segunda-feira, 1 de maio de 2017






DONZELA BELA & MAIS – 12-21/3/2017
Novas séries de William Lagos

(Patrícia, Mercadora da Benevolência, 
Leslie Stuart)

DONZELA BELA I  – 31 JAN 08

Quando uma filha é bela, com certeza
que seja sempre bela se deseja
e que feliz se torne é o que se enseja:
que o amor sonhado aumente-lhe a beleza.

Quando se ama uma filha, que nos beija,
num amor puro e isento de vileza
e que nos trata com delicadeza,
sempre se quer que mais perfeita seja.

Mas não são qualidades que se ama.
Pode ser feia ou tola, o que se quer
é aceitá-la, tal qual como ela é.

Pois quem ama não julga, nem reclama
de seus caprichos, pois, sendo mulher,
é a borboleta de um gentil balé...

DONZELA BELA II – 12 MAR 2017

Infelizmente, nem sempre nos aceitam
como nós somos.  Julgam-nos os filhos;
nos queriam a seguir diversos trilhos,
mais de acordo com a vontade a que se afeitam;

assim seus próprios conselhos nos receitam,
propostas firmes quais arames nos atilhos,
sem grande crença que tenhamos brilhos
quando seus próprios desejos não aleitam;

e que fazer? – senão, ainda aceitar,
que algo de nós mantém o seu lugar
em cada amarga crítica ou rancor,

reconhecendo seu desapontamento
no individual de cada julgamento,
com certo orgulho, que provém do amor.

DONZELA BELA III

E que fazer, se não se consideram
de igual beleza quanto desejavam?
Algum momento sempre há que duvidavam
perante espelho, dos dotes que lhes deram,

que ao menos por metade receberam
dos gens paternos que um dia lhe entregavam
as qualidades que mais tarde demonstravam,
sendo as melhores as mães que concederam,

enquanto os pais terão menos importância
nessa tendência por identificação
com o sexo a que foram destinadas,

e olhando espelhos, em singular instância,
aos próprios pais mais culpa atribuirão
por quaisquer falhas em suas faces reveladas.

DONZELA BELA IV

Sempre busquei lhes dar independência,
ao contrário de meu pai, cuja opinião
sempre era imposta, com ou sem razão,
quiçá por bem, em geral por prepotência.

Bem poucas vezes encontrei clemência
quando algo me pediam, em ocasião
em que lhes dar não tivesse condição
e tal rancor conservaram com paciência.

Da compreensão mantenho a incontinência,
sejam quais forem seus reais motivos:
assim aceito qualquer coisa que me venha,

mesmo não vendo que haja nisso pertinência,
quaisquer desgostos classifico nos passivos,
no livro-caixa que nalma ainda contenha.

DONZELA BELA V

Não é que seja a qualquer efeito cego;
analiso cada defeito ou qualidade,
sem nelas ver importância na verdade:
é assim que são.  A todas eu me apego.

Meus próprios erros, que no rosto esfrego,
eu reconheço.  Mas da vida a seriedade
me conduziu a todo bem e iniquidade
e o que tive de fazer, fiz – e não nego!

Minhas esperanças nelas não emprego;
somente uma um neto já me deu;
mesmo casada, outra não quer nenhum;

mas tudo encaro sem desassossego,
cada lembrança em mim se recolheu,
no coração – a lhes dar pouso comum!...

DONZELA BELA VI

Eu só lastimo que se sintam infelizes
e ainda me alegro, se têm satisfações;
orgulho sinto de quaisquer realizações,
guardo respeito por quaisquer deslizes;

bem gostaria de abrandar suas crises,
quando viessem pedir-me as opiniões,
mas não consigo sondar seus corações,
nem de fato partilhar seus dias felizes.

E pouco importa ser eu mesmo aceito,
o importante é sabê-las aceitar,
enquanto espero, totalmente em boa fé;

e se houver ressentimento, é seu direito
inalienável, que nunca hei de negar,
soltando, às vezes, algum suspiro até!...

EM DANÇA FANTASMAL I – 13 MAR 2017

NA DANÇA DAS SÚCUBOS ME ENLEIO
A CADA NOITE PERCO-ME EM SEUS BEIJOS
AS MINHAS ANSIEDADES NOS DESPEJOS
ABRAÇO TAIS FANTASMAS SEM RECEIO

SEM PESADELOS, CADA SONHO EM MEIO
VOU PONDO EM PRÁTICA A DANÇA DOS ENSEJOS
COM AS SÚCUBOS ENVOLVO-ME EM ADEJOS
FEBRIL A VALSA DO PERDIDO ANSEIO

NÃO VEJO ÍNCUBOS, POR SORTE, DE PERMEIO
BEIJO APENAS AS PENADAS FEMININAS
QUE ME ASSALTAM EM FÚRIAS FESCENINAS

E EM TAIS ORGIAS A SOLIDÃO RECHEIO
TODO DISPERSO EM VENTRES RECEPTIVOS
MEU CORPO ASTRAL APENAS EM TAIS CRIVOS

EM DANÇA FANTASMAL II

SEGUNDO A ANTIGA LENDA MEDIEVAL
ELAS CHEGAM PELO SONHO A SEDUZIR
QUE NUM ORGASMO SE EJACULE CONSENTIR
SEM QUE SOBRE ALGUM VESTÍGIO NO FINAL

ELAS RECOLHEM O SÊMEN DO MORTAL
PARA A SEUS ÍNCUBOS PARES CONDUZIR
QUE NÃO PODEM TAL SEMENTE PRODUZIR
AO PROVOCAREM OUTRO SONHO DESCARNAL

NA MENTE INCAUTA DE MULHER HUMANA
E TAL SEMENTE É NELAS PROJETADA
PARA QUE NASÇAM OS FILHOS DOS FANTASMAS

NA ARCANA CRENÇA DA TEOLOGIA ROMANA
NUMA RAÇA DE DEMÔNIOS TRANSFORMADA
NESSE MACABRO PESADELO COM QUE PASMAS

EM DANÇA FANTASMAL III

PORÉM EM TAIS ELOCUBRAÇÕES DE FRADES
FORÇADOS A MANTER O CELIBATO
OU DESSAS FREITAS CONTIDAS EM RECATO
NA ANTECÂMARA CONDUCENTE AO HADES

EXISTEM MAIS AS PUNIÇÕES DE ABADES
A CONTROLAR O MISERÁVEL FADO
DE CADA MONGE EM CELA CONFINADO
DE CADA MONJA QUE A CONFESSAR PERSUADES

MAS SE AS SÚCUBOS TOMAREM A SEMENTE
DE QUALQUER MACHO HUMANO ADORMECIDO
E AOS ÍNCUBOS A ENTREGAREM GENTILMENTE

SE HOUVER CRIANÇA NASCIDA DESSA ENTENTE
SERÁ HUMANA NESSE VENTRE CONSENTIDO
SEM TER NADA DE FANTASMA REALMENTE

EM DANÇA FANTASMAL Iv

DESSA FORMA PARTICIPO ALEGREMENTE
QUANDO A FARÂNDULA PARA MIM SE INCLINA
E QUANDO A SÚCUBO DO SONHO SE APROXIMA
MEU CORPO ASTRAL DERRAMA-LHE A SEMENTE

POIS SE ALGUM ÍNCUBO PROCURA DILIGENTE
MULHER ENGRAVIDAR EM ARCANA SINA
SERÁ MINHA CARNE QUE A ELA SE DESTINA
NÃO É DAS LARVAS O FRUTO SIMPLESMENTE

PORÉM SÃO FILHOS MEUS DESCONHECIDOS
QUE ANDAM PELO MUNDO A SE ESPALHAR
SEM QUE SUAS MÃES JAMAIS EU TENHA VISTO

E ATÉ MESMO MEUS POEMAS MAIS GARRIDOS
SERÃO ÍNCUBOS SUAS MENTES A EMPRENHAR
POIS NESSES VERSOS EM SEU PEITO EXISTO!

INCÓLUME I – 31 JAN 2008

Em vezo zombeteiro me percebo,
excluído do mundo que excluí,
quando agir diferente decidi
do que ao entorno de mim observava.

Quando da taça da ironia eu bebo,
distraído desse mundo que traí,
como Neruda, "confesso que vivi",
sem condenar o quanto me rodeava.

Mas sendo diferente, a exclusão
bem fácil vem de fora e me endureço
e em bajular eu nunca me apeteço,

vivendo assim à luz da própria ética,
embora oscile ainda o coração,
que amaria bem mais as leis da estética.

INCÓLUME II – 14 MAR 17

Da sociedade a religião é o tecido,
um conjunto de parâmetros que a sustém,
a configuração que tudo ali mantém,
o social corpo inteiro ali contido.

Cada povo tem para si estabelecido
esse conjunto de crenças que lhe vêm,
tal qual melhor para si mesmo tem
e venera a religião que o tem nutrido,

pois de século em século foi criado
esse núcleo de crenças do social
que o povo guarda durante o congregar,

nesse fenômeno que é, de fato, circular:
tornam-se as crenças um todo natural,
seu vasto pálio gerações a sustentar.

INCÓLUME III

Mas no momento em que se quebre a crença
desaparece do social a integridade,
em fragmentos se desfaz a sociedade;
dos bastidores o caos surge e mais se adensa;

rasgou-se o véu que seu ritual condensa,
cenários feitos em farrapos da verdade
e o povo perde a sua própria identidade
e do proscênio se apaga a luz intensa...

É então mais fácil adotar nova religião
do que permanecer sem ter alguma:
foi assim rápida de alguns povos conversão,

cujos parâmetros novéis mostram firmeza
e o corpo social os então assuma,
seus paradigmas a forjar nova certeza.

INCÓLUME IV

Aqui se mostra a importância do ritual,
nessa catarse de toda procissão;
o rico e o pobre na mesma aceitação
que ao rebanho proporciona o seu fanal.

Mas vem doutrina abstrata e imaterial,
escatológica em concreta redenção,
partido ou clube de imediata aceitação,
que compartilhe resultado temporal.

Por mais se veja como isso é transitório,
pode o partido alcançar a maioria
ou nosso time conquistar o campeonato,

sempre um período mais compensatório,
no qual a massa torcedora se gloria,
para zombar dos derrotados sem recato!

INCÓLUME V

É muito raro o indivíduo nessa massa
que consiga fora disso se manter;
não há tecido em que possa se prender,
fica ao sabor do vento que perpassa;

mesmo o rebelde não quer total desgraça:
só injustiçado se está a perceber;
em melhor nicho se deseja pertencer,
sua vantagem no social achando escassa.

Mas raro é o louco que quer tudo destruir;
os radicais querem o todo reformar,
na imposição de uma nova ideologia,

e se não podem no tecido se inserir,
duas ou três décadas depois de protestar,
quem não triunfa, do lutar desistiria.

 INCÓLUME VI

Existe algum que nunca se contenta:
só na aparência encontra-se inserido,
mesmo em inconsciência sempre perseguido,
a cada pretensão, quando a apresenta.

Eu rejeitei os padrões que o povo aventa
e rejeitado por tal povo tenho sido;
mas não desejo ver o mundo destruído,
busco os costumes manter em que se assenta.

E mesmo após tantas décadas passadas,
ainda defendo os patrióticos valores,
amo a bandeira e amo o hino nacional,

da crença em Deus as bases conservadas,
pela família e por amigos meus pendores,
tudo enfrentando de uma forma racional.

QUEIXUME DE MIM I – 2 FEV 2008

Estranho, quando leio o verso antigo,
tal se não o escrevera, já que esqueço
das emoções do momento que padeço
e que ficou atrás, qual se inimigo

eu fora do passado, enquanto eu digo
o que pensava então e que enobreço
ou chocarreio, descrevo ou enalteço,
com bem maior frequência que maldigo,

pois não zombo de ideais mais elevados,
porém me encontro tanto tempo defasado
do que escrevi então, no meu antanho,

mais me surpreende esse fulgor estranho
ou o teor tão simples do cansado
sabor de tantos versos empoeirados.

QUEIXUME DE MIM II – 15 MAR 2017

O que me ocorre, olhando meu passado,
é que a outros de mim sobrevivi,
já morreu esse sonhar que descrevi,
não sei se o antanho foi por mim ultrapassado

ou se o presente se encontra degradado;
apenas sinto que sou eu que estou aqui
e que de uns tantos de mim já me esqueci,
um que outro só ao de leve relembrado.

Não sou mais o que fui aos vinte anos,
nem a quem dei guarida nos meus trinta,
nem sou aquele que viveu os seus quarenta;

não compartilho mais de seus enganos,
bem diversos dos pendores que hoje sinta
e nem sequer amor igual me tenta.

QUEIXUME DE MIM III

Nunca ninguém me ensinou que acontecesse
a mesma coisa que sucede à cascavel:
que descartasse meu pijama ou meu burel,
contendo o corpo que ali permanecesse.

Ninguém me disse que uma alma se perdesse,
tal qual os favos se derretem, cera e mel;
ninguém falou sobre o abandono do quartel,
enquanto aleias a gente ascende ou desce.

Ninguém me disse que assim se descartassem
restos da carne com os perdidos sonhos,
trapos da alma em cada desistência;

ninguém me disse que essas vidas terminassem
ao descascar de seus anseios mais bisonhos,
nessa mescla de razão, culpa e demência.

QUEIXUME DE MIM IV

Só é certo que já fui muitos de mim,
não simplesmente por anos demarcado;
não foram décadas ou um sete bem contado,
não foram lustros lindeiros em confim; (*)
(*) Períodos de cinco anos claramente demarcados.

não se renasce ou reencarna assim,
remontamento é pouco a pouco observado,
de uma quimera sendo a passos desgarrado,
outras forjando em losangos de arlequim,

que sobrepõem-se a forjar novo caráter,
na mescla lenta das personalidades,
uma corrente de cobre vira estanho,

traços de bronze soldando a dura-máter, (*)
no desnovelo de novas liberdades,
em desigual rotundidade de tamanho.
(*) Uma das três meninges envolvendo o cérebro.

QUEIXUME DE MIM V

Até que ponto me matou a vida
ou até que ponto dentro de mim cresci,
até que a casca em que me desenvolvi
já não pudesse ter a alma ali contida?

Foi tão só coincidência recebida
ou lenta escolha que aos poucos decidi?
Contra qual encolhimento me encolhi
ou em qual expansão fui expandido?

Foram escolhas ao longo do caminho
ou por mim decidiram os de fora?
O que é uma escolha, senão a encruzilhada

do que é possível transitar devagarinho
ou velozmente abandonar no outrora,
pois só se escolhe o que se vê e nunca o nada?

QUEIXUME DE MIM VI

Destarte, quando leio o verso antigo,
não sou mais eu aquele que escreveu:
esse de mim já de há muito faleceu,
reencarnado só depois no mesmo abrigo;

o mesmo corpo trago assim comigo,
mas atroz transformação em mim se deu;
não reconheço o espanto que foi meu,
nem sei se o conservar ainda consigo;

e se nisto um dia pensei, há tantos anos,
sem ao menos recordar que o havia pensado,
quantos de mim já se houveram evolado,

sem precisar reencarnar desde os romanos,
não mais que trescalância de perfume,
permanecendo tão somente o meu queixume.

EM LUZ RECALCITRANTE I – 3 FEV 08

Preciso pôr em dia a imensa pilha,
que me emperra e me puxa para trás;
olhar o quanto cresce insatisfaz
e nem sei mais descrever a maravilha,

tomado de um sentido mais mordaz;
e me arrenego ao ver a velha trilha,
estufada desse verso, que não brilha
de igual fulgor com que já foi capaz.

Eles seguem brotando, como a linfa,
que densamente recobre o ferimento,
lenta administra sua cicatrização,

tal como as ilusões que cria a ninfa,
dona inconteste de meu pensamento,
que gera as mágoas de meu coração.

EM LUZ RECALCITRANTE II – 16 MAR 17

Para onde vão as saudades do passado,
quando na alma em nada mais magoam?
Seria correto esperar que ainda nos doam
ou render graças por quanto está apagado?

Será que cada saudade é um ser alado
e eventualmente para os céus revoam
saudades mudas, saudades que ressoam,
igual um nome que não mais é relembrado?

Serão as nuvens, em seu véu algodoado,
de mil saudades as faces esquecidas,
mil mascotes de coleiras já puídas,

que se libertam, sem culpa, nem pecado
e por ali vão se aninhando, sorrateiras,
olhos perdidos quais sombras domingueiras?

EM LUZ RECALCITRANTE III

Domingueiras se diziam dessas roupas,
em naftalina a serem conservadas,
depois de a cada Segunda ser lavadas,
as mulheres conservando véus e toucas.

Na maioria, tais vestes eram poucas,
para as missas apenas reservadas,
para os olhares dos vizinhos consagradas,
muito mais que para o culto.  Vozes roucas

a repetir as domingueiras ladainhas,
como um rosário de preces que se tinha,
a nos poupar de umas quantas penitências,

nesse manto de rezas comezinhas,
em que a saliva com a devoção se alinha,
no monótono cuspir dessas cadências.

EM LUZ RECALCITRANTE IV

Ladainhas igualmente me dirigem
esses rascunhos em cartões acumulados,
numa quaresma de versos estirados
nesse rosário que dedos não afligem,

na quadra roxa as preces não me atingem, (*)
já demarquei os tempos aprazados;
a limpo, se eu viver, serão passados,
num pentecostes de brilho que me impingem.
(*) A cor canônica dos paramentos quaresmais.

Do mesmo modo que aguardam sua ração
a cadelinha Shitzu e o lindo gato,
devem tais versos demonstrar paciência;

preciso antes perfurar meu coração
para rever os pergaminhos com recato
e restaurá-los de sua baça decadência.

EM LUZ RECALCITRANTE V

Com frequência, estas linhas do passado
o seu valor de excelência impõem,
melhor que as de agora se supõem
e continuam a chilrear seu canto alado;

poucas vezes algo delas transformado,
mesmo que tantos anos se pospõem,
só certos termos que em meu passado soem
hoje ilegíveis no papiro desbotado.

Mas acredito que tenham data certa
para quando alguém deles precisar,
mesmo que possam no presente me chocar,

todos recebo, mesmo assim, na alma aberta;
não foram pródigos tais naftalinizados,
a ressumbrar seus olores canforados.

EM LUZ RECALCITRANTE VI

Não são, de fato, melhores nem piores;
são o que são, portanto sendo aceitos,
só corrigidos por mim poucos defeitos,
seus arranhões provocando alguns ardores,

visto que trazem de mim os estertores,
mantidos sempre em relutantes jeitos,
expondo em exigências seus direitos
à final sobrevivência em destemores.

Como um corpo de santo se conservam
em seu caixão de vidro ou em redoma
tão inteiro qual no dia em que morreu,

remanescem nas rumas que se alternam,
antes que este presente que os retoma
vá desmanchá-los ante o sopro que foi meu.

ESPELHO DE AZINHAVRE I – 5 FEV 08

Perfeita só serás quando te fores
para longe de mim.  Procurarei
então me recordar que não gostei
disso ou daquilo nesses teus pendores...

E não acharei nada.   Só os calores
que cresceram em mim e que gozei.
Da indiferença ou do frio por que passei
não lembrarei, somente dos ardores...

Mas eu sei que somente tu serás
o quanto deves ser quando partires:
o quanto vejo em ti e que não vês...

E que apenas a ti mesma encontrarás
bem distante de mim, quando sentires
essa mesma perfeição em que não crês...

ESPELHO DE AZINHAVRE II – 17 MAR 17

Já é lugar-comum que o ser humano
só dê valor àquilo que perdeu
ou que na mente apenas concebeu
e não àquilo que usufrui sem dano.

Em cada coisa há de encontrar um desengano:
em cada fruto certa mancha se acolheu,
de cada roupa um fiapo desprendeu,
em cada taça há um agridoce engano.

E mais ainda nessas questões de amor,
em que cada questiúncula se expande
e ofendemos bem mais do que sofremos,

por entre o tiritar desse tremor
de que a inveja um mal maior nos mande
para rachar essa alegria que mostremos.

ESPELHO DE AZINHAVRE III

Bem lá no fundo existe uma certeza
no equilíbrio dos pratos da balança:
que a cada bem que o coração alcança,
no outro prato deposita-se a vileza...

Se nosso bem for da maior grandeza,
quê nos espera nessa oposta dança,
qual malefício o pesador nos lança,
emparelhando as bacias com firmeza?

Até que ambas as chapas do Fiel
se encontrem justapostas totalmente,
melhor não termos alegrias por demais,

porque não seja despejado muito fel,
em contraposição ao que se sente,
preferível ocultar-se os bons sinais...

ESPELHO DE AZINHAVRE IV

Pois todo amor é no espelho azinhavrado.
Pelas beiradas há de cinábrio as rosas,
algumas formações mesmo formosas,
porém que escondem o rosto desejado.

Esse efeito que se quer só desviado
para cima ou para baixo, temerosas,
veem as pupilas as marcas desastrosas,
algo à direita ou à esquerda melhorado,

sendo essa a parte de mais nítido reflexo,
embora o espelho com seus tons a degradar
seja melhor que uma bacia completada

com água límpida para dar-nos melhor nexo,
em que o mais simples toque faz brotar
maré concêntrica em ondas corrugada.

ESPELHO DE AZINHAVRE V

Também amor recorda tal bacia:
só é perfeito se o deixamos intocado,
o menor toque o deixa perturbado,
toda imperfeita cada face mostraria;

e desse modo, sempre há quem preferia
deixar amor jazendo de empoeirado,
em turbidez seu reflexo embaciado,
mas evitando–se essa onda corredia.

Mas ai! – que ocorre pequena vibração,
qualquer passo mais firme pelo chão
ou o adejo mais simples de uma brisa

e nos círculos concêntricos da ilusão,
vai ondulando, menos que concisa
e só a figura deformada se divisa!

ESPELHO DE AZINHAVRE VI

Assim ao amor a distância aperfeiçoa,
não se o toca, nem de leve, com um dedo;
o azinhavre conserva o seu segredo,
enquanto a água sem a brisa não destoa;

e se a miragem ante o olhar nos voa
e a idolatrada prefere o seu degredo,
por ter vergonho, por revolta ou pelo medo,
essa maré até se encara como boa.

Sem dúvida, essas bolhas são de espuma,
mas cada uma nos reflete igual semblante,
durante um breve momento a rebrilhar,

diante dos olhos conservadas, uma a uma,
fisionomias furta-cores de um instante,
até que o arco-íris dissolva-se no ar!...

HEMOPOESIA I – 5 FEV 2008

É como um dente frouxo, uma ferida,
o que sinto por ti, gélido instante,
que se volta a tocar, nesse constante
cutucar dos desgostos desta vida.

A gente sabe que não deve; e avante
move-se a língua ou o dedo; é a lida
quase inconsciente da aflição sentida,
na transgressão de distração meliante.

Às vezes, temos no nariz hemorragia,
quando menos se espera; então o dedo
vai remexer na casca, sem cuidado,

provocando uma nova... e a nostalgia
é de igual modo remoída, sem segredo,
para sangrar o coração redespertado...

HEMOPOESIA II – 18 MAR 17

Esse é um amor que não se pode dominar,
que do fundo do peito não se tira,
amor que nos domina qual vampira,
a alma inteira sempre a nos sugar.

Esse é um amor que não se pode confessar
enquanto dele algum bem ainda se mira,
por mais que a gente negue, torna e gira,
tal qual mania intermitente em seu surtar.

Amor estranho, tornado num cacoete,
que se permite purgar numa sangria,
amor que a si esquecer não permitia,

amor elétrico, amor feito soquete,
a contemplar-nos com duplo olhar vazio,
amor umbilical de amargo fio!...

HEMOPOESIA III

Não é de fato qualquer símile banal
em amor se pensar como sangria,
na emoção da artéria que escorria
de cada veia em fio de amor venal,

de cada capilar no hemorragial,
pena sangrenta que cada peito via,
que dia e noite a alma assim desfia,
pérolas rubras de líquido hemacial.

Amor de sangue, porém sem anemia,
que a cada vez que no solo se derrama,
um novo esforço ao medular conclama,

e novo sangue para as veias compelia
para servir de alimento permanente,
na ausência e no vazio da própria mente.

HEMOPOESIA IV

Amor de fato semelhante a vício,
que só brota de um peito rejeitado,
em mil cartas de tom desesperado,
o coração batendo em tal bulício,

que tal vício a si mesmo regenera,
para seguir em teor descompassado,
sem nem ao menos ver a outrem perturbado,
rasgadas cartas por quem não as espera.

Amor, enfim, que nem chega a ser poema,
mas que a poesia por pretexto emprega,
por comover a quem amor lhe nega,

sem obter em troca a menor pena,
mas do rancor apenas a emoção
de quem jamais lhe abriu o coração.

HEMOPOESIA V

Esta tragédia não tem nada de sutil:
existe aquela que tomou veneno,
existe aquele que um derradeiro aceno
lançou à amada, em tolice juvenil,

antes de se lançar, em falso varonil
protesto, de um telhado em voo pleno,
para partir o pescoço em terrapleno,
trabalho dando aos demais, em gesto vil!...

A maioria, porém, canta um boleto
ou algum  tango de sabor portenho
(donde se vê que tal amor é ultrapassado!)

ou vai em drogas afogar tal amor vero
ou uísque toma, com cerrado cenho,
para mostrar como foi injustiçado!...

HEMOPOESIA VI

Mas não se pense que amor dos meus descrevo,
embora um dente frouxo tenha tido
e o interior de meu nariz tenha ferido
(hoje não faço mais o que não devo!);

pois qualquer ânsia de amor sempre relevo
na hemorragia de algum verso desvalido,
penas remexo como o dente retorcido;
a hemoptises, porém, jamais me atrevo!

Naturalmente, em minha adolescência,
igual que tu, tive penas sem clemência,
muito raro  quem a todos correspondem;

e neste caso, pouco amor é bem sincero,
bem mais rivalidade, orgulho mero,
enquanto o vero amor outros escondem...

PORTO DE ABRIGO I – 19 MAR 2017

Amor é longo sorvo derradeiro
Do suave hausto da respiração,
que se suspeita, com consternação
juntar o último hálito ao primeiro;

amor é esse dezembro de janeiro,
o fim da lida da consumação,
que apenas se suspeita de ilusão,
no vasto aguardo de um beijo alvissareiro,

que se teme seja o último, em que o respiro
se perfuma da amada e se conserva
como um troféu de gozo sempiterno

e a cada vez que se repita o giro,
que se meça o calor que ao peito ferva
e se dissipe no mesmo sonho eterno...

PORTO DE ABRIGO II

É necessário, enquanto amor perdura,
aproveitar toda a sua inspiração;
pouco resulta de passear de mão na mão:
essa paixão adolescente o tempo cura.

Porém ao refletirmos, certa agrura,
em melodia de poética edição,
para o futuro embalsama essa ilusão,
quando na mente sua intenção foi pura.

É insuficiente redigir cartas de amor,
cada poema tem de ser universal,
cravar-se em todo peito qual punhal;

que cada um nele perceba igual ardor
e se convença, mesmo na desilusão,
que amor existe muito além do que é paixão.

PORTO DE ABRIGO III

Mas esse amor que no peito se enraíza
é como erva daninha duradouro;
adaptado, não deixa o nascedouro,
por mais que erradicá-lo a mente visa.

É independente de qualquer razão concisa,
não nos dá a nutrição do trigo louro,
não se articula em bom ou mau agouro:
nas profundezas da carne se embaliza.

É quando mais se o busca terminar
que mais fundo demonstra-se encontrar,
muito mais fácil destruir-se um florilégio;

amor terrível, a causar-nos hemiplégio,
em resultado de um estranho sortilégio,
como castigo por querer tudo acabar!...

PORTO DE ABRIGO IV

E nas profundas dessas suas raízes
amor encontra o mais seguro abrigo,
dos desapontos enfrentando o inimigo,
do mais forte rancor que o caule alises,

por mais forte a pegada com que o pises,
sempre retorna para dormir contigo,
vai mais além da lápide de um jazigo,
expandindo por teus ossos novas crises.

Em qualquer canto do encéfalo, enseada
encontra no enfrentar das tempestades
e ali se ancora sem temor do vento;

por mais que seja sua morte assim buscada,
supera a ingratidão e as falsidades,
preso nas fímbrias do teu pensamento.

ESTRELAS PARTIDAS 1 – 20 MAR 2017

AMOR É GOTA DE LUZ PERMEIO À LAMA,
VIÉS DIAGONAL DA SIMPATIA,
APENAS REGISTRADO EM TUA FOLIA
DE QUE TU AMAS A QUEM TAMBÉM TE AMA.

AMOR É ESSA JÓIA QUE RECLAMA
TODA A NOSSA ATENÇÃO, TODA A MAGIA;
ENQUANTO EXISTE, AMOR É MELODIA,
SONATA DOCE DO SONHO QUE PROCLAMA.

AMOR É TAL LOUCURA FASCINANTE,
APENAS LUSCO-FUSCO, NUNCA AURORA,
UM PÔR-DO-SOL DE NUVENS ENVOLVENTES,

NADA MAIS QUE UM REFLEXO INCONSTANTE,
A DEPENDER DE SEU ÂNGULO E DA HORA,
NESSAS BOLHAS DE LAMA OPALESCENTES.

         ESTRELAS PARTIDAS 2

QUANDO EU SAIR DO CORPO QUE ME PRENDE,
IMITANDO, FINALMENTE, UM BEIJA-FLOR,
A PROJETAR-ME NO CÉU SOB O CALOR,
NESSA ANSIEDADE QUE O CORAÇÃO ME FENDE

E DEIXAR PARA TRÁS O QUE ME RENDE
AOS DESEJOS TEMPORÁRIOS DESTE ARDOR,
AO BEBER E AO COMER DANDO VALOR,
NAS BUSCAS MATERIAIS A QUE SE ATENDE

E VIRAR UM PLANGENTE SER ALADO,
ALMA INCONSÚTIL DE FULGOR ESTRANHO,
NA DANÇA MULTICOR DOS DESATINOS

E ME PERDER NO ESPAÇO SIDERADO,
TALVEZ TE ENCONTRE DESSA LUZ NO BANHO,
NO ENTRELAÇAR FINAL DE DOIS DESTINOS.

ESTRELAS PARTIDAS 3

E SE ACASO UMA GOTA FOR APENAS,
A DEMANDAR O MAR DA ETERNIDADE,
AINDA HEI DE PERCEBER ESSA AMIZADE
QUE ENTRELAÇA PARA SEMPRE DUAS CONDENAS

ESQUECIDA A SOLIDÃO COM QUE ENVENENAS
A SUPERFÍCIE DA VERDE OPACIDADE
NESSE EMBAÇAR DE QUALQUER TRANQUILIDADE
SÓ RECORDANDO AS HORAS MAIS AMENAS.

EU SEREI O PÔR-DO-SOL NESSE MOMENTO
E BUSCAREI EM TI A NOITE ETERNA,
NA LENTIDÃO DA LUZ CREPUSCULAR

E POR MITO SINGULAR DE ASSENTIMENTO,
NO LUSCO-FUSCO QUE TREVA E LUZ ALTERNA,
NA LAMA A ESTRELA IRÁ DE NOVO REBRILHAR.

REGRAS DA VIDA LXXXIX (89)

Tua vida deveria ter um plano,
Um alvo ou meta, qualquer objetivo,
Algo mais que o aguardar subjetivo
Do que nos acontece ano após ano.

Caso contrário, apenas um abano
Receberás dos outros, lenitivo
Bem pobre para o tempo tão esquivo
Que se esvaiu de ti em triste dano.

Deves saber o que queres de tua vida,
Qual o destino de todo o teu esforço,
Proagir sempre ao invés de reagir.

Caso contrário, os outros de vencida
Te cooptarão e sobre o dorso
Carregarás quem não PUDESte compelir.

LACRAIAS 1 – 21 MAR 17

Mas para mim foi sempre diferente:
A vida me enfrentou como em tocaia,
A cada plano só me acolheu a vaia
E reagi com a frágil força do impotente.

Para trilhar um caminho mais decente,
Tracei dos planos a sorrateira laia,
Tentei sempre entocá-los em sua baia,
Mas espantaram-nos dali completamente.

Tenho plano ainda agora, ainda espero
Tornar-me de meu barco o capitão
Ou, pelo menos, ser seu timoneiro

E então seguir somente o reverbero
Do reflexo da aurora em flutuação,
Na mesma ânsia de meu passado inteiro.

LACRAIAS 2

Por ti ainda espero e não te vejo,
Luz sideral de carne bruta feita,
Cor seminal de drusa contrafeita,
Som afinal do moribundo ensejo.

Por ti espero assim e ainda almejo
O par ideal colado contra o peito,
O mar carnal de juras escorreito,
Lua dourada ao sol em suave queijo...

Por ti aguardo nesta ânsia pura,
Apenas te esperando ver, singela,
O vento a esvoaçar em teus cabelos...

Da solidão a temporária cura,
Da escuridão a transitória vela,
Nos perdulários sonhos de desvelos...

LACRAIAS 3

Por tI suportarei a derradeira
Assuada que se amplia em vaia,
Qualquer picada humana de lacraia,
Em meu caminho a interpor-se, bem ligeira,

Fingindo pena, em malícia sorrateira,
Maré montante que muito mais se espraia,
Saraiva dura que sobre a mente caia,
Vil empecilho à decisão primeira.

E pouco importa que não tenha um plano
Que me conduza a ti com pertinência:
Minhas artérias trazem chumbo coagulado

E assim resistem mesmo ao pior dano;
Portanto aguardo por ti com persistência,
Na feroz mágoa de um amor obstinado!...

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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