sábado, 13 de maio de 2017







ANJOS VERMELHOS & MAIS
Novas séries de William Lagos – 22-31/3/2017

ANJOS VERMELHOS I – 22 MAR 2017
(Baseado em quadro de 1450, que adiciona seis anjos vermelhos
e três azuis como escolta para a Madonna e o Infante Jesus).

ANJOS VERMELHOS I

Jean Fouquet foi um pintor bastante ousado:
como um Rei Mago a Carlos Sétimo pintou
por seus dois filhos aos demais representou,
bem diferente do padrão mais aceitado...

Porém, de fato, foi bem menos recatado
quando a Nossa Senhora retratou,
pois como o seu modelo ele empregou
Agnès Sorel, a quem o rei havia abraçado...

O que é certo é que aquele seio exposto
fruto é, sem dúvida, de sua imaginação,
alto demais sobre o peito revelado...

Fouquet, decerto, jamais teve esse gosto
de o seio branco contemplar com emoção,
mesmo o mamilo pouco mais do que indicado...

ANJOS VERMELHOS II

Será que a ideia foi do rei que obedecia?
Beleza pura há na figura que pintou...
E o tal Menino a quem então representou
seria um filho que com ela o rei teria?...

O equilíbrio desse quadro é de harmonia;
já o lençol em que o Menino se assentou
de alguma troça ser motivo se mostrou:
seria da cama em que a bela Agnès dormia?

Assim falaram, pelo menos, detratores
e certos padres mencionaram heresia:
um desrespeito para com a Santa Virgem!

Mas o consagraram, em pompa e esplendores,
na Catedral de Mélun, que  igualmente mostraria
o tesoureiro do rei, em dois quadros que se cingem!...

ANJOS VERMELHOS III

Compunham o Díptico da antiga catedral,
Santo Estêvão a proteger o tesoureiro,
e uns nove anjinhos, em coro alvissareiro,
tal qual moldura desse trono triunfal!...

Anjos Vermelhos...?  Cor bem pouco natural,
mais reservada ao demônio interesseiro,
como alusão a sugerir, quiçá, primeiro,
não ser a Virgem, mas dama bem carnal!

O Díptico de Mélun se acha hoje separado:
está a Virgem em Antuérpia (ou Anvers),
com seu Menino de expressão bem amuada;

Étienne Chevalier junto ao Santo Apedrejado,
na Gemäldegalerie de Berlim, através
dessas guerras e conquistas do passado!

ANJOS VERMELHOS IV

As próprias asas dos anjinhos lembram mais
asinhas de morcego...  Quem diria
qual a intenção que o bom Fouquet revelaria...
são serafins dos pagos infernais...?

E tal coroa sobre a Virgem, ademais,
seria um pretexto, que assim revelaria
que sua amante qual rainha quereria
Carlos Sétimo, em paixões bem terrenais?

Aqueles pobres reis...  sem conseguir
sequer dar opinião no casamento...
Marie de Anjou era sua prima, na verdade.

Quatorze filhos, entretanto, a produzir:
fertilidade sem maior impedimento,
mesmo traída pelo rei, com boa vontade!...

Este quatuor refere o óleo sobre madeira de 93x85cm, intitulado “A Virgem com o Menino e anjos”, de Jean Fouquet, 1425-1480 (ou 1420-1481, segundo outra fonte).  Pouco se sabe da vida deste pintor francês, nascido ainda na Baixa Idade Média, sendo assim considerado um Primitivo Francês (como indicam as deformações das figuras humanas, já que o estudo anatômico e a pintura de modelos nus eram proibidos), mas é certo que estudou na Itália, o que o torna um Pré-Rafaelita.  É mais famoso pelas iluminuras de livros manuscritos e teria sido o prolífico criador das efígies em miniatura, com retratos das celebridades de então. Suas pinturas em pergaminho mais famosas se encontram em As Grandes Crônicas de França. 
Este famoso óleo formava um conjunto de duas obras (ou díptico) para a Catedral de Mélun na França.  Que o modelo da Virgem foi Agnès Sorel é incontestável, tendo sido motivo de zombaria entre os cortesãos contemporâneos.  O segundo quadro representa Étienne Chevalier, então tesoureiro do rei Charles VII, protegido por seu onomástico Santo Estêvão (Étienne em francês), o primeiro mártir, que morreu apedrejado.  O díptico foi concluído provavelmente em 1450, sob encomenda do tesoureiro ou do próprio rei.  Hoje em dia, “A Virgem, o Menino e (os nove) anjos” se encontra no Museu Real de Belas-Artes de Antuérpia (Anvers/Antwerpen) na Bélgica e o retrato de Étienne Chevalier na Gemäldegalerie (Galeria das Pinturas) de Berlin, capital da Alemanha.

CHAMPANHA AZEDO I – 23 MAR 17

Existem certos diuturnos pensamentos,
na maioria coisas que entristecem,
nas ciladas e armadilhas que nos tecem,
a intrometer-se sem quaisquer consentimentos

quando menos se espera, em tais momentos
nos quais paz e segurança nos aquecem;
de permeio ao raciocínio, eles nos descem,
em feias mangras sobre nossos sentimentos;

são persistentes... e se os julgamos esquecidos
nos atacam de repente e sem aviso,
em agudas filas de perturbação se alistam,

os sentimentos agradáveis perseguidos,
com manha espantam os de alegria ou riso,
enquanto os velhos fantasmas nos visitam...

CHAMPANHA AZEDA II

São como essas borbulhas de champanha
que sobem lá do fundo, em redes finas,
pequenas pérolas que estouram, assassinas,
a dispersar-se no ar, cheias de manha;

dessa bebida o gosto, em artimanha,
tornando azedo, em doses pequeninas,
para às mucosas do nariz, ferinas,
causar irritação, do espirro em sanha;

é claro que bem fácil se controlam,
após o efeito da esternutação, (*)
após causarem algum constrangimento,
(*) Nome técnico do espirro.

mas sempre essas borbulhas nos amolam,
autocontrole a deixar em agitação,
fazendo os olhos lacrimarem por momento.

CHAMPANHA AZEDA III

O mesmo ocorre com qualquer refrigerante
e também surgem da água mineral,
embora ao doce de um e ao natural
sabor da outra não apresentem azedante.

O gás carbônico é um elemento dominante
e muito mais que oxigênio nos faz mal,
do nitrogênio o antagonista capital,
nossos pulmões a produzi-lo a cada instante.

Mas esses pensamentos que nos sobem,
como cadeias de pérolas malsãs,
são conservados em nossos corações,

bem lá no fundo, que nossa paz nos roubem,
em zombaria das pretensões mais vãs,
que preferimos como nossas emoções.

CHAMPANHA AZEDO IV

O seu efeito, igualmente, é azedante,
são inimigos figadais do bom-humor,
invadindo, à traição, o nosso amor,
quais espiões do mundo circunstante,

que pelo nosso bem, nem por instante
demonstram interesse ou leve ardor,
antes preferem renovar nosso temor
por qualquer assombração mais delirante

que nos brota das más recordações,
que certamente se consegue esternutar,
porém que ficam nada mais do que abafados.

Mas por que não se intrometem sensações
de orgasmo ou outro prazer a recordar,
nesses momentos em que estamos descuidados?

FITAS ESPARSAS I – 24 MAR 17

Há quem me diga que consulta dicionário,
caso deseje entender os meus sonetos,
tal qual se fossem os termos tão secretos,
já retirados do presente anuário...

Eu reconheço ser bastante vário
o meu conjunto de termos mais diletos,
mas não é por pretensão, mas por afetos,
não vou buscar palavras em ossário!...

Só que o vernáculo demuda, na verdade:
novos sentidos assume, nova forma,
que repetidos, aos poucos se decoram,

maior tornada sua especificidade;
e assim a língua, aos poucos, se transforma,
enquanto novas palavras se incorporam.

FITAS ESPARSAS II

Assim ‘hilariante’ foi trocado por ‘hilário’,
um termo antigo a receber renovação,
tanta palavra a sofrer reencarnação,
o corpo antigo guardado em dicionário...

Vêm expressões de conteúdo atrabiliário,
a que estrangeiros não tem interpretação,
umas que outras em interpenetração,
como algo de incestuoso e perdulário...

Mas tudo bem que termos se transmutem,
o que eu detesto são ataques à gramática,
como ‘meu óculos’ dizer no singular!...

Mas como irei contrariar tantos que lutem,
seu erro a repetir, de forma enfática:
se eu falar certo, irão mesmo me estranhar!

FITAS ESPARSAS III

Certo é que ocorre por que a língua é viva
e como tal, tem tendência mutagênica,
a influência, com frequência, sendo cênica,
cada novela tais trocas incentiva!...

Do mesmo modo que o modismo ativa
de novos nomes, em inspiração congênita,
alguns provindo de qualquer raiz helênica,
outros do inglês, entendido só de oitiva...

Como nos filmes e nas séries de tevê,
assim “Michael” em ‘Máiquel’ transformado
ou em ‘Máicon’, o que é pior ainda!...

Cada escrivão a registrar o que ele vê,
qualquer bobagem acolhendo sem cuidado,
de lado pondo tradução, às vezes, linda!...

FITAS ESPARSAS IV

Mas as palavras se espalham como fitas,
esparsas pela voz do povo inculto,
a quem apenas se pode dar indulto
pelo semianalfabetismo de suas ditas...

Que certamente hoje em dia mais concitas
pelo usar de celulares, em tal vulto,
que se tornou, de fato, um novo culto,
qualquer criança em mensagens infinitas!

Limite imposto aos caracteres,
as palavras velozmente a se abreviar,
nessa falsa economia de energia.

E como a língua sobreviver esperes,
sujeita ao inconsequente digitar,
na rede esparsa de tal telefonia...?

FITAS ESCARLATES I – 25 MAR 17

Chega o enigma e o embaraço estabelece,
em certa vaga confusão, envolta em manto,
na mágoa incerta revolvida em pranto,
com solução que nossa mente desconhece.

Chega o querigma, na forma de uma prece, (*)
na unção solene de ouro do óleo santo,
nos compassos iniciais de um belo canto,
qual partitura sideral que não se esquece.
(*) Primeiro anúncio e proclamação da fé, conforme o grego kerissein.

Chega o modismo da bênção de uma fita,
em pequeno ritual mais corriqueiro,
que se amarra nas grades de uma igreja,

enquanto o par no pulso alguém agita,
vagas promessas a concitar ligeiro
dessa graça abstrata que se almeja.

FITAS ESCARLATES II

Embora eu mesmo tal prática não siga,
não vejo mal nessa pequena fé,
que de uma certa confiança seja a sé,
nesse concreto que a certo bem nos liga.

A religião abstrata é fraca viga:
a maioria de algo mais precisa até,
igual que a vela perante imagem é
ceroso símbolo dessa prece que prossiga

para os ouvidos divinais distantes,
ou que ao menos um demiurgo escute, (*)
por ser alheio um real monoteísmo;
(*) Para gnósticos, criador ou administrador do mundo.

e assim existem crenças mais constantes
em qualquer santo ou que a Virgem por nós lute
junto a Seu Filho, em total henoteísmo!... (*)
(*) Crença em um Deus Supremo, cercado por divindades menores.

FITAS ESCARLATES III

E foi por isso que São Tomás de Aquino
quis abolir o Segundo Mandamento,
contra as imagens a receber endeusamento
nas catedrais a contrariar o tino

de analfabetos, em seu fugaz destino,
pelas figuras a dar ensinamento,
nas Estações da Cruz o sofrimento
e nos vitrais, estremecendo ao som do sino.

Melhor prender-se a imagens religiosas
do que adorar algum deus de antigo rito,
figura tosca no retábulo do lar!...

Mas por quaisquer tendências caprichosas,
tirou do Décimo o item mais maldito,
para a cobiça da mulher mais condenar!...

FITAS ESCARLATES IV

O mandamento condena a adoração
e o culto dado a deus qualquer, estranho,
feito de ouro, de barro, prata ou estanho,
a provocar-nos qualquer falsa devoção.

Mas querubins ergueram em proteção
da Arca da Aliança, em doce amanho;
e havia um manto, de singular tamanho,
com o qual faziam do futuro a predição!...

Mesmo no templo, havia lavores de romãs
e igualmente outras obras de escultura,
sem lhes dar culto ou qualquer adoração!

Sem precisar de modificações malsãs
no Livro do Êxodo, de redação mais pura,
querigma e anúncio a conservar em exaltação!

RAMERRÃO I – 26 MAR 17

Eu não percebo estar fazendo algum progresso
nestas juras de amor de monge e escriba;
qual um camelo, deponho sob a giba
esse espantoso fardo em que me meço.

Minha vanglória e meu orgulho hoje confesso,
tripulantes de um barco sem arriba
ou somente estranha carga posta em riba
dos ombros, que de tornar maior não cesso.

Contudo, comparando estes de agora,
não me parecem serem superiores
aos que fazia há vinte ou trinta anos,

talvez porque esperasse mais no outrora,
mantendo ainda sonhos multicores,
hoje afogados na maré dos desenganos.

RAMERRÃO II

Imerso em filosófico esplendor,
afastado da luz, eu não consigo
a mesma inspiração do sonho antigo,
emarchetada em seu místico palor.

Ainda há momentos de um pálido tremor,
em que gentis sentimentos ainda sigo,
em que a dança irreal ainda persigo,
que me trouxe no antanho um tal vigor.

Mas não se trata da filosofia da razão,
nem tradições de uma ética centrada
que me chibatam ao galope da poesia;

nem tampouco a religiosa pregação:
é a pura sensação da mente armada
que se atormenta em laivos de harmonia.

RAMERRÃO III

Eu já havia pensado em outro tema,
em outro esquema que se desvaneceu;
certamente esse poema não é meu,
quando esse tema é transitório esquema.

Pois redigir vinte rascunhos foi meu lema
durante anos, mas agora transcorreu
que os ventos me lançaram em mundéu
no qual escavo muito mais de cada gema.

Assim eu continuo a rascunhar sem pena
nem de mim mesmo, nem de qualquer leitor
que se debruce algum dia no que escrevo,

depois que do proscênio desta cena
eu me retire, desvestido de temor,
nessa certeza de que paguei mais do que devo.

SONHOS INSENSATOS I – 27 MAR 17

Minha temática mais constante é o amor,
sobre o qual tantos prestam seu depoimento,
mesmo que afiancem, em falso juramento,
que nunca foi intenso o seu calor!...

Muitas vezes, bem grosseiro é seu ardor,
uma mistura de sexo e alimento,
um sentimento esvaziado de portento,
não mais que a posse de algum dominador.

Mas não existe quem algo não sinta
do Não-sei-quê que essa emoção traduz,
o eterno gozo da transitoriedade;

e pouco importa que de amor se minta,
quer seja apenas a espuma que reluz,
quer sentimento de vigor e ou de ansiedade.

SONHOS INSENSATOS II

Sinto-me preso, sem os teus desvelos;
não te posso contemplar, nem te escutar...
e como não consigo hoje te olhar,
vou remexer minha coleção de selos...

Trazem imagens do deserto aos gelos,
pompas históricas dos mortos a gabar,
efígies, pássaros, serpentes a mostrar,
paisagens, monstros, alguns mesmo belos.

Eu já disponho de quinhentos mil:
bem pouca gente tem coleção igual,
a maioria ainda guardada em caixas,

trabalho suficiente, até o funil
do tempo me puxar para o final,
envolto em selos de coloridas faixas!

SONHOS INSENSATOS III

Um dia em pó a sedução desfaz-se,
quando se aposta no jogo multiforme;
o sorriso mais gentil faz-se disforme,
a cada vez que outra esperança nasce,

no breve instante até que o brilho esgarce,
quando outro olhar meu próprio olhar contorne,
se a excitação se apresenta desconforme
e esse canto de neblina ao redor passe.

Amor ou selos... são convites apressados,
só para ver o que acontece se acolhidos,
mas sem eterno acolhimento nos prover,

no corriqueiro e antigo jogo do poder,
quando os sorrisos só almejam ser notados,
por tais olhares em desejos consumidos.

EM FRIA OBSERVÂNCIA I – 7 FEV 2008

Percebo a vida como cerzir roupa
que não se quer perder, por confortável:
sempre surge um rasgão e não se poupa
o esforço de mantê-la apresentável.

E, dentro em breve, se abre outra costura:
refazer é preciso, tal que a vida,
por mais que se mantenha bem vestida,
pela opinião alheia, sempre é impura.

Porque, afinal, razões para autocrítica
eu não preciso: me criticaram tanto!
Só necessito é de mais autoconfiança.

E nem tampouco possui valor de encíclica
a voz dos outros, em invejoso canto,
pois só do coração basta a esperança.

EM FRIA OBSERVÂNCIA II – 28 MAR 2017

Passam-se os anos e a alma vai rasgando;
sua linha de costura é a observância
dos deveres da ética em constância:
largos remendos se vai acrescentando.

A cada vez que a gente vai notando
um erro contumaz, sem mais tardança,
vem alfaiate de alma, agulha e lança-
deira, com panos de mortalha consertando.

Há alfaiates bem profissionais,
os quais professam cada religião,
da qual garantem só eles terem linha;

psiquiatras e psicólogos, ademais,
a descobrir em nós cada rasgão
que nas suas próprias almas se continha.

EM FRIA OBSERVÂNCIA III

Mas eu costumo costurar em casa
cada rasgão que no caráter vejo;
páginas tiro dos livros de que almejo
tomar lição que firmeza nele embasa;

em muitos deles há espessura rasa,
porém consigo costurar sem pejo;
alguns me ensinam, em transparente beijo,
outros se esgarçam na mais pérfida gaza.

Mas sempre os livros meus amigos foram:
com seus retalhos fiz personalidade,
bem mais do que em casa me ensinaram

e mais ainda do que na escola douram
como sendo expressão da realidade.
que em lugares-comuns se transformaram.

EM FRIA OBSERVÂNCIA IV

Meus dias ergo no varal de roupa,
esticado por longa vara de bambu;
enquanto secam, eu me sinto nu,
todas as horas de um dia coisa pouca.

A gente vive é na camada louca
dos dias acumulados, eu e tu,
o tempo a sacudi-los, num rebu- (*)
liço, em que a brisa é suave touca.

Nenhum dia nos basta, pois só correm
do minuto do futuro ao do passado,
sem que um minuto do presente exista;

e assim costuro as horas que me forrem
toda a vida em carrossel desesperado,
sem deixar quaisquer rastros em sua pista.
(*) emprego da grande sinafia.

ENFRENTAMENTO I – 22 fev 2008

Foi-se, afinal, o que me incomodava,
há vários dias, de hesitar tamanho...
puxei a obstrução que lá se achava:
não era um grumo, mas apenas ranho...

Por dias hesitei, mais esperava
para evitar, enfim, que o corpo estranho,
que um coágulo de sangue acreditava,
ao ser movido, gerasse um novo lanho...

E quanta vez, na vida, já hesitei,
suportando um incômodo, em temor
de que, ao tocá-lo, pior me ocorreria...

Mas quando tomei ânimo e enfrentei,
vi desfazer-se a dúvida; e o pavor
também desfez-se, sem causar hemorragia.

ENFRENTAMENTO II – 29 MAR 17

A gente faz assim, por ser covarde:
morre mil mortes, como já foi dito,
quando o futuro, de coração aflito,
encara como dor que ao peito arde.

Sempre é preciso que a coragem carde
essa lã do temor, em bravo grito,
adrenalina a forjar um novo fito
que a tais temores pueris enfarde.

Claro que a luta nos causará espanto,
ressentimento, feridas, talhos fundos,
mas cedo ou tarde, o embate se apresenta

e é melhor cingir-se em grosso manto,
cota de malha para os golpes mais profundos,
que sofrer da hesitação a morte lenta.

ENFRENTAMENTO III

Pois só se morre uma vez, na realidade,
mesmo sofrendo um doloroso ferimento,
que irá curar-se, em divinal portento
ou nos levar, em plena integridade.

Porém o imaginar é iniquidade,
sofrer a dor que só virá em tal momento,
para tirar de nós contínuo alento:
muito mais forte a dor dessa impiedade.

Conforme disse, muitas vezes hesitei,
temendo o anzol oculto atrás da isca
e os acepipes da vida rejeitei,

tal qual repetem desde o antanho este ditado;
a nos rezar: “quem não arrisca, não petisca”,
até que todo o temor fosse enfrentado.

ENFRENTAMENTO IV

Pois todo o medo parece estratosférico,
uma esfera de argila, que nos mata
e se contrai a cada dia, em data
de nova morte de espanto periférico,

a contrair-se cada vez mais, que o esférico
duro rolo compressor que nos abata
cada esperança vá tornando mais ingrata,
sobre nós a perpassar qual teleférico. (*)
(*) Bonde aéreo percorrendo cabos até alguma elevação.

De cada morte, porem, ressuscitei,
para com o medo perder, enfim, paciência,
quando então consegui me libertar;

cada temor que me veio, desgastei
no moinho da vida, sem leniência,
para no pão da vida o transformar.

BASILISCOS I – 28 fev 2008

Não me importa o que perceba o olhar alheio
ao repousar em mim, se me rejeite,
eu não rejeitarei quem não me aceite,
nem buscarei por que me aceite um meio.

Eu sei de meu valor, nesse torneio,
insensato da vida, em que aproveite
as poucas chances que o destine deite
sobre meu colo, em desdenhoso veio.

Pouco me importa que me enxerguem feio,
no aspecto exterior ou nos meus versos:
sua visão é limitada por antolhos...

Porquanto eu vejo o mundo sempre cheio
de fulgores redolentes e diversos,
quero que vejam o mundo por meus olhos!

BASILISCOS II  -- 30 MAR 2017

O basilisco era o rei do serpentário;
“pequeno rei”, nos diz seu nome em grego.
O mau olhado já assisti, não nego,
em muita gente, como impuro corolário.

Só com o olhar, em relato multifário,
ele matava, só poupando o cego,
ao qual tratava com singular apego
e nem sequer o mordia -- de ordinário.

Narra-nos Plínio o Velho, o que morreu
quando o Vesúvio destruiu Pompeia,
que existiam basiliscos, realmente,

nessa História Natural que ele escreveu
e que deixavam após si vasta assembleia
de mortos, por sua peçonha de serpente. (*)
(*) Segundo Plínio, habitavam a Cirenaica, no norte da África.

BASILISCOS III

Nos velhos livros do europeu bestiário,
era o basilisco com dois braços desenhado
ou como estando em doze patas apoiado,
com bico e crista... o seu veneno perdulário

era esguichado pelo ar, em ponto agrário,
mesmo distante transeunte envenenado,
cada gotícula a espelhar seu desagrado,
cada infeliz a retorcer-se em tal fadário!...

Diziam mesmo, que ao redor de seu covil
um circulo se formava, negregado:
por seu veneno todo o capim queimado.

Só uma doninha a causar-lhe temor vil
e assim, para sua toca uma empurravam;
segundo a lenda, o basilisco então matavam!

BASILISCOS IV

A meu redor, perversa gente eu vejo,
peçonha a projetar com seu olhar;
mesmo um gerânio, certa vez, vi ressecar,
após um falso elogio, em atroz arpejo.

Pouco me importa encontrar um falso adejo
de tais olhares sobre mim a perpassar;
temo é o veneno e não as deixo me beijar,
como o de Judas, pervertido eu sei seu beijo.

Contudo, enxergo o mundo em harmonia,
enquanto os olhos seus só veem maldade
e bem ou mal, ainda procuro transmitir,

Como doninha de versos, minha poesia:
que o basilisco pereça em iniquidade,
enquanto eu busco os dons da vida distribuir.

IDEAIS MACABROS I – 31 MAR 2017

BEM MAIS ALÉM DA JURISDIÇÃO HUMANA,
MEU ESPÍRITO SE PERDE EM VASTIDÃO,
NO SILÊNCIO DO PAMPA, QUANDO ESTÃO
APENAS GADOS DE LUAR E OVINA GRAMA.

DURANTE O DIA, A VASTIDÃO RECLAMA
QUALQUER PRESENÇA DE MAIS SUBSTANCIAÇÃO
OU DE “SUSTÂNCIA”, COMO DIZ A MULTIDÃO,
GADO DE CARNE, CAVALEIRO E DAMA.

PORÉM À NOITE, NA FANTASMAGORIA,
SURGEM DO VENTO SERES MAIS AFLITOS,
MAIS QUE NAS GUERRAS, MORTOS PELA PAZ,

OS VELHOS PINGOS DA CAVALARIA,
CRINAS E CAUDAS POR LUAR BENDITOS,
EM QUE O POTREIRO NOTURNO SE DESFAZ.

IDEAIS MACABROS II

EM CADA FOGO-FÁTUO E PANTANAL
A MULTIDÃO DOS OSSOS ESQUECIDOS:
SÃO HUMANOS EM TUMBAS ESCONDIDOS,
CONTUDO O GADO ABANDONADO SEM FANAL.

E TANTOS POTROS DE FÚRIA TRIUNFAL
SACRIFICADOS APÓS ENVELHECIDOS,
SEUS PELEGOS EM ASSOALHOS ESTENDIDOS,
TORNADA A CARNE EM RAÇÃO PARA ANIMAL.

E TANTO GADO LEVADO AO MATADOURO,
PARA NA TESTA LEVAR TIRO DE PRESSÃO,
LENTOS MUGIDOS EM PRESSÁGIO AZIAGO,

SUAS CARCAÇAS DESCARTADAS EM DESDOURO,
DEPOIS MOÍDAS SEM MAIS COMPAIXÃO,
SERVINDO O CÁLCIO DE CANIBAL AFAGO.

IDEAIS MACABROS III

E QUANTOS MORREM NESSE VERDE MAR,
ALI DEIXADOS EM CORVINO SACRIFÍCIO,
PARA COORTES DE VERMES BENEFÍCIO,
NOVAS MUTUCAS NAS CARNES A GERAR,

DEPOIS COSTELAS SOB O SOL A CALCINAR,
DE ASSOMBRAÇÃO A ASSUMIR OFÍCIO,
ÀS VEZES VÉRTEBRAS RECOLHIDAS EM BULÍCIO
PARA OS CURRAIS DE CRIANÇAS IR POVOAR!

CADA UMA DELAS CHAMADA DE ‘BOIZINHO’,
OS QUATRO CÔNDILOS COMO QUATRO PATAS,
POTREIROS SIMPLES E INFANTIS DE FANTASIA,

PEQUENOS OSSOS TRATADOS COM CARINHO,
MAIS QUE DO JOGO DE TAVA EM QUE COMBATAS
NESSAS APOSTAS DE QUE SANGUE BROTARIA!

IDEAIS MACABROS IV

E QUEM CONTEMPLA DESSE PAMPA A SOLIDÃO,
GOTAS DE RELVA AZULADAS PELO ESCURO,
FICA A PENSAR EM COMO O SOLO É PURO,
JUNTO ÀS COXILHAS DE VERDE ONDULAÇÃO.

JAMAIS PERCEBE DA MORTE A VASTIDÃO,
OS MIL PEÕES DE CORAÇÃO PERJURO
QUE A SEUS PINGOS FIÉIS, EM ATO DURO,
PERMITEM ABATER, SEM COMPAIXÃO.

QUANTOS FANTASMAS EM SEU MUGIR BOVINO,
QUANTO RELINCHO PERDIDO NESSE ESPAÇO,
AS NUVENS FEITAS DA LÃ DO GADO OVINO!...

QUANTAS CARNÍVORAS GERAÇÕES ACOMPANHARAM,
PARA MORRER, SEM BEIJO, NEM ABRAÇO
DE TANTA GENTE QUE UM DIA ALIMENTARAM!

IDEAIS MACABROS v

MUITO SE FALA SOBRE OS ELOS CENTENÁRIOS
QUE CENTAURIZAM O GAÚCHO E SEU CAVALO,
MAS QUE SE DIZ DO CUSCO A ACOMPANHÁ-LO,
ABANDONADO, SEM SEQUER POSSUIR OSSÁRIOS?

NOS RODEIOS, DOS PEÕES FORAM VIGÁRIOS,
ARREBANHANDO O GADO EM CADA VALO,
MORDENDO AS PATAS DE ALGUM TOURINHO MALO,
A RECUSAR SEU INGRESSO NESSES PÁREOS!

ANTIGAMENTE, ATE LOBOS COMBATERAM,
ESSES ESTRANHOS GUARÁS REMANESCENTES,
OU CAÇANDO MÃOS-PELADAS E TATUS!...

E AS CRIANÇAS DOS DONOS DEFENDERAM,
SEUS DENTES GROSSOS NA GENGIVA OPALESCENTES,
NO CAPINZAL BRANQUEJANDO EM OSSOS NUS!...

IDEAIS MACABROS Vi

POIS SEMPRE O GADO FOI FONTE DE RIQUEZA,
COM CAVALOS E CÃES NA CAMPEREADA,
DESPERTOS DESDE ANTES DA ALVORADA,
PASTO EM SALÁRIO DA MAIOR POBREZA...

NAS CURTAS VIDAS, SEM QUALQUER NOBREZA,
ESSA QUADRÚPEDE TURBA DESGRAÇADA,
PARA BOCAS FAMINTAS DESTINADA,
SEU ABATE SENDO A ÚNICA CERTEZA!...

E ALI OS ENCONTRO, NUM PALOR ETERNO,
ALMAS-PENADAS, MAS LIVRES, FINALMENTE,
DA INCLEMÊNCIA DE TAL JURISTIDÇÃO;

E NOS MEUS SONHOS OS PERCEBO, NESSE INVERNO,
COMO UM FOGO DE SANTELMO PERMANENTE,
QUE À LUA SOBE E LHE DÁ A ILUMINAÇÃO!...

INSPIRADOR I – 24 set 2007

coroadas de cachos e gavinhas
as pisoeiras esmagam frescas uvas,
nas largas bordalesas: longas linhas
de esguichos as recobrem; como luvas
avermelham seus braços; tais quais meias
lhes sobem pelas pernas, quase ao ventre,

enquanto Tu, Dionysos, incendeias
o fértil vinho que o fermento adentre.

após ser esmagado, ferve o mosto
e em álcool se transmuta, numa calma
transformação, que me afogueia o rosto,
ao ver meus sonhos a Teus pés imersos;
porque uvas não são: é o sangue d'alma
que se fermenta em vinho nestes versos.

[para meus dois amigos, Sappho e Alkayos]

INSPIRADOR II (18 JUL 16)

à noite, enquanto dançam vagalumes,
chovem estrelas contra a pradaria;
fazem grinaldas as pisoeiras, à porfia:
cada uma colhe mais gotas desses lumes.
mil fogos-fátuos em Tuas mãos assumes,
cada gavinha um novo mosto fia,

enquanto Tu, Dionysos, em homilia,
para as cirandas aloucadas rumes.

e cada estrela que se faz cadente
se embrenha nas macegas com cometas,
para gerar um novo astro iridescente;
e como estrelas, escorrem de meus dedos
as mil fagulhas, inspirações completas
desse uso sedutor de Teus segredos.

INSPIRADOR III

e quando a aurora chega, já afogueadas,
as pisoeiras se banham nas lagoas,
compartilhando entre si histórias boas
das suas guirlandas de fogo apisoadas,
suas faces inda do luar iluminadas,
adquirindo nuances já de broas

e a Ti, Dionysos, tecendo vastas loas,
sob o solar suas faces mais rosadas.

e dos raios do arrebol seus cintos tecem
para prender as túnicas flutuantes,
enquanto à granja, bem cansadas, descem
e eu me limito, enquanto as luzes crescem,
aos restos das guirlandas delirantes,
que meu próprio cansaço nalma aquecem.

INSPIRADOR IV

e sob o sol do meio-dia, ali sesteias,
a barba rubra dos grumos de teu mosto,
a ressonar sem tristeza, em puro gosto,
dos novos sonhos a tecer Tuas teias,
que a nova noite ingênua já incendeias
nas derradeiras candeias do sol posto

ao próprio vento, perfumado rosto,
dentes brilhantes com que a mim enleias.

ah, Dionysos, que seria dos poetas
se não bebessem de Ti embriaguez?
e mesmo os monges, nas preces das completas,
o que fariam sem o mosto que lhes dês?
cantam meus versos as preces mais completas,
porque, se creio em Ti, em mim Tu crês!
(*) Apesar do formato, também são sonetos.



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