terça-feira, 23 de fevereiro de 2016





VAGALUMES DE ANIL
William Lagos, 2002

VAGALUMES DE ANIL I

quando a paineira abriu suas flores rosas
bem antes de largar painas viçosas
em que sementes havia temerosas
espalhou durante a noite lastimosas
flores de estrelas
                         difícil vê-las
                              em frente delas
pequenos lunares hesitantes
incapazes de sombras como dantes
que pouco a pouco se espalharam no capim
alguns caindo em carvões e caulim
outros criando vida própria assim
cada um deles a projetar luz de cetim
luzeiro vil
 élitros mil
                                                           meias de anil

VAGALUMES DE ANIL II

durante o dia continuaram escondidas
essas pequenas luzes doloridas
do solo a mastigar floras sofridas
raízes despojando de suas vidas
a poucos loucos
rasgando tocos
seus olhos moucos
não os ouvidos que nem sequer tinham
mas por antenas a vibrar os sons lhes vinham
cada semente abandonando o estrelismo
da antiga paineira em saudosismo
as murchas flores consumindo em cataclismo
crescendo num humilde narcisismo
agora insetos
da noite adeptos
de dia ineptos

VAGALUMES DE ANIL III

na terra a se aquecer, banho-maria
que relação com a Virgem haveria
somente em lenda que se difundiria
que Maria Egipcíaca o inventaria
foi já esquecida
não tem guarida
fugiu da vida
aquela alquimista de valor
que dos colegas recebeu louvor
mas que a igreja depressa condenou
e da memória dos crentes se apagou
sendo mulher, ninguém mais dela lembrou
mas a alquimista o Egito nos legou
sempre foi ela
quem inventou
banho-maria

VAGALUMES DE ANIL IV

e a cada uma das luzes que se cria
acalentou no invólucro do dia
que a caneca da noite protegia
a se aquecer ao grilar da nostalgia
sua luz de azul
em tom exul
fez-se amarela
de alguns já esverdinhada
um código a criar em digitada
até que enfim numa noite de verão
a primeira a palpitar de uma paixão
bateu as asas de quitinosa formação
sedosos élitros que por baixo estão
e assim subiu
após a nuvem
tornada em luz

VAGALUMES DE ANIL V

a degustar meus licores mais secretos
de meus vácuos inferiores e abjetos
a marchetar meus sonhos esqueletos
com cascas duras de estralejar concretos
fetos diletos
netos projetos
frágeis objetos
cada um deles feito vagalume
singular centelha de seu lume
para uma orgia no sombrear da laranjeira
turfa e linfa na língua minha brejeira
as fêmeas sobre o chão em mansa espera
os machos a voejar por sobre a terra
em pisca-pisca
perpétua insista
a luz arisca

VAGALUMES DE ANIL VI

em sendo noite, muitos pássaros já dormem
mas se as corujas e mochos lá retornem
atraídos pelas luzes que conformem
serão tragados pelos tais que a noite adornem
bicos ferozes
luzes fugazes
finais atrozes
buscando reprodução
amantes da morte são
e nessas luzes que agitam o crepúsculo
aos predadores cada qual serve corpúsculo
mesmo escrevendo no ar o seu opúsculo
no mapa alvéolo de seu lusco-fusculo
a luz se apaga
o bico traga
sexo é adaga

VAGALUMES DE ANIL VII

quanto a mim só capturo a dança antiga
lanço meus olhos qual atento auriga
e me protejo com solitária figa
a luz fugaz insere-me e se abriga
fotografia
úmido o dia
triste dulia
de chumbo o olhar
as luzes a roubar
só quero para mim talo de aspargo
o meu olhar a transfixar espinho amargo
de conservá-lo na memória tenho o cargo
as minhas redes neurais assim alargo
faço-me mera
magra quimera
magia gera

VAGALUMES DE ANIL VIII

dos pirilampos sacerdote em ministério
no coração luzeiro e eremitério
por mais que te pareça um despautério
mortos de luz salmodiando em monastério
e lá no campo
sobreviventes
ainda fecundam
nessa futura geração
ovos de estrela em profusão
mas eu só julgo que no próximo verão
do abafamento em plena excretação
essas traças de luz persistirão
quando minha boca eu abrir em brotação
chispas de mim
forjando enfim
versos carmim

VAGALUMES DE ANIL IX 

mas nem todas essas painas se definem
como pequenas luciérnagas que atinem
no pirilâmpico cintilar se assinem
mas remanescem aquelas que pertinem
convulsamente
no chão fremente
sua força assente
para ali lançar verdes lianas
no subsolo a fazerem camas
para erguerem-se em cotilédones anil
tornar-se talos qual bandeira do Brasil
depois em grosso arbusto varonil
fazem-se árvores sem cedilha ou til
ardil de escol
fitam o sol
brilho de anzol

VAGALUMES DE ANIL X

erguem-se enfim porém não só como palmeiras
mas como árvores de frondes condoreiras
jequitibás, jacarandás e cerejeiras
carvalhos fortes, louros, caneleiras
madeira
trigueira
alvissareira
a despertar cobiça
serra e machado atiça
celebram matrimônio em serrarias
a maravalha espalhada em longas guias
casca e serragem lançadas a outras vias
desde que o Ibama permita essas sangrias
senão se perde
nada se herde
da morte verde

VAGALUMES DE ANIL XI

talvez protejam as roupas de vaidosa
ou sapateira empoeirada da orgulhosa
recém-casados na cama mais formosa
ou assoalho para pés com cera airosa
tantos destinos
para os pinus
tocam sinos
outras acabam sendo caixa
oblonga e baixa
que carregavam a braços os antigos
em seu lento progresso até os jazigos
depois os féretros ou eças seus abrigos
hoje carrinhos rangendo entre os amigos
destino rude
se luz não pude
fiz-me ataúde

VAGALUMES DE ANIL XII

porém não vou cremar os girassóis
somente sacos de poemas em arrebóis
ai, mil rascunhos, em meus dedos dóis
ai, vagalumes, como a alma me róis
verso desnudo
pouco me iludo
no espanto mudo
apenas ato meus rascunhos
de tão diversos cunhos
com borrachinhas de prender dinheiro
valendo mais que meu sonho derradeiro
mais ganharia caso fosse verdureiro
meu cansaço a receber um travesseiro
sem conservar
luz do sonhar
vejo brilhar



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