A CAMISA E MAIS – 3/7 FEV 2018
William Lagos
A
CAMISA I – 3 FEV 2018
Esta
camisa tem cinquenta anos,
dois ou
três mais. Só posso imaginar
em que
parte do mundo possa achar
as
velhas mãos que costuraram estes panos.
Acompanhou-me
por muitos desenganos,
por
tanta coisa que pensei ganhar,
para
entre minhas mãos ver desfiar,
enquanto
íntegra cobria meus afanos.
Conservo
ainda inteira esta camisa,
em
farrapos se foram os meus sonhos,
mal e
mal conservo os meus ideais,
porque
sonhos desfaz a menor brisa,
porém
ideais, jamais sendo tacanhos,
guardo
no cofre das ilusões sensuais.
A
CAMISA II
Esta
camisa permanece inteira,
sofreu
apenas um mínimo rasgão
sob uma
axila. Meus pertences são
conservados
até a hora derradeira.
Quando
engordei, ficou na prateleira
por
vários anos. Em parte foi razão
de se
manter na atual conservação,
sem
desgastar-se às mãos da lavadeira.
Emagreci
e hoje a visto novamente,
protegida
por uma camiseta,
que
assim precisa de ser lavada menos,
também
em parte a lavagem infrequente
a
conservou... Razão pouco secreta ,
igual
que barco adormecido nos seus remos.
A
CAMISA III
Meus
sonhos não lavei, de forma igual,
dentro
da mente os guardei na prateleira,
tentei
às vezes recuperar inteira
cada
uma ideia de ressentido cabedal.
Algum
rasgão sofreram, bem ou mal;
sempre
a tristeza se esgueirou, ligeira,
mas
antes que chegasse a derradeira
destruição,
guardei de novo cada ideal.
Guardo-os
em caixas fazem já cinquenta anos,
dois ou
três mais. Conservam algum brilho,
dentro
do invólucro mal existe um grão de poeira.
Mas
arejá-los causaria mil afanos
pois
cada sonho é do cérebro meu filho
e
morreria ante a brisa sorrateira.
A FILHA
I – 4 FEV 2018
Tenho
uma filha que me amava, com certeza;
por
muitos anos nos reunimos sem maldade,
mas
certo dia, por qualquer iniquidade,
deixou
de vir assentar-se à minha mesa.
Hoje a
encontrei. Andava com nobreza,
mesmo
sem ter muitos meios na verdade,
achei-a
bela em tal visão de brevidade,
mas não
sei se ela me viu com gentileza.
Pois não
me veio procurar e é certo
que a
distância era a mesma para nós:
precisei
seguir em frente, tinha pressa...
No
coração ficou lugar deserto,
certa
tristeza senti, sem ser atroz,
mas que
suspeito muito mais me cresça.
A FILHA
II
Eu lhe
escrevo com frequência. Não responde.
Porque
de mim se afastou nunca entendi.
Fico a
pensar no modo em que a ofendi
e o
coração, por mais profundo sonde,
não
reconhece qual o motivo donde
não
mais me busca. Na véspera ainda cri
que seu
amor guardasse o quanto o vi,
que a
meu redor o seu carinho ronde.
Pois
não percebo o motivo, certamente:
os meus
caminhos sempre os fiz a pé,
mas ela
mora na outra ponta da cidade.
Um
carro tem e sei que guia contente,
poder-me-ia
visitar de boa-fé:
tem a
metade apenas de minha idade.
A FILHA
III
Os seus
irmãos com frequência me visitam,
algumas
vezes lhe envio algum presente,
por
intermédio deles e nem sequer assente
de que
tais recebimentos a revistam.
Não se
casou. Dela netos não se avistam;
queria
tanto abraçá-la novamente!
Se for
de taxi, pode se achar ausente
e as
malquerenças talvez ainda insistam.
Penso
que o acaso para mim não haverá;
um dia
espero seu coração transmude
e
chegue junto com um de seus irmãos.
Mas já
nem sei o que tal dia trará,
se
encontrarei seu semblante meigo ou rude
ou se
partilha só haverá de olhares vãos!
A
CIGANA I – 5 fev 2018
Um dia,
foi no século passado,
dei a
cigana a palma de minha mão;
os
quiromantes talvez tenham razão,
algo
que disse quiçá tenha acertado.
Tive
seis filhos, tal qual profetizado,
por
duas vezes entreguei meu coração,
dois
casamentos nas décadas que vão,
duas
ligações que ela achou no lado
de
minha sinistra, que também deu-me direito
a longa
vida mostrada em traços grossos,
bem
retorcidos ao longo de minha palma,
que
inda contemplo, com estranha calma
e
sobrevivo, trazendo sobre o peito
o
escapulário de meus próprios ossos.
A
CIGANA II
A
poeira recolhi, não de meus ossos,
porém
das dunas de minha própria mente,
tanta
poesia abandonada indiferente,
mas sem
tornar-se das traças os destroços.
Guardo
poemas de meus anos moços
que
nunca digitei, nesta indolente
máquina
nova. Mas fui bastante diligente,
bom
datilógrafo de tantos meus esboços...
Agora
vejo que se vai já quase um ano
em que
nada passo a limpo em tom viril;
troquei
o meu computador e a impressora,
tive
problemas de visão e muito afano,
mais
oito livros traduzi, dom varonil,
mas que
a vida me roeram sem demora.
A
CIGANA III
Esses
não posso conservar no escapulário,
são
carne e ossos de quaisquer outros autores,
trabalho
incômodo de muitos estertores,
levando
o tempo de minha vida, perdulário.
De
certo modo, recomeço o vário
labor
de ódios, lutas e rancores;
já
descrevi em mil versos meus amores,
desgastei
meus pés e mãos como um romário.
Não são
os mesmos. Esqueci os motivos
por que
escrevi no antanho tais resumos,
mas
decidi-me a renovar os meus esboços,
do
escapulário a preencher os crivos
com os
ideais da mente, sangue e grumos,
por
mais que tenha de esfarinhar meus ossos!
A IDADE
I – 6 FEV 2018
“A
duração de nossos dias reduz-se a setenta anos
e se o
vigor de alguns os leva a oitenta,
seu
orgulho se resume em tristeza e tormenta,
pois
tudo passa depressa e nós voamos...”
Esta
máxima nas Escrituras contemplamos
e
quando o bom-humor contrariar tenta,
chega
uma dor que as juntas nos frequenta
e a tal
sabedoria nos confiamos...
Pois,
sem dúvida, a idade traz mazelas...
é como
dizem: “a velhice é bem sociável,
nunca
vêm só, mas sempre acompanhada;
chegam
as contas e mais outras procelas;
por
mais equânime que alguém seja e razoável,
torna-se
a alma um tanto ou quanto acabrunhada.
A IDADE
II
Eu não
me queixo, completarei setenta e cinco
e
achar-me posso bem aquinhoado;
por
meus problemas sou acompanhado,
junto a
eles bebo e brindo com afinco.
Meu
corpo não conservo como um brinco,
mas
toda a vida na mente fui baseado
e nela
pude claramente ter confiado,
pois
meu pensar conserva inteiro o vinco.
Se já
não posso caminhar o quanto
antigamente
estava acostumado,
resgato
o tempo que nisso iria gastar;
a meu
redor visto de livros manto,
por
muitos discos sinto-me abençoado
e
sempre posso meus selos desfrutar...
A IDADE
III
“Um dia
a outro dia canta uma canção
e uma
noite o conhecimento aviva
a outra
noite.” Mas do tempo sou conviva,
que me
devora lentamente o coração.
Às
Escrituras de uma nova citação
minha
amada musa vem curvar-se, esquiva,
contudo
a mente, sem cessar, me aviva,
mesmo
que ao corpo reduza sua atenção.
E ainda
eu luto contra a lenta esteira,
sem que
consiga deter seu movimento
e os
passos dou, incerto no volante
e não
apresso sua fugaz rasteira,
sem
procurar qualquer ritmo mais lento
para o
cantar de meus dias, incessante.
A
CONFIANÇA I – 7 FEV 2018
Sei que
o futuro me reserva dissabores
parelhos
aos que vi no meu passado,
mas sei
também cumprir o meu recado,
trajos
vestais contendo tantas dores.
Mortais
que sejam meus físicos pendores,
cada
mal que me atingiu tenho guardado
nessas
vasilhas com vitrilho de pecado,
misticamente
a refletir seus esplendores,
que são
meus versos de métrica perfeita,
alguns
mesmos a me causar espanto,
algo de
novo me pasma em seu cantar,
em
tantas frases a lavra ainda escorreita,
cada
metáfora pura gota de outro pranto,
que não
pretendo nunca sopitar.
A
CONFIANÇA II
Que
possa a vida completar eu creio,
sem
apressar e sem temer a morte,
sem
lastimar nem me gabar da sorte,
sem
invejar nem cobiçar o alheio.
Tenho
confiança em controlar o veio
destes
mil versos dos quais eu sou consorte,
que
longa é a pilha das células que aborte,
tanto
rascunho que só em esforço leio.
Mas se
hoje enfrento o adverso secular
sem
esperança de o mundo influenciar,
sendo
somente mais um de mil poetas;
bem sei
que remo assim contra a maré,
com que
o medíocre alcança maior fé,
porém
minhas linhas de batalha são completas.
A
CONFIANÇA III
Bem
gostaria de poder te influenciar
e
infeccionar-te com meu otimismo,
iluminar-te
a escuridão de abismo,
tantos
ideais aqui poder comunicar!...
Mas é
laborioso preconceitos afastar,
nem
recompensa se encontra no altruísmo;
somente
sei mostrar meu paroxismo,
por
mais que dele te queiras rebelar.
Correm
os jorros de fonte seresteira,
enquanto
olho ao redor, cheio de pasmo,
como se
louvam os rasgos sem ternura.
Meu
vinho apenas escorre da videira,
nessa
confiança tola de um fantasma
que
anseia a alma poder tornar-te pura.
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