LEITO DA
SERPENTE & MAIS
William Lagos
LEITO DA
SERPENTE I – 20 MAI 14
Nunca
entendi exatamente qual liame,
Qual
novelo, qual baraço ou doce fio
Animou
minhas escolhas, outono e estio,
Descuidando
alegria ou pranto que derrame;
Igual
torçais de lã, fino recame,
Acorrentando
o ardor e o amargo brio,
No sublimar
dolente do meu cio,
Manifestado
nos versos qual enxame.
São vespas
a tecer, perdoando a aranha,
Seus
casulos de barro, escolha seca,
Em que
porão seus ovos a incubar
Numa
surpresa que a mim mesmo banha
Das linhas
esquecidas, cega meca,
Que apenas
elas se decidem a mostrar.
LEITO DA
SERPENTE II
Eu bem
queria que fossem borboletas
Que em mim
pusessem seus ovos a chocar;
Só assim
veria suas asinhas a secar
À luz do
sol, em exposições diletas...
Eu veria
dos casulos as secretas
Criaturinhas,
pouco a pouco a se mostrar;
Que
contribuíra, saberia em seu gerar,
Ai, carne
minha, que beleza não excretas!
Porque em
mim só existe o animal;
Não tenho
folhas para alimentar
As suas
lagartas, após breves amores,
Depositados
tão somente em vegetal,
Pingos
redondos dos ovopositores,
Para
eclodir num constante devorar!...
LEITO DA
SERPENTE III
Seria mais
fácil às vespas aninhar,
Tal qual se
eu fosse uma caranguejeira,
Carregada
até o ninho, em longa esteira,
Na angústia
viva de seus ovos incubar.
Pois ser
poeta é mais vespas a gerar,
A carne a
fornecer ração inteira,
A
contribuir para a vida com sangueira,
Na mesma
dor que faz a alma palpitar!
Seria mais
gentil possuir folhas na pele
Que a essas
lagartas, em refeição dileta
Eu
entregasse, a carne conservando...
Que para
nova geração alada vele,
Perante os
ovos de outra borboleta,
Função
secreta de genitor guardando...
LEITO DA
SERPENTE IV
Contudo, os
ovos que trago no meu peito
Não são de
borboleta ou mariposas,
Nem lúcidas
libélulas formosas;
São bem
diversos os postos nesse leito.
Pois
gerarão mil escamas sem defeito,
Seres
esguios de curvas voluptuosas,
Com
pontiagudas presas venenosas,
Pois são a
esses que um poeta está sujeito.
Sempre nos
versos de poesia verdadeira
Coexistem
pontilhados de agonia,
Nada de
simples, nem no verso mais gentil,
Que rasga o
peito em sua hora derradeira,
Cem
cobrinhas trazendo à luz do dia,
Piscando os
olhos na argúcia mais sutil...
MOSTRADAMUS I – 21 MAI 14
SOBRE MINHA PELE POUSA A LECHIGUANA
DE PICADA TÃO FINA QUANTO É DOCE
O MEL QUE ELA PRODUZ, COMO SE FOSSE
UM NÉCTAR ESQUIVO QUE DIMANA...
SÓ PARA AS CRIAS SUAS, MAS QUE EMPANA
A DOR FININHA DE SUA PICADA POSSE,
QUE AO INVÉS DE AMORTECER, MAIS ALVOROCE
A SANGRIA DA PALAVRA EM LONGA FAINA.
ANESTESIADA FICA A ARANHA À ESPERA
DO ECLODIR DOS OVOS E A DEVORA,
INCONSCIENTE, TALVEZ, DO SEU PORVIR;
MAS EM MIM, ESSA FUNÇÃO ME REFRIGERA
E ECLODEM TOADAS A TODO DIA E HORA,
COMO OS PREGOS QUE ACALENTAM O FAQUIR.
MOSTRADAMUS II
POIS MEUS POEMAS SÃO FILHOS DOS
FERRÕES
E SE NÃO FOSSE NUNCA A ALMA
TORTURADA,
PROVAVELMENTE NÃO ESCREVERIA NADA,
SENÃO OS VERSOS DE MEDÍOCRES
PAIXÕES...
MAS A MINHAS POMBAS ENCONTRAM OS
FALCÕES.
CADA UMA DELAS A SEU TEMPO DEVORADA,
NÃO CRESCE NUNCA A NOÇÃO
MEDIOCRIZADA,
SÓ SOBREVIVE O CONDOR AOS FURACÕES...
ASSIM AOS POEMAS SUBMETERAM CONDIÇÕES
E ESFIAPARAM AS MAIS FRÁGEIS DAS
PLUMAS,
SOB BICOS E GARRAS ESGARÇADAS
E PERMANECEM EM TAIS ENFRENTAÇÕES
SOMENTE SAGAS QUE MELHOR CABEM NAS
RUNAS
QUE NOS OSSOS DE MEUS DEDOS SÃO
GRAVADAS.
MOSTRADAMUS III
DE QUE MANEIRA PODERÁ SOBREVIVER
O CORAÇÃO QUE PICOU A LECHIGUANA,
O MAGANGÁ OU QUALQUER VESPA MAIS
ARCANA,
CASO NÃO TENHA UM BRUXEDO A PROTEGER?
EM ALGUM PONTO DO PEITO FUI ESCONDER
MEU FEITICEIRO, MOSTRADAMUS, CUJA
FAMA
DESCONHECIDA TALVEZ À ESPÉCIE HUMANA,
POR ENTRE OS SERES ALADOS VAI REGER.
E DESTARTE CONTRAVENENO DOS FERRÕES
ELE PRODUZ COM MEIMENDRO E BELADONA,
CADA PICADA TRANSFORMANDO NUM SONETO,
QUE GANHA ASAS, VAI A OUTROS CORAÇÕES
E COM O VENENO SEU DELES SE ADONA
E NELES GERA ALGUM ANSEIO MAIS
SECRETO.
MOSTRADAMUS IV
MOSTRADAMUS ENCONTROU CORPO PERFEITO
E FEZ NELE SURGIR HÉRNIA DE DISCO...
CAUSOU-ME DISTRAÇÃO E NESTE PISCO
MOSTRADAMUS ME TORCEU O PÉ DIREITO...
MOSTRADAMUS ASSIM FEZ-ME SUJEITO
A “BICOS DE PAPAGAIO”, TRISTE CISCO!
CABELOS ME ARRANCOU EM SIMPLES RISCO
E DERRUBOU-ME NO CHÃO, BEM A SEU
JEITO...
MOSTRADAMUS CRÊ NOS PREGOS DO FAQUIR,
COM OS QUAIS ASSOMBRA SEUS
ESPECTADORES;
MOSTRADAMUS ACREDITA QUE ESTERTORES
OBRAS MAIS BELAS EM MIM FARÃO SURGIR;
MOSTRADAMUS TORTURA-ME A SORRIR,
MAIS POR FAVOR QUE POR SENTIR
RANCORES!
MOSTRADAMUS v
MOSTRADAMUS ACREDITA QUE A POESIA
SURGE BEM MAIS DA DOR E SOFRIMENTO
QUE DE AMOR OU ALEGRIA EM QUE ME
ALENTO:
SOMENTE O TRISTE É QUE PRODUZ BOA
ELEGIA.
MOSTRADAMUS MOSTRA ASSIM SUA BRUXARIA
NA VELOZ PROVOCAÇÃO DO DESALENTO
E NO INSTANTE SEGUINTE, NO TORMENTO
DE QUALQUER DOR QUE NO QUADRIL
SURGIA.
MOSTRADAMUS É UM MAGO ESPERTALHÃO
QUE SE ESPOJA NO INTERIOR DO CORAÇÃO
E MINHAS ARTÉRIAS PERCORRE
ENSANGUENTADO
ENQUANTO LIMPA COLESTEROL MALSÃO,
DEDOS CORTANTES COMO AÇO FARPADO
E ME PRESERVA PARA A PRÓXIMA CANÇÃO!
MOSTRADAMUS Vi
MOSTRADAMUS SE APODERA DA RAZÃO
E A FAZ EM SÍMILE OU OXÍMORO
VIBRANTE;
CADA DOR METAFORIZA EM INTERESSANTE
IMAGERIA SURPREENDENTE EM SUA FUNÇÃO.
MOSTRADAMUS NÃO CRÊ SÓ NA EMOÇÃO
DA DOR MORAL PARA A ESTROFE MAIS
GIGANTE
E COM DOR FÍSICA PROVOCA OUTRO
DESCANTE;
EM VEZ DE GRITOS, NA TORTURA
EXALTAÇÃO!
E DESTARTE, A MOSTRADAMUS EU SOU
GRATO
POR TANTOS VERSOS EM METALEPSIA...
A DOR INTENSA DAS COSTAS EM HARMONIA
SE TORNA, MUITO MAIS QUE EM DESACATO;
E ASSIM PRETENDO MANTÊ-LO NA GUARIDA,
ENQUANTO A DOR DEMONSTRAR QUE TENHO
VIDA!
CASULOS I – 22 MAI 14
Eu não pretendo romper esse casulo
Que me protege e metamorfoseia;
Existe mais perigo em alheia teia,
À minha espreita em cada incauto
pulo!
Meu exoesqueleto torna nulo
Qualquer ferrão feroz de fauce
alheia;
De meu castelo funciona feito ameia,
Meu agressor a frustrar e deixar
fulo!...
Na verdade, é preciso confessar
Que tal casulo que tanto me protege
Foi feito de papel e de cartões.
Sob as palavras é-me fácil ocultar
Um sentimento que realmente rege
Enquanto canto dos outros emoções...
CASULOS II
Desde cedo aprendi a me ocultar
Sob o disfarce do sentimentalismo
Que me protege de mostrar o quanto
cismo
Por mais pretenda tudo revelar.
Esta “máscara da face” a ostentar
Também tu aplicaste, em teu modismo,
Sem a viseira de qualquer
racionalismo,
Mais romântico que o és a aparentar.
Que melhor forma de ocultar os
sentimentos
Do que expor sentimentos para o
mundo?
Os outros julgam dominar em tais
momentos,
Pensam-te frágil por mais sejas
profundo
E é desta forma que eu exibo
sofrimentos
Que não os meus e por eles me
circundo.
CASULOS III
O meu caleidoscópio em torno gira
E nesses versos dança o catavento;
Mostra por vezes verdadeiro
pensamento,
Mas em geral só em falsas cores vira.
E se alguém pensa que a máscara me
tira
E vê meu próprio e veraz rosto num
portento
É apenas vítima do seu próprio julgamento,
Quando a máscara que usa em mim
insira.
Porque por trás da máscara há
tegumento
Que representa a casca externa do
casulo;
Tirada esta, nova máscara se enseja,
Retemperada na exposição do alento
Com que as minhas emoções reais
engulo
E um novo rosto falso em mim adeja.
METROS GREGOS I -
TROQUEU EM TRÂNSITO I – 16/7/2006
Em nada nos meus cantos serei dúbio:
Ao longo destes versos em que espalho
À doce brisa
o martelar do malho,
Em que comparo ao ouro o esplendor núbio
De cabelos, ora crespos e ondulados,
Ora lisos e castanhos, brancas águas,
Ora dourados, recendendo a mágoas,
Ora flutuantes de odores perfumados,
Ou vermelhos ainda, eu permaneço
Fiel a meu amor: eu só descrevo
As sensações de meus momentos sábios
De amores subitâneos, em que cresço
Apenas no meu sonho; e aceito o enlevo,
Qual um beijo de amor sobre meus lábios.
TROQUEU EM TRÂNSITO II – 23 MAI 14
Versos troqueus são versos femininos,
Paroxítonos, como a crítica os deseja;
Na alma da mulher o verso adeja:
Não se envergonha de sonhares pequeninos.
Bem diferentes dos versos masculinos,
Sempre oxítonos, ardentes e sem pejo;
Buscam bem mais do que a emoção do beijo,
Alguns de índole totalmente fesceninos.
Ao comparar versos antigos aos de agora
Percebo hoje haver maior facilidade,
Uma fluência que antes eu não tinha,
Mas as imagens e a força desse outrora
Se expandiam com maior virilidade,
Numa temática feroz que eu não continha.
TROQUEU EM TRÂNSITO III
Tempos houve em que versos exaltava,
Em dominância de qualquer similar nexo,
A importância da cópula e do sexo,
Que explicitava nas linhas que narrava.
Das claras descrições não me furtava,
Fotografando exatamente cada amplexo;
Brotava a rima sem me deixar perplexo,
Mas de um quarteto para outro me afastava
Do soneto florentino mais perfeito,
Simplesmente fluindo meu domínio
Ou me deixando fluir nessa descida,
Enquanto hoje retraço o mesmo leito,
Nas multíplices nuances do fascínio
Com que Dioniso manipulou-me a vida.
Um verso troqueu é
simplesmente aquele cujo pé poético [o final de cada verso] é formado por uma
sílaba longa, seguida de uma sílaba curta. Bill.
CANTIGA D’AMIGO I – 24 MAI 14
Como moireu quen
nunca ben
Houve da ren que
mais amou
E que foi morto por
em,
Ay, mia senhor, assí
moir’eu!...
vou repetir a velha cantilena
dos primórdios da língua portuguesa,
a ladainha pronunciada sem firmeza,
metade nossa, metade aún ajena!
vou repetir o descantar da pena
a modorrar nas terras da pobreza,
“jardim da europa” feito de beleza,
mas cujo excesso de flores o envenena!
vou repetir o verso poliglota,
um pouco grego, um tanto de latim,
meio galego, com algum cartaginês,
que minha língua ancestral mesmo hoje dota
de igual fascínio legado para mim
por bisavós do pago português...
CANTIGA D’AMIGO II
vou repetir aqui, na terra extrema
em que se aprende a fala portuguesa
essa mesma luxúria de leveza
que para o povo mais ao sul acena.
vou repetir a frase mais amena
que um rude linguajar da alheia reza,
molhada em guaicuru de feição lesa,
com um toque guarani de lerda pena.
mas com uns laivos de nobreza incaica
que foi descendo a longo do uruguai
e perdura no poncho, chasque e mate
e tantas expressões de cor prosaica
com que a língua ao céu da boca se contrai
na lida diária em que sua alma não se abate...
CANTIGA D’AMIGO III
de modo idêntico, portugal se libertou
desse domínio austero do espanhol,
que ineficiente perdeu, desde o arrebol
o quanto o luso em três séculos ganhou;
também a língua sobre eles triunfou
e se expandiu em terras de outro sol,
grande nação conservada por reinol
enquanto o solo espanhol fragmentou.
pois nos pagos da língua portuguesa,
ay, mia senhor, o português domina;
nas espanholas, porém, pouco se atina
em escutar o castelhano, com certeza,
línguas indígenas a dominar o povo
que se recusa a aceitar o verbo novo!
CANTIGA D’AMIGO IV
vou repetir o derradeiro grito
que tornou meu país independente,
porém o conservou internamente
na dependência de um verbo tão bonito;
vou expandir essa língua ao infinito,
lançando versos descaradamente
contra os ouvidos de todo o mundo e gente
sobre a nação de muitas raças sem conflito!
e quando esse meu tempo terminar,
feito meu sangue em trilha de mil versos,
nessa forma natural que me escorreu,
só poderei finalmente proclamar
que como os versos ressecaram-se dispersos,
ay, mia senhor, assí
moir’eu!
METAFÍSICA I –25 MAI 14
A sensação é um punhal na carne,
adaga firme a degolar o sonho,
uma espada a cortar talho risonho:
resseque o sangue e sobre a pele sarne!
Porém o sonho surge de meu cerne,
é vívido e cruel no seu bisonho
desenrolar ou em toques do medonho:
encapsule poemas como berne!
Eventualmente, após se alimentar,
eles saem para o ar livre, a sacudir
asas grosseiras, o mundo a percorrer,
para novas ilusões assassinar,
pequenas almas, sem grande perquirir,
somente outras fecundar e então morrer!...
METAFÍSICA II
A sensação do físico me inquieta
e não permite qualquer denegação:
não a posso esmagar, por mais paixão;
a mão só encurva na garra mais dileta
com que segura o cabo da caneta
e lhe transmite a mesma compulsão
e sobre o cosmo flagela sua ilusão
enquanto o cosmo sobre mim dejeta
a realidade que, de fato, não é minha;
eu bem queria, ao contrário, desejar
estes meus versos de ardente lastimar
fossem galáxia, que em pérolas sustinha
o manto inteiro do céu em seu lugar,
com alfinete de quimera a lampejar!...
METAFÍSICA III
Da metafísica reluz, subjacente,
aquilo que me chamam de irreal,
que superjaz em mundo sideral
aos mil vagos desejos do consciente.
A metafísica se faz superjacente
em cada crença ou fé no imaterial,
justifica o infalível do papal
e os temores do infernal interjacente.
Eu creio em fadas e duendes que não vi
e algum espírito decerto me protege,
enquanto outro nos dedos me flutua.
Mas não nos versos de Dante, que já li,
de um catecismo de espantar crianças
para tirar-lhes do futuro as esperanças.
METAFÍSICA IV
Só há um problema com esse imaterial:
de que forma a mente humana concebeu
qualquer coisa que Deus já não concedeu?
Se o imaginamos, algures é real.
E muito embora eu descreia do infernal,
por tanto tempo essa ideia se nos deu,
que herdamos da Gehenna do judeu,
copiando o egípcio panteão mortal,
que sou forçado com a ideia conviver,
embora não me assuste realmente,
pois não faz parte da minha religião;
creio no Deus do eterno recorrer:
se algum Sheol existe, certamente,
só os que acreditam é para lá que vão!
COMPREENSÃO DO SCILICET (a saber) I – 26 mai 14
Queima-se a alma no fogo da esperança,
nativo inferno verdadeiro e sideral,
que nos corrompe em seu mofado mal,
inoculado dentro em nós desde criança
e se esfarrapa a
alma em tal bonança,
espera espinho, flor
de matagal,
na luz brilhante da
espera imaterial
que só se encontra
na espera da esquivança;
Scilicet, como
diriam, a saber,
a gente espera
enquanto guarda a fé
de que o
esperado possa-se esperar,
mas no
momento em que vem a transcorrer,
vai-se a
esperança para alheia sé
e nos lançamos
novo sonho a procurar...
COMPREENSÃO DO SCILICET II
De forma idêntica, existe fé em botão:
que se abrirá em flor há esperança;
a caridade consola na aguardança,
sem descascar as sépalas de antemão.
A gente guarda fundo
ao coração
a compreensão da
flor em sua bonança;
lá está a flor, não
mais do que criança,
desabrochando em seu
momento de paixão.
Scilicet, como
diriam os latinos,
há esperança
na flor de uma ameixeira,
há esperança
no broto da figueira,
mas só
criança tola, em desatinos,
arrancará a flor, querendo ver
aquela
ameixa que ansiava por comer!...
COMPREENSÃO DO SCILICET
III
Mas nós, adultos, cometemos diariamente
esse mesmo atentado de esperança,
buscando à frente o que a vista não alcança,
em mil horóscopos, astrologicamente,
ou a jogar em
números, frequente,
no desperdício que
desfaz toda a poupança,
mais um imposto
consentido em que descansa
parte tão grande da
corrupção subjacente,
Scilicet, no
poder da governança
ganham
políticos o real despetalar,
do malmequer
as mil pétalas a ajuntar,
dessa
incerteza firmes na bonança:
para ter
fruto, o povo mata a flor
ou botão
colhe, que lhe seria precursor.
COMPREENSÃO DO SCILICET IV
É nesse fogo real que existe inferno,
nas mil ânsias do desejo insatisfeito,
nessa esperança que nos queima o peito,
nesse veneno que se apresenta terno,
nessa busca de calor
durante o inverno,
empós frescor no
verão mais escorreito,
nessa querença de
amor sem ter defeito,
como diz Dante: Fácil descer ao Averno!...
Scilicet,
amamos é a desesperança
para a qual
cada desejo nos conduz;
ao satisfeito,
se esmorece a luz
e se
nunca encontramos a bonança,
a alma
gira na dança dessa ardência,
que
mesmo aguarda cheia de impaciência!
REVERSÃO I – 27 MAI 14
Como o último doente da poesia,
Meu coração se esbate em
romantismo,
Enfermidade que é metade
saudosismo,
Metade ânsia de sofrer, em
elegia,
Bem menor
satisfação que se queria
Na exaltação
tão antiga do truísmo,
A maladia que
nos leva a tal turismo:
Amor àquilo que
nosso olhar não via!
Nem é sequer a busca da
esperança,
Mas puro vício em toda a
nostalgia:
Não se deseja conseguir o que se
quer,
Mas lamentar
miséria na abastança.
Mostrar
tristeza no meio da folia,
Pétala ímpar a
buscar no malmequer!...
REVERSÃO II
Ninguém julgue que faço versos
por prazer,
Ainda que não sejam maldição;
Não por vaidade, é mais por
compulsão,
Nesse processo que não posso
interromper.
Nem pense
alguém que faço versos por dever:
Se algum mos
pede, outra resolução
Darei a seu
pedido, não a satisfação
Do que queria
de meus dedos receber!
Somente sai de mim o processado
Por essas redes neurais que não
governo:
Quem me preside dos neurônios a
assembleia?
Nessa surpresa
de cada resultado,
Quando ao
avesso reviro o meu interno
E em material
transformarei a ideia...
REVERSÃO III
Por isso afirmo que poesia é uma
doença,
Que lentamente a alma nos
consome,
Um espírito inquieto que nos
dome
E a intenção inicial sempre nos
vença...
Nesse rodeio da
palavra tensa
A hora esvai e,
aos poucos, vida some;
O tempo para
amar poesia come
E em recíproco
amor não nos compensa.
Poesia não nos traz satisfação:
Quem a aprecia é que já sofreu
igual
E a si mesma contempla nesses
versos,
Retroalimenta
com idêntica emoção,
Mas não nos ama
por tais frases, afinal,
Em que seus
próprios sentimentos vê dispersos...
REVERSÃO IV
É sobre o selo dos idílios do
passado
Que vivenciamos o sabor perdido,
Beijo de fada jamais usufruído,
Mágico dote que não nos foi
legado...
Então, viramos
nossa alma sem cuidado
E a mostramos
pelo avesso carcomido,
Vazia do verso
que já foi perdido:
Nem resta a
mágoa de não se haver amado!
Porque a poesia não se acha na
conquista,
Antes na perda do que jamais foi
tido,
Humildes cinzas que as ilusões
nos douram,
Tanta aventura
que sequer nos mostrou pista
E só nos deixa
na língua o aborrecido
Sabor perdido
das coisas que se foram...
gestalt I – 28 mai 14
tenho tendência a encontrar guestaltes
nas tijoletas em que piso pelo chão;
não apenas rostos simples que ali estão
nesses três pontos que imaginar ressaltes,
nem os fantasmas gerados pelos maltes
ou do espírito do vento em geração;
não somente da nuvem em flutuação,
nem quando em instigar me sobressaltes.
não vejo espíritos pela periferia
de meus olhos, em pestanas confundidos,
nem de minha sombra costumo me assustar,
porém me deixo encantar na imageria
das leves manchas ou riscos percebidos
nesses cortejos fabulosos do sonhar.
gestalt II
nesses ladrilhos de minha antiga casa
eu via um vampiro a sugar a energia
de uma vítima qualquer que se encolhia,
perdida inteiramente nessa vasa,
ou via um gênio de barbicha rasa,
por um mongol acompanhado que o servia,
um passarinho verde que assovia,
sob a lama de meus pés em escura gaza!
ou via uma princesa, de impiedosa
a apontar dos dedos longas unhas
para qualquer perdido apaixonado
e num canto da parede crescia rosa,
verde e marrom, amassada por duas cunhas,
lágrima triste de algum sonho desgastado...
gestalt III
porém na nova casa em que eu habito,
os ladrilhos assumem tons de cera,
menos imagens a brotar na minha esteira,
embora um rosto aviste, bem bonito,
olhos e boca, sem o arfar aflito
de um nariz, a semelhança mera
de uma sílfide gentil que a mim se abeira,
com seu sorriso troçando de meu grito
e na parede em frente a mim existe
uma pegada, talvez de dinossauro
ou de antropoide longínquo e ancestral
ou então constelação, tal qual insiste
o peregrino a vagar pelo areal mauro,
sem contemplar dos djinns
feições do mal.
gestalt IV
para humanos, até sem fantasia,
é bem fácil conceber superstição:
qualquer conjunto de pálida inserção,
no arrepio de sua fantasmagoria.
como se iludem com a periferia
que no olhar brota enquanto é boa a visão!
anjos e santos conselheiros ali estão
ou então demônios, a rir-se em zombaria!
em especial surgem nas horas pequeninas
nas quais as sombras se confundem, abraçadas
e os demais encolhem-se nos leitos...
porém as minhas fulgurâncias peregrinas
se reduzem às organelas encantadas
de vagalumes em adejares escorreitos!
gestalt V
mais do que as veja, metáforas percebo,
escondidas nos desvãos da mente escura
e vou buscá-las com cimitarra dura:
corto-lhes as gorjas e seu sangue bebo!
mil imagens vou montando com seu sebo
e é em tal caleidoscópio que perdura
cada verso que a dolência então me cura,
quando os exponho ao calor do louro Febo!
ou então ali encontro, simplesmente,
num só desmaio, os acontecimentos
que acumulei ao longo dos momentos
e neles vejo, em mistura permanente,
os sons e cores que nenhures vêm
e então os roubo para mim também!
gestalt VI
sinédoques vejo nas folhas agitadas
e metonímias a voarem pelo céu,
anacolutos à sombra desse véu
formado em vês de aves apressadas...
pintor em fosse, com paletas abençoadas,
minhas guestaltes mostraria com pincel
ou a tais cortejos daria então quartel
em tridimensionais esculturas conjugadas.
enquanto isso, o teclado me contempla
e ri-se a tela de meu computador;
ante meu toque, o mouse se
arrepia
e numa pilha de fagulhas se retempla
cada guestalte encarada com amor
na inspiração de alguma brisa fugidia.
GRADAÇÕES I – 29 MAI 14
qual é a cor que representa uma saudade?
será que existe num garança furtacor?
num heliotrópio de violeta odor,
num rosicler de perene ambiguidade?
qual é o som acumulado pela idade
com que a saudade, feita malva em esplendor
cante a tristeza verde-azul do lenhador
no creme breve da seiva da maldade?
ardósia, bistre, brique, qual a cor
que assim denota nossa melancolia
ocre ou azinhavre que nos atingia
após a morte alvaiade de um amor
ou vive em âmbar de pura nostalgia,
na terracota baça do vigor?
GRADAÇÕES II
qual será a cor da merencoriedade?
borra de vinho jamais recuperado,
magenta ou ciano de porto nunca achado,
falsa turquesa da transitoriedade?
qual será o gosto que tem nossa saudade?
é o verdigris de qualquer fruto passado?
o cinzalouro do ramo amarelado
ou o sépia líquido da mortalidade?
qual é o cheiro acastanhado da leveza
na sombra cinza da melancolia
que após a morte do verde nos surgia,
puro marfim, talvez, em sua tristeza,
no talho branco da nuvem que nutria
ou no lilás caprichoso da incerteza?
GRADAÇÕES III
qual a nuance a denotar saudade?
o verde-oliva da azeitona que se quer,
o verde-escuro do musgo num qualquer
ladrilho vermelhão de opacidade?
ou são cores secundárias, na verdade,
laranja e leite como o bem-me-quer,
o acarminado dos lábios da mulher,
azul-marrom de avelã que nos invade?
será a saudade de um negro esbranquiçado,
por faíscas de azulão repontilhado,
ou alabastro de simples transparência
ou sentimento de teor mais arroxeado,
como púrpura em fúcsia transformado
por seu pincel de total impermanência?
GRADAÇÕES IV
ou será prata, bronze, cobre, azul metálico
ou oricalco mítico ou ainda electro,
turmalina ou esmeralda no seu plectro,
tangendo rútilo em seu rubor mais fálico?
talvez rubi feito em ágata tantálico,
ou jaspe, calcedônia, ônix cético,
ametista ou jacinto mais estético,
crisopraso, berilo ou verde málico?
ou é em crisólito ou sardônio que reluz,
safira, quartzo, diamante de verdade,
brilho de mica sobre cimento grosso?
ou feldspato a resolver-se em verde-pus?
não sei que cor, afinal, tem a saudade,
mas para mim sempre tem sabor de osso...
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