CALOR DE GATO – 24/10/2010
WILLIAM LAGOS
CALOR DE GATO
I
A gata me arranha no
canto do olho,
se esconde depressa se
a olho de frente;
espia debaixo do
armário, contente,
esquiva de mim se
a carinho me antolho.
A gata sem cauda
idêntico escolho
me mostra, solerte. Se
expõe claramente
até que a procure e
então, simplesmente,
se oculte de mim, sem
deixar-me um espólio.
Pois bem mais sincera
é assim a cadela;
em busca de afago se
achega, fiel:
só os dedos me lambe,
em agradecimento.
Mas essa mulher que se
mostra à janela
é igual que uma
gata. Acena com mel
e só fel me concede se
ali me apresento...
CALOR DE GATO II
Minha amada era
agridoce,
por vezes, puro
amargor
e, com todo o meu
amor,
quando dela tomei
posse,
esforcei-me então, que
fosse,
por ação do meu calor,
abandonando essa dor,
pois só doçura lhe
trouxe!...
E a meta foi
alcançada,
sua tristeza
transformada...
Pois recordo, em minha
paixão,
o sabor de minha
amada:
ficou tão adocicada
que, no fim, virou
pirão!
CALOR DE GATO III
Um gato dorme
aqui. Na vida, apenas,
comeu, dormiu, sem
perdão e sem ter penas,
sem do trabalho ter
erguido o véu...
Adolescente eterno e
protegido,
em sua almofada sempre
recolhido,
talvez sonhando com um
felino céu...
Dizem alguns que são
os defensores,
que maus espíritos
afastam do lugar:
como os Lares,
protegem cada lar
e enquanto dormem
combatem dissabores.
São bonitos e
elegantes, quais amores
e certamente nunca
irei os maltratar:
matar um gato traz
sete anos de azar
e sempre servem de
modelos aos pintores...
CALOR DE GATO IV
Talvez quisera ser
também um gato:
me empregaria de
coletor de impostos;
nas igrejas o
ofertório, sem desgostos,
os fiéis encarando sem
recato...
Processaria a mil por
desacato,
por detrás de meus
bigodes tão lustrosos
e calçaria sapatos
luminosos,
minha cauda erguida em
portentoso fato...
Ou talvez não... Pois sendo o coletor,
embora sustentado
assim por taxas,
no fim das contas,
precisaria trabalhar...
E para que lançar-me
em tal labor,
se me posso enroscar
em quaisquer caixas,
passando o dia inteiro
a ressonar?...
CALOR DE GATO V
Com meus bigodes, eu domino o mundo,
pois me transmitem muita informação,
não tenho apenas do faro a profusão,
mas esse eco do meu miar profundo.
Caminho sem sujar-me pelo imundo
escuto mais que a humana geração
meus olhos perfurando a escuridão
que me conferem um controle mais rotundo.
Olfato e paladar melhor que o teu
ostento igual que a multidão felina,
também melhores meu tato e a audição,
meu corpo inteiro mais belo do que o seu,
por isso é justo que eu ganhe a peregrina
g(r)atuita oferta de uma boa ração!
CALOR DE GATO VI
Talvez até me chamem
preguiçoso,
pois passo a vida
calmo e relaxado;
sob os raios do sol
vivo estirado,
quando caminho, meu
passo é langoroso,
mas quando quero, nem
um pouco vagaroso:
em instante mudo após
ser excitado,
domino a casa inteira
em salto airado,
depois me aquieto e
mostro-me formoso...
Afinal, é para isso
que sou gato:
sobre as poltronas
demonstro ser enfeite,
meus ancestrais
egípcios endeusaram
e permanece o
portentoso fato
de que sou belo para o
teu deleite,
mas que teus
ancestrais não me domaram!
CALOR DE GATO
VII
A casa é minha quando
à noite eu mio:
feroz domínio de todos
os telhados,
nos quais percorro futuros
e passados,
domino o barco do
convés ao lio!...
Sou timoneiro do mundo
que assim crio;
os inquilinos das
casas desprezados,
porque nós somos
senhores cortejados
por mais que a tais
despreze o nosso brio!...
Esses cães que nos
latem, impotentes,
incapazes de pular
para as alturas,
só uivam contra nós de
pura inveja!...
Enquanto os astros nos
veem, benevolentes,
da natureza as
gerações mais puras,
embora apenas
suportemos quem nos beija!...
CALOR DE GATO VIII
Se há uma coisa
intolerável e isso é quando
alguns humanos me
retardam a comida;
pouco importa que seja
um gato sem guarida,
jamais se podem
subtrair ao nosso mando!...
Feitas as contas, essa
gente é só um bando
de seres inferiores,
dos quais a inteira vida
nos deve ser
devotada... e concedida
à minha proteção por
onde eu ando!...
E se pensam que eu
deva me abaixar
e fingir pelo que
fazem gratidão,
eles que aprendam a
respeitar-me o orgulho!...
Se não quiserem, por
bem, me alimentar,
quando algum prato eu
vir sem proteção
com prazer nele exerço
meu esbulho!...
CALOR DE GATO IX
Se me tratam com
respeito, é diferente:
até me esfrego para
deixar meu cheiro;
minhas enzimas
demarcando esse terreiro;
quando isso faço,
demonstro a toda a gente
que a mim pertencem de
forma permanente
e que deles é a honra
se me abeiro...
Mas se outro macho
surge, bem ligeiro
defenderei meu
território ferozmente!...
Ele que encontre seus
escravos noutra parte:
sempre se acham as
mulheres solitárias
ou muitos homens já
bem desiludidos,
a quem um falso amor
já fez descarte
e que lhe possam
servir como alimárias,
mil privilégios por
sua vinda concedidos!...
CALOR DE GATO X
Porém não sinto um
resquício de respeito
por tais felinos que
desde o nascimento
foram criados por humanos
e até tento,
caso consiga uma
ocasião a jeito,
expulsá-los desse
nicho tão perfeito
e tomar-lhes o lugar,
pois acalento
os meus pendores
selvagens; só me esquento
por concessão e favor
no morno leito
e me estico em
travesseiros e almofadas
quando me dá na
telha!... Mas não quero
que me parem de
atender ao meu direito;
têm dever de me servir
e assim aceito
que minha areia eles
troquem quando espero
e me obedeçam em troca
dos meus nadas!
CALOR DE GATO XI
Nesses versos
anteriores vê-se, pois,
que não encaro os
gatos com voz mansa;
nos tempos idos, ao
alcance de minha lança
os mataria sem
quaisquer “pois-pois”...
Contudo, nesta casa
existem dois
que condescendem em
tratar-me com confiança,
embora não me iluda em
esperança
de que cuidem por
igual de mim depois...
Não sou selvagem, vem
dormir no escritório
e algumas vezes até em
meu sofá;
não os judio e nem
expulso, tenho pena;
e se me pedem, em
afano merencório,
qualquer carinho, até
lhos faço já,
pobre comparsa de sua
altiva cena...
CALOR DE GATO XII
Mas quem me ver
trazendo gato ao colo
não se iluda que eu
sirva a tais bichanos,
nem que os confunda
com nenês humanos,
capazes de fazer bem
ou agir com dolo.
Tendo uma chance, sei
que as mão esfolo,
seus arranhões são
caprichos bem insanos;
não me permito cair em
tais enganos:
na sedução dos gatos
não me enrolo.
Arthur Pendragon pode
ser muito bonito,
Saphira Yoda gatinha
bem dengosa,
mas só querem de mim
algo lhes dar...
Quando estiver com o
coração aflito,
por luto ou por
tristeza portentosa,
não me virá calor
felino a consolar...
William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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