A GOVERNADORA & MAIS
William Lagos
FACETAS XXIX – A
GOVERNADORA I – 16/7/2006
Bondosa é essa mulher
que seu marido
deixa pensar que manda
e que governa,
enquanto é ela que, mão
firme e terna,
lhe sugere as ações, ao
pé do ouvido...
sem enfrentar, nem
maltratar o orgulho
de ser o ditador, que
tudo pode;
que no seu lar, ao
menos, se sacode
de humilhações externas
e do esbulho
que sofre, enfim, sua
masculinidade
no áspero lidar com
adversários
e até mulheres que
superiores são;
só em sua casa retoma a
qualidade
de amo e senhor, nos
gozos solitários
que ela finge lhe
dar... por sedução.
A GOVERNADORA II – 17 ABR
14
Mas enquanto ele senta no
sofá
e um jogo assiste na
televisão,
ela sugere, como em
confissão,
que ofertas de tevês
maiores há...
“Pena que a gente comprar
não poderá,
embora chegue já da Copa a
ocasião...”
E se levanta, indo até o
fogão,
pois o controle seu amor
conservará...
E quando o jogo termina,
lá vem ele,
“Sabes, querida, que
estive pensando...
Será que cabe no nosso
orçamento
uma tevê maior, que até
congele
as imagens ou possa jogos
ir gravando...?
E ela diz: “Ótima ideia,
querido!” num momento.
A GOVERNADORA III
Ou ela fala, como quem
nada mais quer:
“Fiquei cansada, tanta
roupa fui lavar!
Tem de ensaboar e
torcer, tem de esfregar,
mas que fazer: é
trabalho de mulher!...”
E ele fica escutando;
e nem sequer
responde a seu gentil
tagarelar...
Depois vai com seus
filhos conversar:
“Será que a mãe de
vocês queria ter
como um belo presente
de Natal,
alguma máquina, dessas
de lavar...?
O que acham vocês de
uma surpresa?”
Concordam todos e,
como é natural,
vão insistir sobre o
que querem ganhar...
E chega a máquina em
casa, com certeza!
A GOVERNADORA IV
Ou ela só menciona,
simplesmente,
que a vizinha pretende
logo se mudar;
com um empréstimo do
banco, vai comprar
uma casinha, para ter
lar permanente...
“Esse aluguel que eles
pagam, mensalmente,
irá servir para a
prestação pagar,
em investimento para o
próprio lar...
Vou sentir falta...
Sou amiga dessa gente...”
E o marido enfia a
cara no jornal,
como quem não está
dando a menor bola,
mas vai até um banco
se informar...
E depois diz à mulher,
com natural
orgulho, após trazer
os filhos da escola:
“Sabes? Pensei em uma casa financiar...”
A GOVERNADORA V
Naturalmente, finge
surpreendida estar
com a bela ideia que teve
seu marido;
e começa a objetar: “Porém
querido,
será que a gente vai
conseguir pagar...?”
E o maridão começa a se
gabar:
“É que eu pensei nesse
aluguel perdido...
O pagamento em seu lugar
será atendido
e a gente está comprando o
próprio lar...”
“Meu querido, mas que
ideia boa tiveste!...”
“Ora, meu bem, que bom que
concordaste;
ontem pensei em precisar
te convencer...”
“Mas tens certeza? Será que te informaste?”
“Passei no banco para
fazer um teste
e um bom empréstimo vão
nos conceder!”
A GOVERNADORA VI
E assim ela vai levando
a vida,
ingenuamente, apenas na
aparência,
pois de seu lar mantém
plena intendência,
dando ideias devagar,
muito contida...
E dessa forma, gentil e
comedida,
de seu marido supera a
indolência,
sem permitir que jamais
tome consciência
de que ela é quem
governa, decidida!
Porque de fato, mesmo a
mais ignorante
das mulheres consegue
dominar
o mais inteligente dos
maridos!...
No seu dedinho mínimo,
constante,
facilmente dá um jeito de
o enrolar,
branda rainha dos
desejos concedidos!
DIVINA OPERAÇÃO I – 18 ABR 14
Quando Deus criou o homem, foi pretexto
para a real formação de sua existência;
esperou alguns anos, com paciência,
até a forma completar de seu contexto.
A Adão adormeceu, com simples gesto
e uma costela tirou-lhe, com ciência,
e dos cinco sentidos da experiência
criou alguém que já nasceu com o sexto...
Sem dúvida melhor, em sua beleza,
capaz de transmitir melhor herança
do que o trabalho de que o homem tem mister.
E foi assim que coroou a Natureza,
antes só verde, em cor rosada de esperança,
para instalar a sua semente na mulher!...
DIVINA OPERAÇÃO II
Por isso o homem é forte em seu orgulho,
mas de fato, quem domina é sua mulher;
essa costela não lhe fez falta sequer,
nem provocar em Adão qualquer esbulho...
Na Idade Média, o monacal entulho,
a Escritura extrapolando como quer,
afirmava não haver homem qualquer
com vinte e quatro costelas no refolho...
Mas que tinham vinte e três e um esqueleto
com vinte e quatro deveria, certamente,
pertencer a algum cadáver feminino;
qualquer discórdia mantida em dom secreto:
não se pensasse que um santo, infelizmente,
tinha um defeito no arcabouço masculino!...
DIVINA OPERAÇÃO III
E era por isso proibido autopsiar
qualquer cadáver, por ser profanação
da imagem de Deus, nessa ocasião,
como se fosse possível Deus cortar!...
Naturalmente, se de fogueira o estalar
mostrasse outra costela, sem razão,
era que o herege estava em possessão
diabólica, para os crentes enganar!...
Desta forma, melhor era enterrar,
muito depressa, quem morresse assim,
antes que a caixa torácica surgisse!...
Só em grandes piras os mortos a cremar,
após batalhas e pestilência, enfim,
antes que a morte ver costelas permitisse!
DIVINA OPERAÇÃO IV
Pois é claro que a feminina criação
se destinava a perpetuar a raça;
uma costela tinha a mais, que abraça
o feto inteiro, durante a gestação!...
Não ponho em dúvida que o infeliz Adão
fosse operado, para que Eva se faça;
nas Escrituras, porém, nada perpassa
que cada homem recebesse igual missão!...
A Costela Vinte e Quatro era a intuição,
que do homem então passou para a mulher,
ficando ele apenas com a razão
dedutiva ou indutiva que se quer,
para a ciência levar à brotação,
sem em nada contrariar a religião!...
FOTOGRAFEIAS I
– 19 ABR 14
A imagem que o
espelho me reflete
não é a mesma
que aparece em meus retratos;
nem sei qual
delas corresponde aos fatos,
se é a luz do flash que ante mim se intromete
e os olhos pisa
enquanto a luz inflete,
enquanto para o
espelho, em fortes tratos,
eu olho com
firmeza e, como os gatos,
o olhar desvio
do brilho que me afete!
De quando em
vez, somente, surge a imagem
que o diafragma
da pálpebra conforma
e pelo vítreo
humor é revelada;
então,
digitaliza o olhar visagem,
meu sentimento
em obturador se forma
e de algum
modo, sobre a chapa é projetada!
FOTOGRAFEIAS II
O fato é que não sei ser fotogênico
quando esse flash
se esbate em meu olhar;
alguma sombra é precisa no acentuar
destes meus traços, em melhor instante cênico.
Diante do espelho, tenho o rosto calistênico,
meu eu interno assim a revelar;
porém quando essa luz vejo espocar,
o meu aspecto se torna mais esplênico.
Também evito tirar fotografias,
pois sempre treme a minha mão ao apertar
o botãozinho ou alavanca necessários
e imagens trêmulas então somente vias,
resultado talvez deste acanhar,
ante meus próprios retratos tão nefários...
FOTOGRAFEIAS III
O fato é que
raramente reconheço
meu próprio
rosto nas fotos retiradas,
mesmo que fotos
armadilhas são, pesadas,
pois pedaços de
minhalma ali esqueço;
então, que me
“foteiem” nunca peço,
por que alma e
cara não fiquem esgarçadas
ou que semanas
me tirem, compassadas,
da expectativa
de vida que despeço!
Pois quanto
menos fotos eu tirar
será mais longo
o tempo de minha vida,
mesmo que a
foto seja apenas um reflexo
sobre meu rosto
dessa luz solar
que, num
instante, me tome de vencida
e se imprima, a
fingir ser meu próprio nexo!
OUTONO
I – 20 ABR 14
AS
FOLHAS AMARELAS
PAPEL
CREPOM
CAEM
DANÇANDO NO MAIS AMÁVEL SOM
UM
FARFALHAR DE TODAS AS PROCELAS
DO
VENTO RELUTANTES CONCUBINAS
QUE,
APÓS POSSUÍ-LAS, AS ABANDONA ÀS SINAS
DE
TERRA SEREM DE SEREM TERRA
VIRANDO
HÚMUS HÚMUS VIRANDO
A
TERRA NEGRA A NEGRA TERRA
QUE
NOS VALES SE ACUMULA E NÃO NA SERRA
E
POR MAIS ALTO QUE UMA ÁRVORE SE ELEVE
POUCO
SE ATREVE
A
VOAR TÃO LEVE
COMO
AS FOLHAS QUE O VENTO LHE ROUBOU
OUTONO II
FOLHAS VERMELHAS
INTESTINAIS
DOS EUCALIPTOS TOMBAM COMO FACAS
UMA A UMA DAS FOLHAS TU DESTACAS
DEDOS DE VENTO COMO RENDAS OUTONAIS
DA GEADA FEITA DAS LÁGRIMAS DAS VELHAS
NO AR FLUTUAM FLUTUAM NO AR
ADAGAS LISAS LISAS ADAGAS
A PROTESTAR A PROTESTAR
NESSE ZUNIDO QUE PARECE A VOZ DO VENTO
MAS QUE É O UIVO DAS FOLHAS A GEMER
DO TRONCO LENTO
LENTO DESCER
COMO NO SOLO TOMBA CADA SOMBRA
OUTONO III
CRISTAIS DE GELO
CLAROS PINGENTES
QUE SE PROJETAM À SOMBRA DAS JANELAS
IGUAIS QUE AS FOLHAS CATIVAS DAS PROCELAS
TORNO PUNHAIS AS PALAVRAS QUE CONGELO
COMO SE ENTRASSEM NA CARNE INDIFERENTES
APENAS QUEBRAM QUEBRAM APENAS
NÃO SE DERRETE IGUAL
CONFETE
GELO EM CONFETE CONFETE EM GELO
ÁGUA SANGRANDO COMO
ESTALACTITES
VIÚVAS LÁGRIMAS
DAS ESTALAGMITES
SÓ ME AMEAÇAM
SEM QUE DESFAÇAM
OS RAIOS DIAGONAIS
DO SOL DE OUTONO.
OUTONO IV
CRISTAIS DE FOLHAS
VERDENCARNADAS
COM MAIS FREQUÊNCIA VERDEAMARELADAS
REFLETINDO AS SETE
CORES DIFRATADAS
PELO ARCO-ÍRIS EMBAÇADO COM QUE TOLHAS
O REDEMOINHO DE TRISTEZAS COMPASSADAS
O AR
SUSPIRA SUSPIRA O AR
E A FOLHA
GIRA E GIRA A FOLHA
E O CHÃO SE ENCHE ENCHE-SE O CHÃO
DESSA VALA
COMUM DESPETALADA
FOLHAS E SÉPALAS FEITAS
QUASE EM NADA
SEM SALMODIA
VELÓRIO OU VIA
TALVEZ EU SEJA,
ENFIM, SUA CARPIDEIRA
OUTONO V
POIS CAI O VENTO
IGUAL QUE AS FOLHAS
E PRENDE EM SI O TOQUE DO MORMAÇO
TODA A UMIDADE TOMA EM SEU ABRAÇO
E O AR INTEIRO EM TURBILHÃO DESFOLHA
ENQUANTO MORRE A LUZ DO CATAVENTO
ESTOU ATENTO ATENTO ESTOU
VENTO ME CHEGA CHEGA-ME VENTO
DO BELO OUTONO DO OUTONO BELO
E ROÇA EM MIM A DESFOLHAR TAMBÉM
QUANTOS CABELOS E DENTES QUE SE TEM
COLAR DE FOLHAS
CRINA E MARFIM
E SOB AS FOLHAS TAMBÉM SE DORME ENFIM
OUTONO
Vi
Branca
umidade
Negras
calçadas
Do
lado norte em que não deita o sol
Durante
a maior parte da manhã
Uma
calçada alegre e outra vilã
Entre
montinhos de folhas enroscadas
Toldando
passos passos toldando
Gaiolas
cinzas cinzas gaiolas
Ao
pé incauto ao incauto pé
Querem
fazer-me penetrar nas tijoletas
COrrupios
úmidos de missões secretas
Mas
me desvio
Até
do outono
Sob
as cobertas de marfim do sono
TRIÃNGULO SEM BERMUDAS I – 21 ABR 14
Tanto o mistério rebatem os jornais,
Certas revistas repetem até demais
Sobre o impossível Triângulo das Bermudas,
Que não existe, se com cuidado o estudas.
Só a multidão caprichosa dos eventos,
Compilados por jornalistas pachorrentos.
Que nem ao menos buscaram pesquisar
Onde o navio acaba de afundar!
Se foi no Oceano Pacífico ou no Índico,
Mas se comportam qual prepotente síndico.
E logo realizam um salto quântico,
Colocando o naufrágio em pleno Atlântico!
Não interessa se afundou na Groenlândia
Ou mais ao sul que a própria Falklândia.
Congregam todos no espaço do triângulo,
Que se tornou já em polígono ou quadrângulo!
Não interessa se o barco já chegou
Mesmo atrasado, ao destino em que aportou.
Apenas cresce a lista um pouco mais
Para encher colunas vagas dos jornais!...
TRIÃNGULO SEM BERMUDAS II
Naturalmente, esse avião foi encontrado,
Dentro dele o esqueleto descarnado
Do piloto que originou a história inteira,
Ao proclamar a sua mensagem derradeira
De nenhum ponto do lugar reconhecer,
Nem em sua cartografia perceber!...
Surgindo assim o início do mistério
Da esquadrilha perdida – assunto sério!
Mas encontraram, afinal, seu aeroplano,
Na Terra Nova, no fundo do mar plano...
Nada mais que um grande erro na sua rota,
Morte causando e a sua final derrota!
Mas cada vez que um jornalista quer assunto,
Já ressuscita esse Triângulo Defunto!...
Pretendendo não saber a solução,
Pois aumentar a tiragem é sua missão...
Quem quer saber se o mistério foi furado?
Quem vai comprar o jornal do ano passado?
E desta forma a tal mentira perpetua:
Morra a verdade e então viva a falcatrua!
TRIÃNGULO SEM BERMUDAS III
No antigo tempo, a enfrentar o Mar-Oceano,
Muitos perigos mencionavam nesse plano.
Havia a Montanha Ímã, que arrancava
Todos os pregos de uma nau que a enfrentava!
Havia a Mão Negra, que surgia do profundo
E a caravela arrastava para o fundo!
Haviam sereias, com vozes voluptuosas,
Que os marinheiros devoravam, capciosas.
Havia o Leviathan, que ser ilha aparentava
E afogava quem quer que ali aportava.
Mas sobretudo, havia o Mar dos Sargaços,
Do Oceano Atlântico a preencher largos
espaços!
E qualquer barco atraído a tal lugar
Retinha firmemente, para nunca mais soltar!...
Lendas contavam sobre o Reino Proibido,
Dentro do Mar dos Sargaços constituído...
Queriam os Normandos salvaguardar suas rotas
Comerciais da intrusão de outros idiotas!
Como ainda hoje salvaguardam os jornais
Vendas nas bancas com suas lendas imorais.
TRIÃNGULO SEM BERMUDAS IV
Claro que existe triângulo de bermudas,
Mas sem mistérios ou quaisquer tragédias
mudas.
No baixo ventre, um tanto após o umbigo,
Entre as virilhas, ali avistar até consigo.
Delineado com uma certa claridade,
Por movimentos de maior intensidade.
Logo acima das pernas, em suas cavas,
Porém abaixo do cinto, com suas travas...
Mas um idêntico triângulo se avista
Em calças longas ou por entre shorts dista.
Para surgir, de bermudas não precisa,
Sob os biquínis, vem de forma mais concisa.
E sem as roupas, contemplando a forma nua,
Um triângulo bem real ali flutua.
Antigamente, mostrando finos pelos,
Hoje raspado muitas vezes, com desvelos...
Belo triângulo para a vida consagrado,
Mui diverso desse outro, amaldiçoado!...
Mil naufrágios causando, certamente,
Quando se esbate nos escolhos de outra
gente...
TANGUÉDIAS I – 22 ABR 14
letras de tangos desdobram-se em tragédias
desses amores nos sofridos desenganos,
até há cabelos a bordar em brancos panos,
ainda que alguns com laivos de comédias,
como
o potrilho,
que
perde a cancha,
focinho
em mancha,
no
fim do trilho,
enquanto dançam os netos de ciganos
e as pernas giram em vestes ludopédias,
antigamente afrontando classes médias,
hoje comuns até nos lares castelhanos...
TANGUÉDIAS
II
com
rostos sérios de estátua, bailarinos,
trocando
passos em figuras consagradas,
bem
pouco os braços, só as pernas são roçadas,
na
sugestão de outros ritos fesceninos,
abre-se a saia,
a coxa surge,
o tempo urge,
em palma e vaia.
não
mais restrito aos bares pequeninos
de
La Boca, onde escondiam tais agrados,
dançam
os homens bem empertigados
e
elas lançam para trás cabelos finos...
TANGUÉDIAS III
porém tocado em um velho bandoneão,
os foles a insuflar, talco no couro,
instrumentistas a sacudi-lo, sem desdouro,
sobre o colo a estender lenço de mão,
que
assim evitam
sujar
as calças,
proteções
falsas,
botões
agitam...
gaitas-piano é que hoje tocam tal bordão,
pois já se foram para alheio viradouro
aqueles velhos, com seu toque de ouro,
que na La Boca dos céus acham salão...
TANGUÉDIAS IV
foram depressa acrescidos violinos
e contrabaixos, depois violoncelos,
acompanhado por tais gemidos belos
o choro altivo dos bandoneões ladinos.
grandes
salões
tem
mais espaço,
tocam
tangaço
com
ampliações.
e Piazzola, com seus dotes peregrinos,
na orquestração compôs seus mil castelos,
com flautas e pistões, novos apelos,
marimbas a imitar toques de sinos...
TANGUÉDIAS
V
ainda
se encontram os cantores entonados,
vestindo
ternos, lenços nos pescoços,
a
maioria fingindo serem moços,
por
bailadeiras ainda apaixonados,
que coisa triste
nas cem figuras,
tragédias puras
na dor que existe,
como
se fossem esqueletos retornados,
penteados
para trás, sem mais retoços,
no
fim da noite retornando os passos,
por
curtas horas somente libertados...
TANGUÉDIAS VI
pois esse tango de hoje é o dos turistas
que a Buenos Aires vêm, em excursão,
e então retornam, tomados de exaustão
dessa pobreza que hoje em dia lá avistas.
gentes
antigas
vendem
suas louças,
enquanto
as moças
choram
cantigas.
mas se aos tangos amar ainda insistas,
pega esses discos de acetato e em rotação
os mortos cantam e vivos ainda estão,
de cada vez que em toca-discos os visitas.
ESPINHO NÃO FERE ROSA I – 23 ABR 14
NENHUMA ROSA
FERE A SI MESMA
NO ESPINHO QUE FAZ BROTAR DO PRÓPRIO CAULE
QUE SÓ A PROTEGE
DA MÃO ALHEIA,
ESTA SIM, A FERIR PROFUSAMENTE,
ENQUANTO O SANGUE
ESCORRE E PINGA
RESPINGA RESPINGA
VINGA
VINGA
...VIM
VIM...
PARA NEGAR A IMPORTÂNCIA DO SONETO
QUE PARA MIM SEMPRE FOI VÍCIO SECRETO
E APENAS RITMO
DE AMOR À RIMA.
ESPINHO NÃO FERE ROSA II
EMBORA ESPINHO
DE ALHEIO CAULE
FIRA TÃO FORTE QUANTO FOSSE AGULHA
E ENTÃO PERFURA
COM PONTA DURA,
DEIXA NA PÉTALA SEU FURO PERMANENTE
ENQUANTO A ROSA,
FIEL ESPOSA
DESPOSA DESPOSA
ESPOSA
ESPOSA
...E POSA E POSA...
COMO VEDETE OU MUSA DE REVISTA
ÚMIDO BRILHO, BREVE SUA CONQUISTA
DO TEU OLHAR
SEM TE ESPINHAR.
ESPINHO NÃO FERE ROSA III
TUDO DEPENDE
DE SUA DISPOSIÇÃO:
NÃO QUER SER ROSA PARA SER POSTA NUM VASO
NEM QUE O ESPINHO
CRAVES NO PINHO
COMO CABIDE PARA O VASO PENDURAR
QUER SER JARDIM
VENDO O JASMIM
A NAMORAR A NAMORAR
MORAR
MORAR
...NO MAR NO MAR...
DA VERDE GRAMA QUE DELA SE APROXIMA,
QUE O JARDINEIRO A SEU REDOR CAPINA
COM SEU ANCINHO
PUXANDO ESPINHO.
ESPINHO NÃO FERE ROSA IV
SERÁ QUE A ROSA
FERE O ESPINHO
E QUEBRA A GARRA NO SEU DESPETALAR?
COMO COROA,
PRESAS A TOA
DE CADA SÉPALA PRENDE-SE UM COLAR
PÉTALAS RUBRAS
DE SANGUE LÚBRICAS
A PENDURAR A PENDURAR
O PERFUMAR O PERFUMAR
...NO AR NO AR...
E QUANDO O ESPINHO É QUEBRADO PELA SÉPALA
A SEIVA ESCORRE, MANCHANDO CADA PÉTALA
NA RIMA POBRE
QUE O VERSO ENOBRE.
ESPINHO NÃO FERE ROSA V
MAS QUANDO ESPINHO
PERFURA A CARNE
PERCORRE AS VEIAS ATÉ A JUGULAR
E ALI SE PRENDE
E A ARTÉRIA RENDE
COMO UM TIÇÃO VERMELHO A RESPINGAR.
BREVE CENTELHA
QUE HEMÁCIA ESPELHA
A REBRILHAR A REBRILHAR
BRILHAR BRILHAR
...SEM PAR SEM PAR...
E ENTÃO O SANGUE PELO ESPINHO SE ENAMORA
E CARNE E ROSA UMA SE TORNAM NESSA HORA
ATÉ QUE MURCHE
TODO O DESEJO.
ESPINHO NÃO FERE ROSA VI
MAS QUANDO A ROSA
SE ABRE AO ESPINHO
LÍQUIDA FERVE NESSE MEIO PERFURAR
E ALI SE ALEITA
A ESPINHO AFEITA
SÉPALAS RÓSEAS PARA AS PÉTALAS RASGAR
EM ANDROCEU
E GINECEU
TAMBÉM SOU TEU TAMBÉM SOU TEU
POBRE ROMEU POBRE ROMEU
...ATEU ATEU...
DA RELIGIÃO AMARELA DOS ESTAMES
QUE NO PISTILO FECUNDAÇÃO PROCLAMES
QUANDO OUTRA ROSA
NASCE DE MUDA.
ALCAÇUZ I – 24 ABR 14
EU BUSCO O DOCE
de estar contigo pela
noite inteira,
quando se esvaia minha
gota derradeira
QUAL MORTO FOSSE
O AÇÚCAR BUSCO
na bela doce do mais
doce beijo,
na peregrina flor do
teu adejo
NO LUSCO-FUSCO
QUERO O PAPEL
desenrolar aos poucos,
com cuidado,
enquanto me reclino do
teu lado,
EM DOCE ANEL
POIS NÃO MASTIGO
a bala bela deverá ser
derretida
e contra o céu da boca
bem querida
EM MEU PERIGO
TALVEZ EU SEJA
nessa tua boca doce de
alcaçuz
somente a língua que
em torno à tua pus
LÍNGUA QUE ADEJA
EU BEM QUERIA
ser para ti também
doce dileto,
guardado quente no
lugar secreto
DA SINFONIA
CANTAR DE MEL
em meu dueto, no qual
me correspondas,
os dois a palpitar nas
mesmas ondas
SOB UM DOSSEL
E ASSIM DORMIR
até que o Sol dissolva
o meu melaço
a pouco e pouco
separando teu abraço
SEM NOS FERIR
ALCAÇUZ II
ENCONTRO EM TI
quando provo a doçura
de tua calda
enquanto as mãos
arranham minha espalda
O SOM DO COLIBRI
ENCONTRO ALI
enquanto saboreio o
caramelo
que se derrete no teu
corpo belo
O BEM-TE-VI
E ENTÃO SE QUER
após te haver
despetalado inteira
tirar de ti a pétala
solteira
DO BEM-ME-QUER
NÃO VOU FRAUDAR
quando arrancar as
pétalas da flor
para melhor garantir o
teu amor
SEM TRAPACEAR
EM BRANDO MEDO
talvez em conte como
pétala o caroço
para o caule jogar bem
fundo ao poço
COM MEU SEGREDO
NÃO MINTO AGORA
mas as plumas de meu
dente-de-leão
eu soprarei, em brando
turbilhão,
SEM MAIS DEMORA
E OS PARAQUEDAS
pela brisa malévola
espalhados
desejarei que se façam
dourados
NAS NOITES LEDAS
ASSIM EM TI
darei um beijo melhor
que o beija-flor
sedento pelo néctar da
flor
QUE UM DIA EU VI
ALCAÇUZ III
E A BORBOLETA
enviarei para ser a
mensageira
em flor se
transformando, bem ligeira,
NA OCULTA GRETA
E O CARACOL
deslizará com seu
rastro luminoso
teu nome desenhando em
tom fogoso
À LUZ DO SOL
E MESMO O GRILO
a minha canção entoará
da partitura,
sem cricrilar em ária
de loucura
TRIGO NO SILO
E O GAFANHOTO
apenas saltará feito esperança,
ingênuo como sonho de
criança
SORTEANDO A LOTO
E A POMBA-ROLA
a minha flauta
arrulhará entre teus seios
porque tocá-los meus
dedos têm receios,
COISA MAIS TOLA...
E COMO ARANHA
a minha teia lançarei
à captura
do doce de alcaçuz de
tua alma pura
QUE A MINHA LANHA
QUAL ESCORPIÃO
sem pretender
mandar-te meu veneno
irei lançar-te o
mascavo mais ameno
COM MEU FERRÃO
E NA PANELA
a calda ferve e gira
acalentada
por meu amor sempre
mais configurada
QUE AS BOLHAS VELA
RESQUÍCIO DE SONHO I – 25 ABR 14
O meu sonho é um tapete voador
que firme pousa ao lado de teu leito;
vejo teu corpo desnudo e sem defeito
e mal consigo reprimir o meu ardor.
E como o sonho é meu e sou senhor,
no meu carinho, bem junto a ti me deito
e nosso amor se faz puro e perfeito,
enquanto o sonho preserva seu calor.
Ouço um ruído e fujo ao despertar:
não esgotei ainda meu desejo,
cada centímetro de ti eu não beijei!...
Mas este é um sonho que não posso controlar;
com o antebraço, os olhos eu protejo
e a contragosto em tal instante despertei...
RESQUÍCIO DE SONHO II
Por que não pode o
sonho ser perfeito,
como é perfeito sempre
o devaneio?
Por mais que seja de
meu real alheio,
meu sonho às claras é
completo e sem defeito.
Porém nos sonhos do
recôndito do leito,
depois que o sono me
enlaça de permeio,
correm os fados tão
somente pelo meio
e ao entrecortar do
sonho me sujeito...
O devaneio, que
componho a meu talante,
controlo mais, mas sei
não ser real,
enquanto o sonho,
enquanto dura, é pleno,
nesse entremeio firme
é dominante
meu inconsciente, por
força natural
dessas culpas com que
a alma me enveneno.
RESQUÍCIO DE SONHO III
Assim o sonho se interrompe, caprichoso,
nesse momento em que mais queria durasse,
como se o Id de meu Ego ali zombasse
e então negasse o meu desejo voluptuoso...
Porém o sonho concebo mais formoso
nesses momentos que a modorra conservasse,
sem permitir-me que tudo terminasse,
antes do fim do instante mais ansioso...
E é nesse brilho e calor que me balanço:
prendo entre as pálpebras o menor resquício
desse sonho tão ousado e fugidio!...
Vendo que nesta realidade não alcanço,
para meu bem, ou vício, ou malefício,
senão meu sonho zombeteiro e escorredio!...
sem ilusões I – 26
abr 14
amor procura ser
força inovadora
a cada vez que para
nós se apresta,
nas nuvens a marchar,
em plena festa,
da natureza, por
igual, renovadora.
nessa loucura da
imagem sedutora,
macia calçada de
agreste nos pés testa,
novas ideias sobre a
cabeça encesta,
a vida inteira
redourada nessa hora!
quem não conhece a
sensação do amor?
essa impressão que
parece irá durar
eternamente, pela
primeira vez...
mas quando volta amor
ao coração,
já se imagina o final
da sensação,
tão desgastada quanto
um dia já se fez...
sem
ilusão II
andei
fugindo aos sonetos nestes dias;
outros
formatos puxaram-me as orelhas,
sem
repetir mil ressonâncias velhas
de
outros versos de parelhas elegias...
amor
retorna em novas harmonias,
mas
se recebe com arquear de sobrancelhas,
cravou-se
a seta, porém se olha de esguelhas,
nessa
lembrança de antigas nostalgias...
já
não se espera que seja imorredouro
esse
amor que antes se viu ser transitório,
quando
era o espírito um elfo inexperiente...
mas
nem por isso se despreza tal tesouro,
que
então se afirma com seu vezo peremptório
e
nos domina de novo, integralmente...
sem ilusões III
tem-se certeza de que
a vaga passará,
a maré mãe de todo o
baixamar,
a ilusão tão fagueira
a nos deixar,
que a praia cheia de
algas mortas ficará.
mas a lembrança
jamais esquecerá
a brasa morta como um
rubi sem par,
verde esmeralda a nos
acompanhar,
no puro espanto que a
memória lembrará.
e a sensação do
exultante caminhar,
entre o calor
perfumado dos hormônios,
quem conheceu sempre
a pode relembrar,
mas sem íntimo ardor,
pois a ilusão
que nos aquece à luz
dos feromônios
há de ir embora, sem
mostrar-nos compaixão.
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