terça-feira, 30 de maio de 2017




MADRÉPORAS NEGRAS – 17 JAN 2008
Duodecaneto de William Lagos

(Madrepora oculata [com inserção de uma lagosta])

MADRÉPORAS NEGRAS I   (2008)

Já se aproxima do ano a estação turva,
que medeia sempre entre o final de outubro
e o início de novembro e me descubro
a pensar nos vizinhos de além-curva,

duas quadras logo abaixo de minha casa,
duas quadras logo abaixo de minha vida,
em sua morada por derradeira tida,
que nem sequer possuem cova rasa,

mas são engavetados, em arquivos,
à espera das baratas, da umidade,
que lhes devoram mente e coração,

enquanto as locações pagam os vivos,
senão,  vem o despejo, em quantidade,
para o ossário, em que não têm sequer caixão!

MADRÉPORAS NEGRAS II

Que me reserva o destino palpitante
é coisa que não sei.   Eu sei apenas
que inda verei rebrotar as açucenas
durante um dia de calor.   E refrescante

será a visão perfumosa desse instante,
permeio dos odores de outras cenas
bem menos perfumadas, de outras penas
por que passei e passarei rampante,

nessas centelhas de alheios desatinos...
O fardo não é meu...  Não sei, sequer
se provarei um outro beijo de mulher

ou se hoje mesmo por mim tangem os sinos.
Carrego as tardes e aguardo, indiferente,
sem saber se inda amanhã estou presente.

MADRÉPORAS NEGRAS III

Mas a saudade me amolga qual preguiça
de enfrentar esse meu computador
com palavras virtuais, mas sem calor
novos desprezos e descasos nessa liça,

quaisquer amores de índole castiça,
novos versos redigindo, mas sem cor,
que é assim comigo.  Ao fim de cada amor,
nova ilusão toda minha mente atiça.

Longo verme de amor, de crista erguida,
seus filamentos e proglótides avançam
e sobre as válvulas do coração se lançam,

até que as larvas da quimera percebida
se retorçam contra as linhas da acolhida
e só me encontro a digerir outra saudade...

MADRÉPORAS NEGRAS IV

Algumas vezes já pensei que te possuía,
depauperada minha certeza assim
no meu teclado essa tua alma de jasmim
virtuais palavras que então eu redigia.

Essas mil vezes pensei que conseguia
guardar teus trechos de desejo para mim,
que tais desejos nem tivessem fim,
acompanhando-me enquanto eu existia.

Metade de minha vida encontradiça
nesses linhas de versos sem calor,
nunca mais quentes que as folhas em que os lia

um longo verme de crista que se eriça
esse meu sonho de perpétuo destemor,
que não temia tombasse em desvalia.

MADRÉPORAS NEGRAS V

A maioria das pessoas sente
durante o outono, certa melancolia,
nesse tombar das folhas, nostalgia
pelo verão que se afasta do presente.

Mas eu me sinto, ao contrário, bem contente:
é para mim da folhagem a elegia,
a seiva a recolher-se em harmonia,
para em nova primavera ser potente.

Assim é nossa vida.  Folhas caem,
são recolhidas dentro de caixões
e guardadas em gavetas tenebrosas.

Contrariamente às que de árvores saem,
que de algum modo nos alentam corações
no incenso da fumaça dessas rosas.

MADRÉPORAS NEGRAS VI

Um dia, eu subirei pela montanha
que uns chamam de morte;  eu de caminho;
meu não será só destino comezinho,
pois para mim será vitória ganha.

Sempre encarei essa fuga como estranha;
vem nos momentos de maior carinho,
quando menos se espera, de mansinho,
galgar a estrada e ver glória tamanha,

tal qual jamais encontrei por esta vida,
lá onde os Tronos me darão guarida,
segundo espero, pois fui servo fiel,

uma boa ferramenta a escorrer mel
por entre os dedos que chamaram versos,
da longa espera por vastidão conversos.

MADRÉPORAS NEGRAS VII

Eu sei que é longa a espera, mas, talvez,
seja o presente meu derradeiro voo;
estes poemas que de meu sangue eu coo,
podem ser os finais que a mente fez.

Só tu és o vento que me leva, tu, que lês;
és tu que sopras as nuvens em que escoo
os sentimentos que diariamente doo,
és tu, mulher, quiçá, que jamais vês

quando a teu lado, inda invisivelmente,
passo com ritmo bem rápido e frequente,
porém diverso daquele em que te embasas,

cumprido esse meu voo, finalmente,
apenas roço sobre ti, sopro dolente,
querendo igual ser o vento de tuas asas.

MADRÉPORAS NEGRAS VIII

Até onde longe é longe para o amor?
Se estamos juntos e parece perto,
acha-se às vezes o coração deserto,
perdida às vezes da alma o seu candor.

Até onde o longe é como um campo aberto,
que se pode cruzar sem estridor,
de alma pura, nenhum plano diretor,
sem projetarmos qualquer destino certo?

Se estás ausente, embora de meu lado,
longe é tão longe quanto estrelas frias,
coaguladas da noite na amplidão.

Se estás presente, embora no passado,
não existe longe, que perto só estarias,
permeio às fibras de meu coração.

MADRÉPORAS NEGRAS IX

Até em que ponto longe é longe para o amor?
Só estás bem longe, em geografia distante,
mas guardo o brilho da boca delirante,
aureolada de saliva, em pleno ardor!...

E se recordo em meus lábios teu sabor,
revestido de estrelas e inconstante,
mas persistente em meu sonhar errante,
ao céu da boca prendo a lua de calor!...

Se recordo tua língua em sua textura,
contra meus dentes e minha boca impura,
ainda me ferve o calor desse teu beijo;

longe não estás, se preso nos teus dentes
está meu coração, mordidas rentes,
a mastigarem mil centelhas nesse ensejo.

MADRÉPORAS NEGRAS X

Até que sítio longe é longe para o amor?
Quando se guarda a lembrança cristalina,
quando se punge um olor de turmalina,
quando a turquesa do ensejo é meu valor,

quando tua imagem se reveste de rubor,
quando teu peito só para mim se inclina,
quando a memória dilata-se, prístina,
quando a emoção é um divinal terror,

quando teu ósculo é gruta de calcário,
quando teu corpo é um carmesim sacrário,
em capela triunfal, lúbrico monge,

somente tange o rosário de teu sexo,
que à religião e à vida empresta nexo,
mais certamente do que existe o longe!...

MADRÉPORAS NEGRAS XI

E até que ponto perto é perto para o amor?
Quando a meu lado insistes em recato,
quando amor mais demonstras pelo gato
que pelo homem que te deu tanto calor?

Quando te esfumas na hora do sexor,
quando transformas a ilusão em simples fato,
quando até os sonhos mansamente mato,
dentre a famélico ordálio de rigor!...

Quando proferes palavras de despeito
e me acusas de um mal que não aceito,
por sempre te buscar de peito aberto,

somente então reconheço o estranho ódio
que me revelas assim, perto do pódio,
sem que nos sobre um lugar que seja perto.

MADRÉPORAS NEGRAS XII

Que um tempo houve em que te dava anéis,
de madrépora formados e abalone,
de cada concha em que mar nos ressone
contra o coro dos marítimos bedéis,

de Netuno os tritões em seus quartéis
feitos de anêmona e corais, em puro cone,
duas conchas que fingíamos ser fone,
muito mais ricos que os terrestres reis!...

Mas o tempo passou e rachaduras
causadas foram por golpes dessas férulas
dos mil rancores e maldições secretas,

e agora vejo racionais nossas loucuras,
e sinto lástima de que tantas madrepérolas

de iridescentes, já se tornaram pretas...

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