o vendaval frequenta

a margem longa que a maré sustenta,
mil grãos de areia repartindo o reluzir,
o vento as dunas sempre a percutir,
no pouco a pouco em que a praia se despenca.

enquanto os rios, em deltas ou estuários,
ficam nutrindo sanguissedento oceano
com a lama que roubaram lá dos montes

e lentamente, em esforços milenários,
qualquer disputa vencem ao mar profano,
de cujas águas são também as fontes.

ALFOMBRA I – 26 AGOSTO 13

Os raios jovens do sol cada manhã
Entrançam-se em si com total liberdade;
Ao meio-dia tal luz mais intensa em verdade,
Cedo da tarde ainda bela e ainda chã.

Mas então já é luz em tendência a avelã,
Ouro velho a engastar só transitoriedade,
Fios de seda argentinos da inicialidade
Já em seu degradar a mais grosseira lã.

Como é transiente tal tapeçaria
Que a terra ostenta em torno de sua testa
Nesse inefável cambiante da alvorada,

Que dorme aos poucos, enquanto passa o dia,
Rebatendo e quebrando o luzir dessa festa
Em estrangulada cinza que reluz quase nada!

ALFOMBRA II

É vinda a noite, desfaz-se a tessitura,
Fica vazio de meadas o tear;
Seus cem novelos estão a repousar,
Os gobelins murchando em amargura.

Somente a lua, flebilmente pura,
Corta do fuso seu negro descansar,
Um fio de estrela põe a roca a funcionar,
Cai outra estrela em sua final agrura.

Então o vasto tapete vira esteira,
Meio incompleta nessa escuridão,
Bem mais áspera para a sola de teu pé,

Caso te atrevas à noite, alvissareira,
Com lamparina pendente de tua mão,
Pensando a senda iluminar com fé.

ALFOMBRA III

Como é ingênua, assim, cada manhã,
Pensando perdurar em seu fulgor!
Ela se expande e vela com ardor
Ao prado e ao lago, em esperança vã.

E quanto mais se esclarece a barbacã
Do castelo do dia, ao seu sabor,
Bem mais pródiga desgasta o seu brilhor,
Manhã dos pampas a dadivosa irmã.

Ela cuida com carinho do seu dia,
Desde nenê, ainda envolto em cueiros,
Sem franzir seu nariz perante o olor

E assim o vê rapaz, ao meio-dia,
Para depois enfraquecer sobre os potreiros,
Até mais nada restar do seu calor.

ALFOMBRA IV

E no entretanto, a manhã de novo volta,
A encarnar e a incandescer o dia,
A despertar todo o gado que dormia;
A sentinela do galo chama à escolta.

Alguma nuvem então talvez revolta,
Por não querer dar seu leite em hora fria;
Estranhamente, cada nuvem se alumia,
Perdendo o escuro quando seiva branca solta.

Não deveria cada nuvem ressecar,
Meio engelhada ao esquentar do dia,
Seus fios de lã mais negra produzindo

Para o desenho da gentil tapeçaria?
Mas são as nuances do sol se percutindo
Que um novo dia retrançam no tear...


ROSA OPULENTA I – 27 AGOSTO 13

neste soneto serei lugar-comum,
sem trazer violácea novidade
nem rubra alfombra de perenidade,
nem rosicler espanto do incomum.

falo da rosa qual já falou algum
poeta antigo em maior serenidade,
exponho o comparar sem ansiedade,
aberta a pétala a todos e a nenhum.

o que falta dizer da rosa rósea,
rosa formosa, de aroma portentosa,
rosa fechada em seu tímido botão?

o que falta falar da poderosa
rosa mimosa que à alma faz ditosa,
assim alheia a qualquer comparação?

ROSA OPULENTA II

eu poderia, é claro, repetir
conotações permeadas de malícia
ou construir revoadas de sevícia,
em erotismo de suave consentir.

ou poderia brando inferno pressentir
nesse novelo de pétalas sedosas,
em que se escondam aranhas perigosas,
veladas em perfume e a seduzir.

ou comparar sua constrição sensual
com atração apenas fescenina
cada homem a atrair para a armadilha.


que então se fecha, qual palpo mortal,
nesse sugar da seiva masculina,
com que nasce de Eva cada filha...

ROSA OPULENTA III

eu poderia citar rosa dos ventos
que nos arrasta ao ponto que fascina
ou nos conduz em rota peregrina,
través a multidão dos contratempos.

ou mencionar da rosa mística os eventos,
seja nos cantos de louvor em percalina,
lembrar a rosa-cruz de arcana sina,
a predizer ou provocar portentos...

porém prefiro esta rosa da poesia,
que em cada pétala fragrante me ilumina:
escravo sou de seu odor amável...

nos velhos livros em que murcha parecia,
na flor marrom que encontro e me fascina
de evocação real e insuperável...


  
A NUTRIZ & MAIS
William Lagos


FACETAS XVIII -- A NUTRIZ I (14 JUL 06)

Bondosa é essa mulher que, na cozinha,
produz com grande esforço o alimento,
às vezes simples, de outras, um portento,
mas aplicada sempre; e acarinha

àqueles a quem serve, num sorriso,
ou nem sequer sorri, apenas serve,
e percebe o seu sucesso quando ferve
água para café, olhando o prato liso

que trouxe já da mesa, bem vazio,
deixando o estômago feliz e satisfeito,
ainda que o obrigado seja eructação...

e é então que se reforça no seu brio,
e a recompensa magra é seu direito
de comer o que sobrou da refeição...

A NUTRIZ II –18 AGO 13

Li certa vez, num romance de autor grego,
que rejeitar o alimento da mulher
é uma ofensa maior do que qualquer
rejeição outra...  De fato, não o nego...

Mesmo no amor, por mais que seja cego,
as mais das vezes é passivo seu mister:
ela se entrega ou só aceita quando o quer,
mais recebendo o fluxo do rego

que tomando parte ativa nesse ato,
até mesmo quando busca, em entusiasmo,
a maior satisfação de seu parceiro

e então se enobrece, ao simples fato
de partilhar com ele o mesmo orgasmo,
qual se fora seu momento derradeiro.

A NUTRIZ III

Mas quando vai preparar o alimento,
é meio mãe, mesmo inconscientemente.
E qual função da mulher mais pertinente
que dar a vida e a noção do sentimento?

Com o próprio sangue ela nutre seu rebento;
logo a seguir, em seu seio é nutriente;
pouco depois, é a mamadeira quente
e após papinha para o seu sustento...

Sempre acontece quando normal esteja
sua gestação, sem que o feto assim rejeite,
por um motivo qualquer, físico seja

ou da psique, quando amor não beija,
mas foi forçada ao nenê que agora aleite
e se rebele à situação que tal enseja.


A NUTRIZ IV

Basicamente, é mãe toda mulher,
pois para isso herdou seu organismo;
mesmo a freira sincera em seu teísmo,
que não pode ter os filhos que mais quer;

ou que, em violência biológica qualquer,
ficou solteira por força de um modismo,
malformação possuindo em cataclismo,
seu grão desejo sem poder satisfazer.

Mas normalmente guarda o instinto maternal
e se não pode adotar uma criança,
dedica-se a sobrinho ou a afilhado,

ou então inverte o sentido natural
e sobre um homem derrama sua bonança,
num incesto que não traz qualquer pecado.


A NUTRIZ V

Outras existem que derramam seu afeto
sobre gatos, cães ou outros animais;
pires de leite qual os fluxos naturais
(há quem dê mamadeira ao cão dileto);

pois, efetivamente, não é secreto
esse apego das mulheres mais normais
a algum felino.   Seus instinto maternais
sublimados em um bichano dialeto...

Porque miaus se assemelham a vagidos
e as carinhas dos bichos a nenês,
sem que cresçam demais e, junto ao peito,

os possam ter, em seu colo protegidos;
e mesmo em mães e avós tais coisas vês,
depois que os filhos se vão a estranho leito.

A NUTRIZ VI

É então que o ato de amor é positivo,
qual positivo é o cuidar de seus doentes,
trocas de fraldas em nenês, frequentes,
remédios e mingaus de modo ativo.

Por sorte, nas cidades não há motivo
comum de pranto por filhos falecentes;
mas certa morte veem em adolescentes
que quebram o umbílico, sem mais lenitivo.

Deste modo sua cozinha ela transforma
em quente útero de sabor a leite:
nela demonstra e controla seu amor

por aqueles que alimenta e que conforma,
sua nutrição ressurgindo o seu deleite
de alimentar o bebê com seu calor!...

ORNAMENTOS I – 19 AGO 13

Vive a mulher no meio de três lumes
que lhe despertam sensações contraditórias;
vendo no amado intenções exploratórias,
despertam nela, quentes, os ciúmes...

Quando seu faro sinta outros perfumes,
que seus não são, talvez de umas finórias,
desmentidas explicações perfunctórias,
surgem mais quentes ainda seus queixumes...

São três fogueiras de alheias labaredas,
que de um lado a expulsam a outro lado,
tal qual se chamas reais ali se erguessem

e só servissem de refrigério as ledas
lágrimas frias a brotar, ribeiro alado,
igual cachoeiras que então a protegessem.

ORNAMENTOS II

Sem dúvida, há razão nos seus queixumes:
tendem os homens para a promiscuidade;
mas usam outras, também, de falsidade,
por interesses reais ou azedumes...

Embora assim condenem os costumes,
é bem notória a competitividade:
de as outras superar, necessidade,
nesse jogo do amor cortantes gumes.

E é bem difícil aos homens resistir
a tais convites reais ou transitórios,
por mais que sintam o amor mais verdadeiro.

Branda tendência de aos lares destruir,
e então montar seus próprio ninhos decisórios
sobre os gravetos de um pranto derradeiro.

ORNAMENTOS III

E quando o choro escorre, qual cascata,
parte do cérebro com ele se derrete;
foge a razão no líquido confete,
enquanto em pérolas a alma se desata;

e em vão o médico chega e se intromete,
para dizer que é do sangue que se cata
esse líquido que em lágrimas se abata:
desce é da mente, por mais que se objete.

Porque o sangue se resfria no suor,
porém se aquece pelo pranteamento;
o coração só explode por injúrias,

enquanto a lágrima é joia furta-cor,
broto salgado que vem do pensamento,
purificando assim nossas lamúrias.

ORNAMENTOS IV

Poucos recordam que a palavra “lar”,
em sua origem, era apenas a fogueira
em um círculo de pedras, hospedeira
do alimento e proteção a conservar.

Daqui deriva, é claro, essa “lareira”,
em torno ao fogo seu calor a rebrotar,
como o antigo fogão da casa lar:
a ligação é fácil, corriqueira...

Mas como sempre se encontra confusão
entre a causa produtora e a consequência,
ergue-se o lar ao torno da lareira

e não o oposto, como a presente geração,
que vê em lareira uma nova conveniência,
faz conexão tão só novidadeira...


ORNAMENTOS V

De modo igual os lumes, rubras luzes
da flor vermelha e pura do passado...
O sol se esconde em cada ramo ressecado
e dessas chamas é o fulgor que cruzes

os dias de antanho com o porvir que esfuses,
nesse incêndio do presente consumado;
Lume da vida, líquido encarnado,
com que teu próprio caminho assim conduzes.

Fica assim essa coroa de queixumes,
a requeimar o feminino tirocínio,
mais atiçado ao fogo dos perfumes,

no imaginar de alheio lenocínio,
em seu tripúdio sob o manto dos ciúmes,
na rubra tiara do rompido raciocínio.

ORNAMENTOS VI

Desagradáveis que sejam os queixumes,
produzem rosas brancas de lamento,
entremeadas de vermelho, no ornamento
dos cravos verdes em calor de mil ciúmes.

E em tudo isso tremulam vagalumes,
que têm nos corações o seu assento;
por entre os lumes de seu convidamento,
lares se espelham em anéis como perfumes.

E que seria da mulher sem sua tristeza,
que como mãe e esposa a fortalece?
Cada queixume que destrata sua beleza

como um colar cristalino coalesce
e tais ciúmes que aparentam incerteza
são círios níveos ardentes como prece.

DESRITMO I – 20 AGO 13

SÃO ESSES VERSOS QUE REDIJO AGORA
O FRUTO MEIGO DE UM ÁRDUO PENSAMENTO,
A CONFISSÃO DE QUEBRADO JURAMENTO,
QUE HOJE DE MIM DISCERNO NESTA HORA?

OU SÃO OS VERSOS QUE PREMIA O OUTRORA
A REAL CONFIRMAÇÃO DESTE MOMENTO?
SÃO ELES QUE DESCREVEM SENTIMENTO
E ENTÃO FAZEM QUE EU O SINTA NESTE EMBORA?

FAÇO EU OS VERSOS OU SÃO ELES QUE ME FAZEM?
TALVEZ, NO FUNDO, EU NEM SEQUER EXISTA
(ESSE QUE PENSA ESTAR AGORA REDIGINDO),

MAS TAIS PALAVRAS SEJAM QUE ME ABRASEM
E ME CONVOQUEM PARA UM ALVO QUE CONSISTA
NOS DUROS VERSOS QUE ESTÃO ME DESTRUINDO.


DESRITMO II

DEDICO UM CERTO TEMPO A CADA DIA
A PERMITIR QUE FLUAM TAIS RASCUNHOS;
É A MIM QUE DEVORAM OS SEUS CUNHOS,
NESSA TINTURA DO INSTANTE QUE VIVIA.

EU PODERIA ME ESVAIR EM NOSTALGIA
OU VASILHAS CONFORMAR PELOS MEUS PUNHOS
OU DEDICAR-ME À MÚSICA EM COMPUNHOS
OU SÓ PASSEAR OLHANDO A GENTE QUE SORRIA.

EU PODERIA TRABALHAR NUM ESCRITÓRIO,
IR AO TEATRO OU ASSISTIR CINEMA,
PODERIA EM OUTROS BRAÇOS ME ESTIRAR;

TALVEZ AINDA, EM ESTUPOR PEREMPTÓRIO,
DORMIR O DIA INTEIRO, SEM MAIS PENA,
QUANDO EU MESMO ESCOLHERIA O QUE SONHAR!

DESRITMO Iii

OU A TARDE INTEIRA FAZER MEDITAÇÃO
E DEDICAR-ME AOS NECESSÁRIOS EXERCÍCIOS
OU QUIÇA ABANDONAR-ME A OUTROS VÍCIOS:
VIRAR BATATA DIANTE DA TELEVISÃO.

OU PODERIA ENTREGAR-ME À ORAÇÃO,
A LAMENTAR MEUS PRÓPRIOS MALEFÍCIOS
OU REALIZAR BENEVOLENTES BENEFÍCIOS
A TANTOS POBRES QUE A MEU REDOR ESTÃO.

AO INVÉS DE TUDO, EU ME DEIXO DOMINAR
POR ESTE TRANSE EM ALPHA OU LÁ O QUE SEJA
E DEIXO AOS VERSOS QUE ESCORRAM SEM PARAR,

SEM JAMAIS RECONHECER O QUE SE ENSEJA,
QUE EFEITOS POSSAM SOBRE OUTREM PERDURAR,
NA PALIDEZ DESTE AMOR QUE NÃO SE BEIJA.


SEVÍCIAS I – 21 AGO 13

TALVEZ NEM SAIBAS QUAL SIGNIFICADO
POSSUI O TERMO ADREDE ASSINALADO

TALVEZ MESMO O ENCARES COM MALÍCIA
E SÓ PENSES NO SEXUAL COMO SEVÍCIA

EMPREGO ALGUMA VEZ TERMO DOURADO
SEM DE ERUDITO QUERER-ME APRESENTADO

É QUE AS PALAVRAS ME ROLAM NA GARGANTA
COMO O CHILREAR que O ROUXINOL DESCANTA

ESSE PÁSSARO CUJO CANTO NUNCA OUVI
SALVO GRAVADO EM DISCOS QUE COLHI

MAS SENTIRIA GRADA SATISFAÇÃO
TÊ-LO AO ALCANCE DO OLHAR E DA AUDIÇÃO

SEVÍCIAS II

NÃO QUE QUISESSE TER A AVE SEVICIADO
NEM BUSCARIA SEQUER TÊ-LA TOCADO

PORÉM DIZEM QUE SEU CANTO É IRREPETIDO
PELO PASSADO JAMAIS SENDO CONTIDO

E EU QUE APRECIO TANTO A MELODIA
COM PRAZER AO ROUXINOL ESCUTARIA

POR ALGUNS DIAS SÓ PROVAVELMENTE
NO MEU ESPANTO DE SEU CANTO DIFERENTE

MAS SE DISCOS NO APARELHO PONHO A OUVIR
QUASE SEMPRE EU OS DEIXO A REPETIR

QUIÇÁ ATÉ ME CANSASSE O ROUXINOL
TAL QUAL NUNCA ME CANSA UM ARREBOL

SEVÍCIAS III

E SE FORÇADO ENTÃO FORA A ESCUTÁ-LO
SEM OUTRO SOLO DE DIFERENTE ABALO

TALVEZ AO ROUXINOL TÃO ALMEJADO
SEU CANTO TANTA DÉCADA ESPERADO

EU ACABASSE ABORRECIDO A SUSPIRAR
E O LONGO CANTO TERMINASSE POR ODIAR

E ENTÃO ME MANTERIAM NA GAIOLA
SEM QUE ENCONTRASSE FECHADURA OU MOLA

COM O PASSARINHO CANTANDO LÁ DE FORA
SEM QUE JAMAIS SE DECIDISSE A IR EMBORA

E EU VIVERA NESSA ETERNA IMPUDICÍCIA
AUDITIVA EM SUBMISSÃO A TAL SEVÍCIA


SEVÍCIAS Iv

HÁ MUITO TEMPO QUE ANOTEI O TERMO
PARA UM SONETO CONDUZIR A TERMO

E AQUI ME ACHO EM RIMAS PARALELAS
AO INCONSCIENTE COMO SEMPRE DANDO TRELAS

PLANEJARA PARA HOJE OUTRO DESTINO
MAS CIRCUNSTÂNCIA VEM E A TAL ME AFINO

TALVEZ POR GÊNIO, TALVEZ SÓ AUTOMATISMO
TALVEZ TALENTO, TALVEZ DILETANTISMO

E O ROUXINOL QUE SUA MÚSICA DESCANTA
ESCOLHE AS NOTAS OU AS FORMA SUA GARGANTA?

SE ALGUÉM ME LER VERÁ TODA A MALÍCIA
AO DESFRUTAR COMO TÍTULO A SEVÍCIA

SEVÍCIAS v

SE POR ACASO AO DICIONÁRIO FORES
PODERÁS DESVENDAR SEM ESTERTORES

QUE SEVÍCIAS NÃO PASSAM DE MAUS TRATOS
VIOLENTAS CHIBATADAS OU CONTATOS

DO MESMO MODO QUE O ROUXINOL DESCANTA
E QUIÇÁ SE APOQUENTE SUA GARGANTA

EU FAÇO VERSOS MIL SEM REPETIR
QUE SEJAM LIDOS GOSTO ATÉ DE ME ILUDIR

QUE ASSIM TIVESSE O LEITOR NA MINHA GAIOLA
E NÃO LHE DESSE fECHADURA OU MOLA

MAS REPETISSE MIL PALAVRAS COM PERÍCIA
EM MINHA PRÓPRIA VERSÃO DE UMA SEVÍCIA

MAGNETO I – 22 AGO L3

Os meus ímãs são rimas, são minas, são crimes
de tempo perdido em inútil vazão;
de nada me serve manter produção
de versos que leias, de versos que rimes.

Que a língua se perca no pouco que estimes
estames de times, de temas que são
do visgo que vejo de um só coração
cortado ao passado por setas de vimes.

Aquilo que escrevo comigo não levo:
deixei para trás, por detrás de minhas unhas,
pingado o meu sangue e as fontes dos ossos.

Aquilo que levo não é mais o que escrevo,
é o que cravam em mim suas múltiplas cunhas
na alma em remendos de antigos destroços.

MAGNETO II

A alma, contudo, após ser remendada
por pálidos pachos de dedos alheios
talvez seja mais forte por força dos meios
da cunha afiada em tal alma encravada.

Se minhalma rasgou tal cunha afiada,
fui eu que atraí seus atrozes meneios;
aos cortes me expus com escassos receios,
busquei esses talhos por força imantada.

E assim remendada, tal qual arlequim,
minhalma reflete menos partes de mim
que dalmas das gentes a quem atraí;

os forros dessalma um estranho jardim,
alternando carvão e perfeito jasmim
nos trapos da mente que assim constituí.


MAGNETO III

Destarte, se escrevo, não quero me impor.
A ideia é a oposta.  Se a alma ofereço,
nos versos esquálidos de pálido apreço
é o teu sentimento que espero compor.

Em cada farrapo um remendo de cor,
marcado de ti neste ímã que esqueço,
vibrando no éter, limites não meço,
quer venham prazer ou esgares de dor.

Que os ímãs de versos são só arcabouços,
varais, espantalhos, secos esqueletos:
só neles lerás o que neles puseres.

São grades maduras, são velhos, são moços,
buscando de ti, infiéis magnetos,
não mais e não menos que quanto me deres.

INSTRUMENTISTA I – 23 AGO 13

Como violoncelista, bem sei fracassei.
Eu nunca estudava, ninguém que me culpe,
que tempo não tive, sequer que me indulte
que em bem raras folgas também descuidei.

Fazia coisas demais na ocasião em que comprei
aquele arco antigo no estojo bem velho;
o lustro brilhava inda então como espelho;
trazia um manual e a mim mesmo ensinei.

Sem ter professor e sem ter compromisso;
de fato um título ainda tenho – bacharel
em música e harmonia, mas em lírico canto.

Instrumentos variados toquei além disso,
porém pratiquei sem brilhante laurel
e a meu violoncelo dediquei só meu pranto.

INSTRUMENTISTA II

Quem tudo quer, tudo perde.  Também eu perdi.
De há muito se foi minha voz empostada,
que em torno de mim só senti desprezada:
catarse eu encontro no que redigi...

Em outras empresas meu tempo assenti,
por outros empregos minha voz estragada,
até o violoncelo é carcaça queimada,
no incêndio da casa que há tempos sofri.

Redigir estar linhas incomoda-me um pouco,
que aos poucos somente renovei o perdido,
no início somente o que pagar eu podia.

E como já tinha certa fama de louco,
a amigos distantes dei meu preferido,
nos vastos circuitos da filatelia.

INSTRUMENTISTA III

Ao gume do tempo cumpri longa lida,
no ingrato mister de ser mais professor;
depois, lentamente, virei tradutor,
espelhando, talvez, biblioteca perdida.

De livros e discos retomei recolhida,
com máximo esforço e ingente suor,
sem jamais alcançar esse acervo maior
perdido no incêndio da casa esquecida.

Os livros que tenho são livros diversos,
diversos os discos que agora ajuntei,
diversos ainda são meus sentimentos,

em outros sentidos agora dispersos...
Porém em orquestras nunca mais eu toquei,
sem espaço na vida para mais instrumentos.

CORTEJO I – 24 AGO 13

a noite conhece a paisagem do dia?
como pode enxergar, se jamais alumia
nem rio
nem frio
que a fenda na estrada sequer pressentia
encontra uma sombra se não acendia
do breu
o seu véu?
olhando no escuro talvez eu nem creia
que exista essa noite que nada incendeia
nem calma
nem palma
talvez ela estenda seus fios numa teia
das horas do dia a roubar luz alheia

CORTEJO II

aguarda essa noite a passagem do dia
a noite profunda que então eu nem cria
no veio
do seio
do dia tranquilo que a noite não teme
ou será tão feroz que a noite é que geme
ao gume
do lume?
o dia quem sabe para a noite nos cegue
enquanto esse escuro de manso persegue
ao canto
sem pranto?
ou então ele foge tão só de passagem
em lento farol a esconder a paisagem

CORTEJO III

ele chega irradiante, exul de alegria
e em cavernas a noite então se escondia
ao cotejo
do pejo
e assim se aproveita tal qual fanfarrão
e a noite persegue em latidos de cão
(ou mia
esse dia?)
aquieta-se a noite e talvez adormeça
de medo do dia talvez desfaleça
é um guri
de gibi
e logo que acaba de vender seu jornal
o escuro retorna em azeviche caudal

CORTEJO IV

e retorna indolente a seu leito frequente
da paisagem candente ao frio conducente
sem brio
desse estio
é então que outro dia ele espanta em açoite
congregadas as nuvens ao som de um aboite
em tom
de bombom
e seguem-se ripas de nuance osmocolor
o dia a escorrer em fiapo indolor
sua cor
no estertor
nesse ínterim a noite que tudo domina
e em raios furtivos sua sombra fascina

CORTEJO V

ou então é o dia que assim evolui
e a sombra da noite derriba e então rui
no pago
alagado
mil setas de ouro o anil despertando
o arco-íris cinzor velozmente espantando
ao gris
do anis
quem manda de fato no eterno cortejo
existe uma luta ou a busca do beijo
na franja
laranja?
que fímbria se abre e que borla se agita
é belo o crepúsculo ou a aurora é bonita?

CORTEJO VI

no meu cativeiro a mistura versejo
só assisto se quero a ocasião desse ensejo
na hora
da aurora
ou contemplo impaciente essa réstia de beijo
que despede afinal o mesclado cotejo
no lusco
do fusco
mas ainda não sei como a noite caminha
enquanto o luar lá no céu se amesquinha
horizonte
sem ponte
e tampouco ainda sei como a noite faz sombra
sem luz pelo chão a servir-lhe de alfombra

gênesis I – 25 ago 13

há quem diga que o mar fecunda a terra
enquanto as ondas se espalham pela areia,
trazendo conchas e medusa que incendeia,
formando espuma e a roubando em eterna guerra.

sem duvidar, muita vida o mar encerra,
mas essa vida que na praia se volteia
em breve morre e só resta o que permeia
a areia sólida que um dia já foi serra.

porque o que o oceano nos traz são destroços,
madeira flutuante que talvez foi navio,
ou então tronco morto de sal calcinado,

as partículas são de miríades de ossos
que na praia derrama ao fragor de seu cio
tal qual tendo a areia então fecundado.


gênesis II

contudo, examinando com cuidado,
bem mais é a terra que fecunda o oceano:
correm os rios na direção do plano
e das cidades o despejo é derramado;

cada passo sobre a areia tem deixado
pequenas células em destroçar arcano:
raramente se percebe o seu descamo,
salvo se um talho em concha é provocado.

quem alimenta assim ao caranguejo
é a vasta viração que volta à terra,
desmanchada em seus ínfimos pedaços,

em vasto exército de insólito cortejo,
na escaramuça de perpétua guerra,
disfarçada na meiguice dos abraços.


gênesis III

pois raramente o oceano a terra aumenta;
bem ao contrário, faz é se expandir,
os sedimentos para o fundo a conduzir
a cada espasmo que o vendaval frequenta

a margem longa que a maré sustenta,
mil grãos de areia repartindo o reluzir,
o vento as dunas sempre a percutir,
no pouco a pouco em que a praia se despenca.

enquanto os rios, em deltas ou estuários,
ficam nutrindo sanguissedento oceano
com a lama que roubaram lá dos montes

e lentamente, em esforços milenários,
qualquer disputa vencem ao mar profano,
de cujas águas são também as fontes.

ALFOMBRA I – 26 AGOSTO 13

Os raios jovens do sol cada manhã
Entrançam-se em si com total liberdade;
Ao meio-dia tal luz mais intensa em verdade,
Cedo da tarde ainda bela e ainda chã.

Mas então já é luz em tendência a avelã,
Ouro velho a engastar só transitoriedade,
Fios de seda argentinos da inicialidade
Já em seu degradar a mais grosseira lã.

Como é transiente tal tapeçaria
Que a terra ostenta em torno de sua testa
Nesse inefável cambiante da alvorada,

Que dorme aos poucos, enquanto passa o dia,
Rebatendo e quebrando o luzir dessa festa
Em estrangulada cinza que reluz quase nada!

ALFOMBRA II

É vinda a noite, desfaz-se a tessitura,
Fica vazio de meadas o tear;
Seus cem novelos estão a repousar,
Os gobelins murchando em amargura.

Somente a lua, flebilmente pura,
Corta do fuso seu negro descansar,
Um fio de estrela põe a roca a funcionar,
Cai outra estrela em sua final agrura.

Então o vasto tapete vira esteira,
Meio incompleta nessa escuridão,
Bem mais áspera para a sola de teu pé,

Caso te atrevas à noite, alvissareira,
Com lamparina pendente de tua mão,
Pensando a senda iluminar com fé.

ALFOMBRA III

Como é ingênua, assim, cada manhã,
Pensando perdurar em seu fulgor!
Ela se expande e vela com ardor
Ao prado e ao lago, em esperança vã.

E quanto mais se esclarece a barbacã
Do castelo do dia, ao seu sabor,
Bem mais pródiga desgasta o seu brilhor,
Manhã dos pampas a dadivosa irmã.

Ela cuida com carinho do seu dia,
Desde nenê, ainda envolto em cueiros,
Sem franzir seu nariz perante o olor

E assim o vê rapaz, ao meio-dia,
Para depois enfraquecer sobre os potreiros,
Até mais nada restar do seu calor.

ALFOMBRA IV

E no entretanto, a manhã de novo volta,
A encarnar e a incandescer o dia,
A despertar todo o gado que dormia;
A sentinela do galo chama à escolta.

Alguma nuvem então talvez revolta,
Por não querer dar seu leite em hora fria;
Estranhamente, cada nuvem se alumia,
Perdendo o escuro quando seiva branca solta.

Não deveria cada nuvem ressecar,
Meio engelhada ao esquentar do dia,
Seus fios de lã mais negra produzindo

Para o desenho da gentil tapeçaria?
Mas são as nuances do sol se percutindo
Que um novo dia retrançam no tear...


ROSA OPULENTA I – 27 AGOSTO 13

neste soneto serei lugar-comum,
sem trazer violácea novidade
nem rubra alfombra de perenidade,
nem rosicler espanto do incomum.

falo da rosa qual já falou algum
poeta antigo em maior serenidade,
exponho o comparar sem ansiedade,
aberta a pétala a todos e a nenhum.

o que falta dizer da rosa rósea,
rosa formosa, de aroma portentosa,
rosa fechada em seu tímido botão?

o que falta falar da poderosa
rosa mimosa que à alma faz ditosa,
assim alheia a qualquer comparação?

ROSA OPULENTA II

eu poderia, é claro, repetir
conotações permeadas de malícia
ou construir revoadas de sevícia,
em erotismo de suave consentir.

ou poderia brando inferno pressentir
nesse novelo de pétalas sedosas,
em que se escondam aranhas perigosas,
veladas em perfume e a seduzir.

ou comparar sua constrição sensual
com atração apenas fescenina
cada homem a atrair para a armadilha.


que então se fecha, qual palpo mortal,
nesse sugar da seiva masculina,
com que nasce de Eva cada filha...

ROSA OPULENTA III

eu poderia citar rosa dos ventos
que nos arrasta ao ponto que fascina
ou nos conduz em rota peregrina,
través a multidão dos contratempos.

ou mencionar da rosa mística os eventos,
seja nos cantos de louvor em percalina,
lembrar a rosa-cruz de arcana sina,
a predizer ou provocar portentos...

porém prefiro esta rosa da poesia,
que em cada pétala fragrante me ilumina:
escravo sou de seu odor amável...

nos velhos livros em que murcha parecia,
na flor marrom que encontro e me fascina
de evocação real e insuperável...


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