ACALANTO & MAIS – 9-18 JAN 2016
Novas séries de William Lagos
ACALANTO I – 9 JAN 16
Guardar-te-ei num recanto de meus olhos,
sem que o reparta com qualquer outra mulher;
esse recanto é teu, não de qualquer,
bem protegido de alumínio em fólios.
E no meu peito, guardar-te-ei nos molhos,
sem que das ondas sintas o gemer,
bem protegida, respaldada do sofrer,
talvez meu barco se espatife nos escolhos...
Guardar-te-ei num retalho da medula,
por onde passem tripúdios e arrepios
e tanto quanto eu experimento, saberás,
a controlar-me cada impulso e gula,
senhora plena dos ciúmes e dos cios,
mas que somente e toda a mim pertencerás.
ACALANTO II
Guardar-te-ei em minha bolsa lacrimal
e dali controlarás cada tristeza,
toda a emoção que desperta-me a beleza
ou marca o argueiro na ardência de seu mal.
Guardar-te-ei num recôndito abismal
de uma artéria a fluir em profundeza,
dentre a miséria sondarás a minha riqueza,
a minha memória vermelha em seu fanal.
Guardar-te-ei do ventre nas entranhas,
gentil senhora do fígado e dos rins,
do pâncreas e do baço a castelã;
se recusares, o coração me lanhas
pela vontade perdulária de outrossins,
mentira digna do que chamam de alma-irmã.
ACALANTO III
Guardar-te-ei na fendida comissura
de meus lábios, no instante do sorriso,
dobra de pele em seu rosado friso,
teu doce beijo tornado em ausência pura.
Guardar-te-ei na memória que perdura,
reconhecida nos ditamos de meu siso,
passado o tempo, glorificado o viso,
serás mais bela que a visão de minha loucura.
Pois assim te guardarei, luzeiro eterno,
carne de mim, teus ossos e teu pranto,
já que não posso mais no mundo te encontrar;
de mim farei teu recipiente terno.
o corpo inteiro a silvar teu acalanto,
até esse dia em que a aurora não brilhar.
MELANCOLIA I – 10
JAN 16
Amor é uma
mortalha resplendente,
luz de alabastro
tornada em ataúde;
amor é o lenho
que então de mim te escude
nos parafusos de
giro permanente.
Amor é essa
corbelha inconsequente
que aos demais
vivos da lembrança ilude;
amor é lápide
fria que não mude,
por mais que
permaneça em mim ardente.
Amor é gelo no
sudário da memória,
que ao
recordar-se, se modifica aos poucos;
perdida flor em
vaso bem barato,
curta lembrança
de fadada história,
um reflexo a
iridiar meus sonhos loucos,
espalhados pelos
ares sem recato.
MELANCOLIA II
Amor é a sombra
que de noite me acompanha
e que só posso
eventualmente divisar,
quando uma porta
me vem iluminar
ou uma janela de
que a fresta amanha,
amor é o poste
que meus passos ganha,
que a sombra aos
poucos força a se inclinar,
sobre essa luz
fugidia ao caminhar,
nesses insetos a
quem a luz assanha,
amor é o halo
invertido ao meio-dia
curta redoma sob
o meu pisar
que mal consigo
em volta divisar,
porém fiel, qual
inversa estrela-guia
que nunca deixa
de me acompanhar,
qual fôra haste
cortante de elegia
MELANCOLIA III
Amor é a seca
flor que já não brota,
porque floresce
uma só vez por estação,
iridescente que
seja o seu botão,
brilha uma vez e
seu fulgor se esgota;
amor,
reminiscência que nos dota
por toda a vida,
após sua prima gestação,
vazio aroma de
uma antiga sensação,
viva vitória
agridoce em sua derrota.
Não obstante,
dentro dalma esse ataúde
conserva viva a
fantasmagoria;
e contudo, essa
sombra é bem concreta,
amor de sonho com
que o amor se ilude
e dentro em si
guarda mais do que queria,
única estrela que
ao coração completa.
TRÊS MARIAS I – 11 JAN 2016
HOUVE UM AMOR PUERIL, QUE FOI MARIA
E ALGO MAIS, SÓ MARIA MUITO POUCAS
DE TOCAIAS ENCONTRAR NAS MESMAS TOUCAS;
HÁ MUITAS MENOS HOJE DO QUE HAVIA.
OS NOMES NOVOS DAS NOVELAS SE QUERIA,
ALGUNS ATÉ DIFÍCEIS DE DIZER, MAS ROUCAS
DEIXAVAM AQUELAS EM CEM CHAMADAS LOUCAS
QUE MIL RESPOSTAS A SEU REDOR SE OUVIA.
POREM ERA MARIA, ESSA PRIMEIRA,
PINTALGADO DE AMOR SEU CORAÇÃO,
QUANDO UM JOSÉ EM SEU CHAMAR PRESSENTE,
MAS ERA DE OUTRA MARIA ESSA ZOEIRA
E ASSIM MORREU NA HEMORRAGIA DA PAIXÃO,
NAS VASCAS DE UM AMOR CORTADO RENTE.
TRÊS MARIAS II
HOUVE OUTRO AMOR, ESSE JÁ ADOLESCENTE:
ELA ERA A MESMA, MAS DIVERSA JÁ SE CRIA,
FORÇADA AINDA A CHAMAR-SE DE MARIA,
BEM ENTERRADO O VELHO AMOR JACENTE.
PORÉM MARIA (E ALGO MAIS) ESTAVA CRENTE
QUE OUTRA ERA, POIS CRESCERA E VIA
QUE OUTRO JOSÉ PELO MUNDO ENCONTRARIA
E HÁ MAIS JOSÉS HOJE EM DIA, REALMENTE.
EMBORA ALGUNS ATENDAM SÓ POR ZECA,
OUTROS POR JUCA E ATÉ MESMO POR ZEZINHO,
VÊ-SE JOSÉ (E ALGO MAIS) EM CADA CANTO.
CORREU A LÁGRIMA DE SEUS OLHOS, SECA,
POBRE MARIA, DE AMOR GRANDE E PEQUENINHO,
QUE SÓ LHE TROUXE OUTRA VEZ O DESENCANTO!
TRÊS MARIAS Iii
PASSOU-SE O TEMPO, CONTINUOU SENDO MARIA
E POR DEZENAS DE JOSÉS DESPETALOU-SE;
NENHUM JOSÉ POR ELA APAIXONOU-SE,
POR MAIS VARIADA A MANEIRA QUE OS QUERIA.
PENSOU SER SANTA, MAS SER SANTA NÃO PODIA,
QUERIA MESMO A UM JOSÉ TODA ENTREGAR-SE;
QUERIA SER-LHE FIEL E CONSERVAR-SE
PARA O ALTAR DE SEU JOSÉ EM ROMARIA.
PENSOU ENTÃO SER BREJEIRA E PROSTITUTA
QUE ESSES JOSÉS DE HOJE NÃO ESPERAM
E COMO AMANTE CONQUISTÁ-LOS EM PORFIAS,
MAS FALECEU ESSA TERCEIRA APÓS A LUTA
E SEUS JOSÉS, NO FINAL, SE DISPUSERAM
SOBRE SUA COVA A PLANTAR PÉ
DE TRÊS-MARIAS.
MARIPOSAS
DE CRISTAL I – 12 JAN 16
Ninguém
obriga um verso a ter beleza;
Poderá
apenas demonstrar comedimento;
Pode
ser puro em seu justo julgamento,
Pode
ser forte em toda a sua franqueza.
Pode
ser feroz, violento com certeza
Parecer
mesmo merecer confinamento;
Pode
ser frase de surpreendente efeito,
O
que não pode é demonstrar fraqueza.
Precisa
o verso possuir algo a te dizer,
Que
esteja fora do lugar-comum,
Que
nada seja do que tantos já disseram;
Caso
contrário, só lhe resta perecer,
Ao
demonstrar-se sem valor algum,
Senão
àquelas que por igual sofreram.
MARIPOSAS
DE CRISTAL II
Ninguém
obriga algum verso a ter adejo,
No
ar suspenso tal qual um colibri;
Pode
ser um marimbondo que temi,
O
seu ferrão a me açular o pejo.
Ninguém
se obriga a ver nele quanto vejo,
Esse
momento divino em que até cri,
Na
acusação informal do bem-te-vi,
A
negra eça transportada por cortejo. (*)
(*)
Estrado para o transporte de um ataúde.
Também “essa”.
Mas
certamente mediocridade pôr em fuga,
Não
que busque atenazado o original, (*)
Que
nesse caso seria formal e duro,
(*)
Com grande esforço.
Mas
que flua como espuma, sem ter ruga,
Na
busca triste da mariposa de cristal,
Que
se espedaça por ter temor do escuro...
MARIPOSAS
DE CRISTAL III
Ninguém
obriga um verso ao nascimento:
Quem
se esforçar, se atola em seu fazer;
Quando
ele eclode, explode em seu nascer,
Qual
deiscência da antera em seu momento. (*)
(*)
Quando a ponta do estame solta o pólen.
Ninguém
obriga do verso o escorrimento:
Esses
que o tentam, irão se arrepender,
Nesse
esforço de palavras escolher,
Sem
que elas surjam de espontâneo alento.
Que
mariposas nunca foram borboletas:
Suas
asas cinzas adejam em negror,
Para
queimar-se ante pálido lampião;
Mas
mariposas de cristal são mais atletas:
Elas
se partem num momento de esplendor,
Por
adejarem de em torno a um coração!
Saquinhos de Pipoca 1 – 13 jan 16
Dentro dos termos da perpendicularidade
Os sentimentos se fixam firmemente;
São expostos nos altares para o crente,
Pombas votivas para toda a humanidade.
Não somos seres da horizontalidade;
Nem todo homem considera pertinente
Ante o conjunto dos dogmas silente,
Austera mostra de especificidade.
Em nossos termos de verticalidade,
Nada mais sobra senão o obrigatório
Dessa hierarquia que foi
antes hegemônica. (*)
(*) Dominante.
Nos resta apenas a diagonalidade,
Nesse texto retilíneo e objurgatório, (*)
Em que uma rima é tão só sílaba tônica.
(*) Condenatório, áspero, censurador.
Saquinhos de Pipoca 2
Talvez o título te pareça meio estranho,
Mas todo aspecto da vida é um pipocar!
Os verdadeiros sentimentos a alijar,
Querendo demonstrar maior tamanho!
Buscando em vão das rimas o amanho,
Tantos no verso livre a se encostar,
Muleta triste qual milho a rebentar,
Da inspiração somente um pobre lanho.
Assim eu brinco com a mediocridade,
Nestes meus versos de horizontalidade,
Que delineio em perpendicular,
Mas com ideias de verticalidade,
Em novo ângulo da diagonalidade,
Na bizarria de estrelas ao luar!
Saquinhos de Pipoca 3
Porque a pipoca, se pensares bem,
É ícone entranhado em fantasia,
Desde o cinema a que a gente ia
Até o sofá de tua tevê também...
A pipoca é complemento que nos vem,
Sabor de infância que se intermedia,
Com as cascas e piruás que se perdia,
Na identidade que com o ator se tem.
E quem nos diz que um saco de pipoca,
Comprado casualmente em plena rua,
Não nos desperta a fantasia vertical?
É que na vida plena nos enfoca,
Tirando a mente da certeza nua
Desse futuro tão somente horizontal!...
CHARRUA EMBOTADA I
(revisitada) – 26/8/07
Dizem que as rugas
mostram sofrimento,
as agruras da vida, a
dor, trabalhos,
os desenganos, tantos
atos falhos,
que nos acometeram num
momento...
Eu deveria ter no rosto
o julgamento
sulcado de gilvazes e
dos malhos (*)
das agonias que passei,
múltiplos talhos
anteriormente a
roubar-me algum alento.
(*)
Cicatrizes no rosto.
E assim não é. Por
toda a minha idade,
meu rosto de
experiências tão frequentes
não mostra o efeito
retalhado assim.
Nessa mentira que não é
felicidade,
dessa maneira que
surpreendo ausentes
tantas rugas que deviam
estar em mim.
CHARRUA EMBOTADA II – 14
JAN 16
Se o sofrimento nos traz
melancolia,
eu deveria mostrar mais
pessimismo,
a lamentar com bastante
saudosismo
os meus transatos
momentos de alegria; (*)
(*) Passados.
se desapontamento
qualquer então viria
como apanágio de todo o
romantismo,
por que demonstro sempre
um otimismo,
por mais dura a agressão
que me feria?
Quem sabe se as escondo
unicamente
e trago a alma toda
amarfanhada
por cada traço de rancor
e de amargura?
E que não mostro rugas,
simplesmente,
por ter certeza, se bem
jamais justificada,
de algum futuro pleno de
ternura...?
CHARRUA EMBOTADA III
Não sou só eu. O tempo é uma charrua
que à alma e ao ânimo
permanente ara
ou é a alma então, que
de sua forma rara
ao tempo rasga, quando
tristeza estua...
De fato é o tempo
indiferente, visão nua
e transparente,
invisível por amara
que com os humanos em
constância se depara:
nossa amargura é que o
fere como pua!
Ferido o tempo, na
tristeza que o desgasta,
por mais que seja uma
entidade desconforme,
sangra mais horas, mais
meses e semanas
e assim que pode, bem
mais de nós se afasta,
buscando apenas o
otimismo que o adorne,
sugando a vida se o
pessimismo chamas.
CHARRUA
EMBOTADA IV
Pensa
então bem, se viver queres melhor,
que
existe o tempo a teu lado, permanente;
este
percebe teu desdém inconsequente
e
não se agrada de sentir o teu rancor.
Ao
pessimista irá dar tempo menor,
que
a vida não se mede tão somente
em
dias e meses de sorte descontente,
mas
na alegria, em ternura e por calor.
Lembra
do tempo, em sua fidelidade
e
não lhe jogues ossos como a um cão,
pois
te merece o melhor que podes dar;
não
que precises fingir felicidade:
alegra
o tempo com o dom do coração,
que
com bons tempos saberá te presentear...
TRADUTOR I
(revisitado) – 27/8/2006
Se uma mulher
desperta-me a cobiça,
não é que a
queira de fato. Se a acho bela,
o que desejo é
o bulício da procela,
dentro em meu
coração, que mais o atiça
para criar mil
versos, do que à liça
irá lançar-me,
na conquista dela...
Não é que não
deseje estar com ela,
mas quero muito
mais essa castiça
inspiração
marchetada de desejo.
No fim das
contas, não passa de pretexto
e, a certo
ponto, sua posse lesaria
o quanto mais
anseio, não por pejo,
mas por
querê-la inscrita no contexto
muito mais duradouro
da elegia..
TRADUTOR II – 15 JAN 16
Já muitas vezes algo assim falei:
quanto desejo é a novel inspiração,
pequeno furo que me faz ao coração
cada perfume e sorriso que encontrei.
E quantas vezes a posse descartei
por esse egoísmo de longa duração;
se a alguém tomasse, deveria dar-lhe a mão
e reconheço que frequente a recusei.
Preciso dela para outro objetivo:
como posso escrever, se a alguém abraço?
Como perder-me em um beijo transitório?
Quando sinto ao coração pendor altivo,
que valha muito mais deixar o traço
de minha passagem por este mundo inglório.
TRADUTOR III
Quiçá devera novamente a algum apelo
atender, tal qual fiz no meu passado;
mas amor torna o peito atribulado:
é necessário ao bem mostrar desvelo...
Pois quem nos busca, possui algum anelo
e se a aceitamos, nada pode ser negado,
ficando o anseio assim despedaçado:
se amor aceito, a inspiração congelo...
Mas na verdade é até motivo de tristeza
viver assim, em altruísmo limitado,
por pequenos favores demonstrado,
mas sem real amor, só a gentileza,
enquanto firme permanece a armadura,
no azul gelado de minha angústia pura.
TRADUTOR IV
Então é isso
que faço, ao traduzir
meus
sentimentos e minhas aberrações,
nestes meus
versos de atrozes multidões,
a que permito
diariamente me ferir...
Quando traduzo,
mal consigo me iludir
que minhas
sejam tais demonstrações;
são sentimentos
alheios aos que expões
em cada livro
que roubo a meu dormir.
E assim meus
dedos escorrem desde o peito
mil ilusões que
nem sequer são minhas,
mil sentimentos
a que busco me furtar,
nessa amargura
de um solitário leito,
em que me
abraço a fantasmas pequeninhas
e nesses versos
ejaculo o meu penar...
REGRAS DA VIDA
XXXIV (34)
É impossível que se
entenda tudo:
esse povo se comporta
estranhamente...
Se de entender a mim
sequer me iludo,
muito menos saberei de
tanta gente
que me rodeia e nem
sequer estudo...
Apenas observo,
complacente
com o inesperado
proceder, frequente,
do olhar que é cego e do
ouvido mudo.
É desse modo que
as coisas acontecem:
nos tomam de
surpresa, nessas vidas,
por mais que compilemos
novos dados...
Até quem mais amamos...
Nos esquecem
por quaisquer coisas que
tenham preferidas,
sem que por isso sejamos
desprezados.
BRIC-À-BRAC I – 16 JAN 16
Sempre tive para mim que inteligência
é o talento de se encontrar respostas,
para os problemas com que te desgostas,
bem depressa ou por atos de paciência...
Pois na alma remanesce certa ardência,
caso aos problemas apenas dês as costas,
mas quando a qualquer deles arrostas,
achas tesouro, mesmo em breve permanência.
Assim eu busco a fenda que aparente
qualquer problema que me alcance a mão,
com pertinácia, até que chega o instante,
depois de longo tempo --- e finalmente
o enigma se quebra e a solução
surge na mente com um brilho de diamante!
BRIC-À- BRAC II
Contudo, existe grande diferença
entre se achar rapidamente a solução
ou após tempo de meditação,
nesse balanço de situação bem tensa.
A intuição se revela bem mais densa
do que o raciocínio em profusão;
dedutiva ou indutiva, qual razão
melhor marca o processo que se pensa?
E nesse caso, não seria bem melhor
achar a solução sem grande esforço,
revelada pelas redes cerebrais...?
E então, confessaria, sem rancor,
que essa carga pendurada ao dorso
é transportada com esforço até demais!
BRIC-À-BRAC III
Escutei, certa vez, um aforismo:
que por difícil que o problema se apresente,
tem solução veloz e inteligente...
somente errada... como um cataclismo.
Assim, ao enfrentar pequeno abismo,
confio mais no raciocínio ingente,
que os prós e contras pesa diligente,
até que seja vencido o quanto cismo.
Mas não nos versos, porque sua solução
me surge facilmente e bem depressa...
Mas terá sido a melhor, na realidade?
Ou então sofre qualquer degradação,
na rapidez com que da mente egressa,
assim aceito com tal facilidade...?
BEIJO DO SOL I (para Edgard) – 17 JAN 16
A relva que brota a cada primavera
no subsolo tem firme a sua raiz;
não brota a relva somente porque quis:
a terra inteira a sua força regenera.
Destarte, ao ser queimada não se altera,
nem quando o gado masca o chão em giz;
quando há umidade, a experiência diz:
brota a semente após sua longa espera.
E mesmo quando a raiz antiga morre,
novas raízes a semente espalha
e a vasta rede assim se recupera,
que a relva vive enquanto a seiva escorre,
quando invisível, muito além se esgalha
e a nova alfombra verde então se gera. (*)
(*) Tapete.
BEIJO DO SOL II
O gado sabe que deve respeitar
essas raízes do capim subjacentes,
seus passos mansos a repetir frequentes,
um pouco adiante, sem raízes devorar.
Também cavalos, em seu alimentar,
solo não despem, da relva são clementes
e sabem procurar tufos, pacientes,
para esse substrato preservar...
Dizem produz algum veneno esse capim,
ao “pressentir” que está sendo devorado
e os animais assim percebem ser a hora
de seu pastar levar adiante, enfim,
caso contrário, será tudo rejeitado:
sabedoria genética do outrora...
BEIJO DO SOL III
Porém com as árvores sucede diferente:
suas raízes são mais sustentação
e raramente muito longe estão,
não se entrelaçam às raízes de um parente.
desmatamento, por isso, é mais premente
sobre a arbórea vida, quando em vão
se espera surja uma nova brotação:
bem rara é a árvore a rebrotar frequente.
Depende mais do vento a sua semente,
que de novo se arraigue, em velho rito,
a exceção mais evidente é o eucalipto,
Quando cortado, se num esforço ingente,
as suas raízes enterrares com cuidado,
depressa surge um renovo a cada lado.
BEIJO DO SOL IV
É por isso que tal árvore é riqueza,
evoluída ante os desertos australianos,
pela aridez e o sol os seus reclamos,
consegue erguer-se reta, em altiveza,
muito mais que a tal altiva natureza
da mata antiga, em cipoais insanos;
quando queimada para plantio em afanos,
depressa perde do solo a fortaleza.
Este costume das queimadas não chegou
trazido por europeus ou africanos:
vem bem de antes da colonização.
Na ecologia o ameríndio não pensou,
muito menos até do que os romanos,
querendo apenas a imediata plantação.
BEIJO DO SOL V
Depois partiam, queimando mais adiante,
desgaste rápido da fertilidade,
na maioria canibais, é bem verdade,
não nos servem de exemplo neste instante.
Pois veja bem, não era fome delirante,
qual tanta vez assolou a humanidade;
invernos longos ou o vagar na imensidade
de tristes balsas após naufrágio impante.
Havia peixe de sobra e muita caça;
canibais só se mantinham por prazer,
para comer as virtudes do inimigo,
que muita vez tomava até por graça
ou como honra que o fizessem perecer,
para à sua força e coragem dar abrigo...
BEIJO DO SOL VI
Assim se explica o mistério desses Maias,
que abandonavam o fausto das cidades,
para depois reproduzir suas qualidades
em longes terras, suas pirâmides tão gaias.
(*)
(*) Alegres, belas, imponentes.
Eles queimavam a floresta em longas saias
ao redor de seus templos, sem maldades;
quando esgotadas suas fertilidades,
queimavam mais adiante em vastas raias.
Até ficarem tão longe as plantações
que dias levavam para trazer colheita;
então mudança seus pajés determinavam,
levando séculos até novas brotações:
campos desertos, mas que o Sol beija e ajeita
e enfim florestas seus templos abafavam...
ALMÁCEGO DE VERSOS I – 18
JAN 16
(Caixote ou canteiro de
mudinhas para depois transplantar.)
Tuas mãos às minhas
amarradas pelas veias;
um pouco as tuas,
entranhadas em minha pele;
um pouco as minhas, que
meu destino sele,
na mútua inundação,
virentes peias...
Tu me alimentas e em mim
fazes tuas ceias,
antes que o sangue
coagulado se congele;
meu coração tomas de
assalto, moras nele;
abro meu cérebro, que
meus segredos leias.
Esta é sem dúvida a
relação mais visceral,
muito mais carne do que
sentimento,
teus ossos dormentados
pelos meus;
na audição, por todo o
tato e no visual,
perda completa em tal
consentimento:
tua voz é minha e meus
cantos serão teus!
ALMÁCEGO DE VERSOS II
Assim nos brotam, no
âmago do peito,
flores miríficas de
relacionamento; (*)
amores leves nos sorrisos
de um momento,
pequenos seres que da
vida têm conceito.
(*) Maravilhosas.
Lânguidos filhos a que
dou pleno direito
de me fluírem pelos
dedos, tingimento
para o papel da
inspiração o alento,
que reconheço, quando a
ti faço meu preito.
Se não fosses como és,
não escreveria
a profusão de mentiras e
vaidades,
na multidão de irreais
veracidades,
nem pelo mundo, então,
distribuiria
meus versos, todos teus,
querendo ou não,
mil parasitas a me brotar
do coração!
ALMÁCEGO DE VERSOS III
Sem as tuas veias a
prender-me, perderia
esse motivo que me faz
tanto escrever;
felicidade não só tenho a
descrever:
canto tuas zangas, as
ausências, zombaria.
Sem essas mágoas que tua
vida me traria,
o verde almácego proposto
a meu colher,
não notaria dentro em ti
toda a mulher,
que então suas mil
variações me brindaria.
Nessas tuas pétalas
abebera-se meu canto,
que lançam ramos, vastas
trepadeiras
de tanto quanto é humano
na abrangência
e da ardência me protegem
qual um manto,
vasto coral de jograis e
carpideiras,
que me conserva o peito
em incandescência!
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