terça-feira, 16 de fevereiro de 2016





CALOR DE GATO – 24/10/2010
WILLIAM LAGOS

CALOR DE GATO I  

A gata me arranha no canto do olho,
se esconde depressa se a olho de frente;
espia debaixo do armário, contente,
esquiva de mim se a carinho me antolho.

A gata sem cauda idêntico escolho
me mostra, solerte. Se expõe claramente
até que a procure e então, simplesmente,
se oculte de mim, sem deixar-me um espólio.

Pois bem mais sincera é assim a cadela;
em busca de afago se achega, fiel:
só os dedos me lambe, em agradecimento.

Mas essa mulher que se mostra à janela
é igual que uma gata.  Acena com mel
e só fel me concede se ali me apresento...

CALOR DE GATO II

Minha amada era agridoce,
por vezes, puro amargor
e, com todo o meu amor,
quando dela tomei posse,

esforcei-me então, que fosse,
por ação do meu calor,
abandonando essa dor,
pois só doçura lhe trouxe!...

E a meta foi alcançada,
sua tristeza transformada...
Pois recordo, em minha paixão,

o sabor de minha amada:
ficou tão adocicada
que, no fim, virou pirão!

CALOR DE GATO III

Um gato dorme aqui.  Na vida, apenas,
comeu, dormiu, sem perdão e sem ter penas,
sem do trabalho ter erguido o véu...

Adolescente eterno e protegido,
em sua almofada sempre recolhido,
talvez sonhando com um felino céu...

Dizem alguns que são os defensores,
que maus espíritos afastam do lugar:
como os Lares, protegem cada lar
e enquanto dormem combatem dissabores.

São bonitos e elegantes, quais amores
e certamente nunca irei os maltratar:
matar um gato traz sete anos de azar
e sempre servem de modelos aos pintores...

CALOR DE GATO IV
Talvez quisera ser também um gato:
me empregaria de coletor de impostos;
nas igrejas o ofertório, sem desgostos,
os fiéis encarando sem recato...

Processaria a mil por desacato,
por detrás de meus bigodes tão lustrosos
e calçaria sapatos luminosos,
minha cauda erguida em portentoso fato...

Ou talvez não...  Pois sendo o coletor,
embora sustentado assim por taxas,
no fim das contas, precisaria trabalhar...

E para que lançar-me em tal labor,
se me posso enroscar em quaisquer caixas,
passando o dia inteiro a ressonar?...

CALOR DE GATO V

Com meus bigodes,        eu domino o mundo,
pois me transmitem      muita informação,
não tenho apenas           do faro a profusão,
mas esse eco                  do meu miar profundo.

Caminho sem sujar-me  pelo imundo
escuto mais                    que a humana geração
meus olhos perfurando   a escuridão
que me conferem           um controle mais rotundo.

Olfato e paladar              melhor que o teu
ostento igual que           a multidão felina,
também melhores          meu tato e a audição,

meu corpo inteiro          mais belo do que o seu,
por isso é justo que        eu ganhe a peregrina
g(r)atuita oferta             de uma boa ração!

CALOR DE GATO VI

Talvez até me chamem preguiçoso,
pois passo a vida calmo e relaxado;
sob os raios do sol vivo estirado,
quando caminho, meu passo é langoroso,

mas quando quero, nem um pouco vagaroso:
em instante mudo após ser excitado,
domino a casa inteira em salto airado,
depois me aquieto e mostro-me formoso...

Afinal, é para isso que sou gato:
sobre as poltronas demonstro ser enfeite,
meus ancestrais egípcios endeusaram

e permanece o portentoso fato
de que sou belo para o teu deleite,
mas que teus ancestrais não me domaram!

CALOR DE GATO VII  

A casa é minha quando à noite eu mio:
feroz domínio de todos os telhados,
nos quais percorro futuros e passados,
domino o barco do convés ao lio!...

Sou timoneiro do mundo que assim crio;
os inquilinos das casas desprezados,
porque nós somos senhores cortejados
por mais que a tais despreze o nosso brio!...

Esses cães que nos latem, impotentes,
incapazes de pular para as alturas,
só uivam contra nós de pura inveja!...

Enquanto os astros nos veem, benevolentes,
da natureza as gerações mais puras,
embora apenas suportemos quem nos beija!...

CALOR DE GATO VIII

Se há uma coisa intolerável e isso é quando
alguns humanos me retardam a comida;
pouco importa que seja um gato sem guarida,
jamais se podem subtrair ao nosso mando!...

Feitas as contas, essa gente é só um bando
de seres inferiores, dos quais a inteira vida
nos deve ser devotada... e concedida
à minha proteção por onde eu ando!...

E se pensam que eu deva me abaixar
e fingir pelo que fazem gratidão,
eles que aprendam a respeitar-me o orgulho!...

Se não quiserem, por bem, me alimentar,
quando algum prato eu vir sem proteção
com prazer nele exerço meu esbulho!...

CALOR DE GATO IX

Se me tratam com respeito, é diferente:
até me esfrego para deixar meu cheiro;
minhas enzimas demarcando esse terreiro;
quando isso faço, demonstro a toda a gente

que a mim pertencem de forma permanente
e que deles é a honra se me abeiro...
Mas se outro macho surge, bem ligeiro
defenderei meu território ferozmente!...

Ele que encontre seus escravos noutra parte:
sempre se acham as mulheres solitárias
ou muitos homens já bem desiludidos,

a quem um falso amor já fez descarte
e que lhe possam servir como alimárias,
mil privilégios por sua vinda concedidos!...

CALOR DE GATO X

Porém não sinto um resquício de respeito
por tais felinos que desde o nascimento
foram criados por humanos e até tento,
caso consiga uma ocasião a jeito,

expulsá-los desse nicho tão perfeito
e tomar-lhes o lugar, pois acalento
os meus pendores selvagens; só me esquento
por concessão e favor no morno leito

e me estico em travesseiros e almofadas
quando me dá na telha!... Mas não quero
que me parem de atender ao meu direito;

têm dever de me servir e assim aceito
que minha areia eles troquem quando espero
e me obedeçam em troca dos meus nadas!

CALOR DE GATO XI

Nesses versos anteriores vê-se, pois,
que não encaro os gatos com voz mansa;
nos tempos idos, ao alcance de minha lança
os mataria sem quaisquer “pois-pois”...

Contudo, nesta casa existem dois
que condescendem em tratar-me com confiança,
embora não me iluda em esperança
de que cuidem por igual de mim depois...

Não sou selvagem, vem dormir no escritório
e algumas vezes até em meu sofá;
não os judio e nem expulso, tenho pena;

e se me pedem, em afano merencório,
qualquer carinho, até lhos faço já,
pobre comparsa de sua altiva cena...

CALOR DE GATO XII

Mas quem me ver trazendo gato ao colo
não se iluda que eu sirva a tais bichanos,
nem que os confunda com nenês humanos,
capazes de fazer bem ou agir com dolo.

Tendo uma chance, sei que as mão esfolo,
seus arranhões são caprichos bem insanos;
não me permito cair em tais enganos:
na sedução dos gatos não me enrolo.

Arthur Pendragon pode ser muito bonito,
Saphira Yoda gatinha bem dengosa,
mas só querem de mim algo lhes dar...

Quando estiver com o coração aflito,
por luto ou por tristeza portentosa,
não me virá calor felino a consolar...

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com


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