segunda-feira, 1 de dezembro de 2014




 

FLORES VIGILANTES & MAIS
William Lagos

FLORES VIGILANTES I – 17 out 14

Movem-se as flores nos talos para ver
quem sou eu que me movo no seu meio;
elas me olham, sem qualquer receio
do estranho ser que passa a se mover;

já foi estranho a cada uma delas ser
carrasco da semente no seu seio;
quebrada a casca no solo de permeio,
furado o solo para ao sol nascer;

que espanto o talo verde ao ver-se flor
e silencioso contemplar em torno a si,
mil outros talos vendo a contemplá-lo;

e que terror dos pés do executor,
a esmagá-los, indiferente, ali,
no descuidado instante de pisá-lo!...

FLORES VIGILANTES II

Quem mais contempla, o meu olhar casual
que percorre, irrequieto, esse canteiro
ou a visão que me percorre por inteiro,
na avaliação do movimento inatural;

cada semente em seus estames, afinal,
de novo olhar representa vasto aceiro,
como a visão segmentada do vespeiro
ou de uma mosca a abranger todo o quintal?

E se cada semente é outra visão
a dissecar o vasto espaço digital
desse ser incompreensível que perpassa

ou cada flor em sua vasta brotação,
parte integrante de todo o vegetal
que os seres animais espreita e caça?

FLORES VIGILANTES III

Por que as flores, em cada cemitério,
numa aparente homenagem ao defunto
e não o oposto, o sacrifício junto
de mil raízes recebendo o refrigério?

Afinal, traz a morte o desconjunto
de cada ser humano em despautério;
pois não seria então motivo sério
oferecê-los dos canteiros ao conjunto?

Que seja assim comigo.  Plantem flores
onde minhas cinzas forem despejadas
e com as abelhas terei sexualidade;

talvez em mel transforme então minhas dores,
frequentemente sobre mim depositadas
em cada pólen as suspeitas da amizade.

FLORES VIGILANTES IV

Quem sabe essa a razão por que minhas flores
assim se volvam para mim avidamente;
talvez já possam ver-me adubo, docemente,
cinzas ao vento em derradeiros estertores;

sem que venha a sentir quaisquer temores
de que saiam de sua terra, realmente
e suas raízes me suguem a semente
para novas gerações de seus pendores.

Os asfódelos do Hades não terei, (*)
porque minhas sombras se fazem vegetais
e transfiguram-se em botões de primavera;
(*) Flores que servem de alimento às sombras dos mortos.

outros humanos talvez então contemplarei,
na expectativa de seus passos terminais,
que tarde ou cedo encontram-me à sua espera.

ROCIO AZUL I – 18 OUT 14

O orvalho desce manso no jardim,
irmão caçula da geada carniceira;
cada planta o recebe, alvissareira,
qual contra a geada se encolheu, enfim.

Para onde foi a brava geada assim,
engolida pelo solo, em gula inteira,
ou evaporada até a gota derradeira,
sem um único cristal guardar pra mim?

É belo o orvalho na manhã rosada,
mas logo esvai-se, dissipação certeira:
com avidez o sugam muitas vidas.

Mas na ponta de meus dedos tomo a geada
e aos lábios levo, eucaristia rasteira,
no gosto amargo das mil coisas perdidas.

ROCIO AZUL II

Já muitas vezes contemplei fotografias
de grandes blocos de azulado gelo,
bem compreendendo que o azul não posso tê-lo:
puro reflexo dos ares em orgias...

Pois nos granículos de geada, nesses dias,
vez que outra pendurados em desvelo,
ramos inermes marcando com seu selo,
somente leves tons de anil perceberias...

Pois nos espelham mais outra refração,
pequenos gládios de imperfeito arco-íris:
contempla-os de través, se um dia os vires.

Eles refletem sete cores em botão
e se apertares as pestanas, com cuidado,
o azul dos céus trarás para teu lado.

ROCIO AZUL III

Que durma o sonho nas pétalas da geada
e se acorde num azul estremunhado,
muito mais puro que o azul acarminado
no manto roxo que protege a fada;

que acorde o sonho em cada madrugada
e reflita o amarelar do alaranjado:
luz elétrica dos postes, flor malhada,
que vem de longe, ressona e depois cala.

Hoje as lâmpadas já são mais fluorescentes
e quando marcho nas pedras, pés descalços,
vejo o rocio de ciano marchetado

e azuis ficam meus pés, subjacentes,
trazendo o orvalho, nos azulares falsos
de cada artelho pela geada atribulado.

MONSTROS I – 19 OUT 14

Há muitos monstros na imaginação;
eram os gregos férteis em misturas,
terrores a marchar em cores puras,
hidras, quimeras em vasta brotação.

Os monstros de hoje têm mais limitação:
lobisomens, vampiros, zumbizuras;
até os sacis e os curupiras nas lonjuras
se perderam das lembranças sem paixão.

Aliás, há hoje em dia uma negrice:
que não se deva mencionar mais o saci,
já que é negro, mão furada e fumador...

E afirmam ser racista esquisitice,
embora dos negros velhos é que ouvi
falar primeiro em tal estranho assustador...

MONSTROS II

Já na França, por entre os camponeses,
ainda se fala sobre o Coquecigrou,
uma mistura de galo com o grou,
um ganso grande dos terrenos montanheses.

Na verdade, pouco sei desses fregueses:
o raro conhecimento que escavou
minha memória diz que misturou
Rabelais as velhas lendas dos franceses.

Além dos animais, trazem no rabo
verde ramo de cicuta venenosa,
que ao encontrar, pastam com grande gula...

Passam em bandos, do verão ao cabo
e apesar da envergadura portentosa,
no ar se empacam, qual teimosa mula!

MONSTROS III

Ron Weasley, colega de Harry Potoca,
possuía uma corujinha assim chamada,
por sua irmã Ginny é que foi denominada
pelo muito mau-humor com que se invoca.

Dizem que Carlos Décimo, rei que se entoca
por dias a fio, em partida demorada
de baralho, teria essa expressão criada,
numa explosão de raiva de sua boca...

A Picrochole, o herói rebelaisiano,
uma bruxa profetizou que seria rei
quando os coquecigrues lá retornassem,

pois Grandgusier, com esforço soberano,
o derrotara em batalha, com sua grei
e ainda esperava que o trono lhe entregassem...

MONSTROS IV

Modernamente, alguns da crítica erudita
o termo usaram para indicar a fantasia
produzida em humor de fancaria,
quando se sabe que ninguém nela acredita.

A ficção científica recebeu deles tal dita;
são autores pretensiosos, sem magia,
que só sabem criticar quem escrevia,
pois sua própria inspiração em nada excita.

Hoje em dia, as mil ideias caluniadas
encontramos realizadas diariamente,
enquanto os críticos vão beber cicuta,

nas touceiras de suas tumbas, fertilizadas
pelo veneno dessa inveja transparente
que nos jornais revelava a sua conduta!

CATOBLEPAS I – 20 OUT 14

PLÍNIO, O VELHO, QUE FALECEU EM POMPEIA,
QUANDO O VESÚVIO ENTROU EM ERUPÇÃO,
NA SUA HISTÓRIA NATURAL FEZ DESCRIÇÃO
DE TAL HERBÍVORO DE CATADURA FEIA.

ELE É DESCRITO EM MAIS DE UMA EPOPEIA,
COMO MISTURA DE BÚFALO E UM CABEÇÃO
DE JAVALI SEMPRE VOLTADO PARA O CHÃO,
POR SER PESADO DEMAIS PARA OUTRA IDEIA.

E O CATOBLEPAS NÃO O PODE LEVANTAR
E É OBRIGADO A SÓ OLHAR DE ESGUELHA,
MAS SE ALIMENTA DE ERVAS VENENOSAS

E ASSIM, TEU HÁLITO ATÉ PODE TE MATAR
OU TRANSFORMAR EM ESTÁTUA, COMO A VELHA
MEDUSA DE OUTRAS LENDAS PORTENTOSAS!

CATOBLEPAS II

VIVIA NA ETIÓPIA, ASSIM DIZIAM,
JUNTO AO RIO NIGRICAPO DA LEGENDA!
NATURALMENTE, ATÉ EXISTE, NOUTRA SENDA:
ERAM OS GNUS QUE NA RODÉSIA VIAM;

NA ÁFRICA DO SUL E NA NAMÍBIA HAVIAM
GRANDES REBANHOS DE FEROZ CONTENDA,
BICHOS PESADOS, NO SOLO IMENSA FENDA
POR ONDE PASSAM SEUS CASCOS ALI ABRIAM.

MAS SÃO PRESA DOS LEÕES E DOS GUEPARDOS,
SÃO MUITO LENTOS, APESAR DE FORTES,
QUE AS FERAS BUSCAM DAS HOSTES APARTAR;

OS SEUS JARRETES MORDEM OS LEOPARDOS
E ASSIM SÃO VÍTIMAS DAS INGENTES SORTES,
SEM QUE OS DEMAIS OS VENHAM AJUDAR...

CATOBLEPAS Iii

CLAUDIUS AELIANUS TAMBÉM OS DESCREVEU
E BEM MAIS TARDE SIR PHILIP SIDNEY
OS INCLUIU DA MONSTROLOGIA NA GREI,
EM DESCRIÇÃO DIVERSA QUE SE LEU.

ATÉ FLAUBERT, EM SUA OBRA CONCEBEU
OS CATOBLEPAS QUE NÃO PODEREI
ACEITAR, SENÃO QUAL SÁTIRA DE REI:
COMPRIDO E FINO SEU PESCOÇO ALI NOS DEU.

COM SUA CABEÇA DE PORCO PENDURADA,
FUÇANDO O CHÃO PARA TRUFAS REBUSCAR,
LIGADA DIRETAMENTE AO INTESTINO!

NO IMAGINÁRIO ESTA BESTA É FIGURADA,
PARA SEU HÁLITO TERRÍVEL EVITAR,
EM PURO ASSOMBRO DOS SONHOS DE MENINO!

TARASCA I – 21 OUT 14

Já a Tarasca é bem mais conhecida:
patas de urso e cabeçorra de leão,
cauda de cobra e nas costas proteção
de uma crina de chifres constituída;

hoje em mangás aparece concebida
como um tipo venenoso de dragão,
baseado em parte sobre o camaleão:
até por Conan foi uma combatida!...

E nesses jogos de dados eletrônicos
mostram-na imensa, com vasto comprimento:
possui sessenta metros e até mais!...

Tem carapaça e aspecto sindrômicos,
imune ao fogo, veneno e amassamento,
sem sua energia poder perder jamais!...

TARASCA II

De fato, é bem difícil de enfrentar,
mas faz parte até da hagiologia,
pois Santa Marta na Provença a enfrentaria,
em suas feiras tal combate a apresentar!...

Cabeça negra, larga boca e fulvo olhar,
a carapaça chifres às dúzias mostraria:
um Triceratops talvez se imitaria,
que o Castelo de Tarascon iria assombrar!

Tartarin de Tarascon foi que a encontrou,
na novela picaresca de Daudet,
com seu colega, o falso montenegrino;

levou dez armas, porém nunca a dominou,
mas trouxe falsa uma cabeça, até,
com que assombrou ao povo rodanino!... (*)
(*) Os habitantes do vale do rio Ródano.

TARASCA III

Em Tarascon-sur-Rhône há o festival
em que celebram o anti-herói Tartarin
e a Tarasque, a que nunca ele deu fim,
batalhas falsas a descrever tal qual.

Até Méliès criou um monstro artificial,
em 1908, para outro filme, assim,
que hoje é pouco conhecido e enfim
foi duas vezes refilmado um tema igual.

Mas sem nunca alcançar grande sucesso...
Contudo, no imaginário português
perdura o termo, sem morrer sequer;

e desse nome também nunca me esqueço,
pois muitas vezes a referência fez
à mulher abrutalhada a quem temer!...

IATRE SEAUTON I
[cura primeiro a ti mesmo]

Eu creio, pessoalmente, que algo exista
a orientar o mundo pela história.
Não sei se Deus se importa ou por que insista
a conduzir os homens para a glória...

Ou se é o espírito humano, onipresente,
que nos pervade...   Um recompensador,
capaz de recolher a permanente
intrepidez humana, em seu candor.

E assim do mal aproveita o quanto serve:
acha nas guerras a cura das doenças.
no combate à poluição vida mais pura...

E que destarte tal potência nos reserve
um progresso constante, nessas crenças
de nosso espírito, a encontrar a própria cura...

IATRE SEAUTON II

Sou forçado a enfrentar a realidade
de mais um ano que para mim se concluiu,
que Deus ou o fado hoje me permitiu
mais duas dúzias de horas, na verdade.

Os chineses, com intensa gravidade,
contam a vida em mais extenso rio,
desde quando a concepção se permitiu,
nove meses a mais em ubiquidade.

Portanto, nem faz sentido aniversário,
já que é uma data tão só convencional,
tão somente mais um ano desgastado

e não a aquisição de novo horário
de doze meses, em salmodia conventual,
com que o fadário me tenha presenteado.

IATRE SEAUTON III

Contudo, guardo a certeza duvidosa
de ter sido, para uma missão qualquer
escolhido, mas sem notar sequer
qual tenha sido essa gesta portentosa.

Bem ao contrário dessa fala descuidosa,
tenho certeza de que pedi para nascer,
para algum prêmio ou castigo receber:
talvez a Moira demonstrou ser ardilosa.

Porque não sei passar de um instrumento
que não nasceu para graças receber,
mas para algum dever satisfazer,

a despeito da ferrugem do momento,
de tal sorte que reclamo meu direito
ao erro ou mérito de quanto tenha feito.

IATRE SEAUTON IV

Passam os anos ou por eles passo,
labirintino túnel de ilusão;
não é um caminho de perlustração:
não corre o tempo como corre o espaço.

Mas cada dia que me surge assim abraço,
vezo oportuno para nova decisão:
das consequências a total aceitação;
ninguém tem culpa se meu destino é baço.

Se me educaram mal, foi culpa minha,
quando a tal orientação condescendi,
mesmo depois de um ferrenho treinamento;

e à cada noite, de novo dia vizinha
vou render graças pelo que atingi,
no pleno gozo de meu padecimento.

RICOCHETE I – 23 out 14

Eu acho até estranho que me digam
que nunca tenha medo de sonhar,
que nunca tenha medo de pensar
nos mil possíveis fados a encontrar...

Nesse futuro incerto, a que consigam
as minhas decisões me conduzir,
que tal porvir eu possa permitir,
diverso do passado, a fim de agir

de tal maneira que os sonhos de menino
[estranhas esperanças irreais]
inda apareçam, ao longo do caminho.

Que o sonho sempre foi um cristal fino,
[estilhaçado em decisões fatais]
que cedo ou tarde me privaram do carinho.

RICOCHETE II

Não foi preciso.  Sempre sonhar eu soube.
O que não soube foi a vida planejar,
das ilações o guante suportar
desta senda agridoce que me coube.

Não foi preciso.  Embora outrem me roube
os resultados de meu longo labutar,
guardei quimeras para meu alimentar,
em meu castelo alicerçado só em adobe.

Não foi preciso.  Em sonho ou devaneio,
nunca perdi a noção da maravilha,
por mais que os leprechauns me façam troça

e meu futuro ainda aguardo sem receio,
jangada podre a demandar a ilha
em que aportar talvez um dia eu possa...

RICOCHETE III

Fato é que não me atrevo a planejar,
pois cada vez em que busquei fazê-lo
vi demudado inteiro esse meu zelo,
qual poltergeist que me assombre a gargalhar.

Mas não importa.  Jamais soube entregar
a minha esperança a um divinal apelo;
se algo alcancei, por esforço pude vê-lo;
se algo não tenho, é que não soube me esforçar.

E assim revejo em minha bola de cristal,
que insuflei com linfa e com saliva,
esse destino que o sangue não me deu;

nela ainda brilha, para o bem ou para o mal,
cada estilhaço de ilusão ainda cativa
nesse incrédulo crisol que me prendeu.

FÚRIA I – 24 OUT 14

Eu me sinto assim preso na harmonia
de uma vida só por dentro iluminada,
sem que de fora seja governada,
mas que tampouco me traz grande alegria.

Eu me sinto nas presas da elegia,
nos palpos dessa dança já inebriada
que me conduz ao mormaço da pousada,
dando-me apenas o olor de uma alforria.

Pois estou sempre preso à exaltação
e não me atenho à anormalidade:
minha vida é uma taça de esmeraldas,

no próprio graal de minha inspiração,
que me arrebata em elasticidade
e me sustenta a vida nas espaldas!...

FÚRIA II

E passo a passo volto a caminhar
sobre os cacos dos sonhos esquecidos,
sobre as brasas de ventos malferidos,
que não conduzem a qualquer canto milenar,

em que o almíscar se transforme em par
das mil quimeras dos vates perseguidos,
das mil coortes dos universos desvalidos,
nesse pelúcido cristal de um bezoar,

nessa prisão dos versos cristalinos,
as mil barras de palavras sedimentos,
cada punhal abrindo aos poucos seus caminhos

ao cataclismo dos azulados sinos,
ao badalar descontrolados argumentos,
nos ossos mortos da saga dos espinhos.

FÚRIA III

Sou o contrário da oposta avaliação,
escurecido em plenilúnio cintilante,
desencontrado em harmonia vibrante,
no oscilamento final do coração,

na maresia de ressequida excomunhão,
ponteiro imóvel de máquina constante,
em que meus dedos, quais presas de elefante,
são calcinados no marfim da exaltação.

E vivo assim, na mais sublime esqualidez,
como uma deusa a digladiar minha pele,
a carne feita de amianto e de alvaiade,

estranho ébano em quadrícula nudez,
a contrastar com o alabastro que me sele,
calcificado como pérola em sua grade.

ISÓBARAS I – 25 OUT 14

Por eterno que seja o amor humano,
depende sempre da transitoriedade;
o tempo passa e traz a saciedade,
deixando apenas lembrança e desengano.

Por trás de tudo permanece o arcano:
se é realmente extensa a humanidade
ou facetas de uma só personalidade
ou talvez duas, em universal engano.

É possível que nos corpos refletidos
só haja fragmentos de dois seres
e pais e filhos, esposos ou amantes

sejam apenas os dois vivos percutidos,
quebrados de um só golpe nos poderes
da Divindade, em mágicos instantes.

ISÓBARAS II

Pressão houvesse a calcificar constante,
num carbonato de cálcio degradante,
que de todos os lados nos persegue,
qual um vaso de alabastro acidulante.

Essa pressão do exterior assim te segue
e contra a própria mente a visão cegue,
ante a pressão do interior rivalizante
de um passado que grão vigor te legue.

O ser desse exterior esmagamento
contra o ser do interior expandimento,
nos dois contrastes que se complementam,

enquanto as sombras os vão redominando,
em percepção alheia se esboçando
nesse embate comum de que se alentam.

ISÓBARAS III

Assim, és tu mais eu num só rochedo
e todos os demais num esbater,
como ondas tais corpos a esfazer,
que se erguem imortais qual um penedo.

Ou somos todos nós, amplo segredo
da humanidade em largo acometer,
contra o caótico diluir do ser,
à vida cósmica impondo o seu degredo.

Ou antes somos o planeta em violência,
a combater a eterna escuridão,
na dependência do estridor solar

ou então o sistema, em singular potência,
contra a galáxia esmagadora de atração,
girando sempre, mas sem se intimidar...

AFAGOS I – 26 out 14

Diariamente me envolvo em tua carícia,
disfarçada tantas vezes em sevícia,
enquanto a nego e tal egoísmo apago,
nessa esperança composta de estultícia.

Na inesperada recepção do afago,
que então me alenta, como doce bago,
no sumarento rumor de sua malícia
e em suprassumo de sístoles me alago.

Porque te espero na raridez da troca,
nessa aridez que de quinhão me toca:
toca à emoção o imaginar favores.

Enquanto para a infância se desloca
tua inútil captação de outros pendores
que para outrem o teu favor aloca.

AFAGOS II

Nesse entretanto, o teu afago amplio,
que minhas raízes se enterram no profundo
e vão buscar aqui ou em outro mundo
a emoção magra em que me refugio.

Nesse amor que é composto mais por brio
que por qualquer referencial rotundo;
nos dentes sinto o pranto rubicundo
do sangue e da saliva, em que me guio.

Meus afagos são apelos que transmito,
na expectativa de vã retribuição,
pois vives só em ti ensimesmada

e meu tormento apenas eu concito,
vendo no nada a formosura da inação
com que me iludo queiras ser reconquistada.

AFAGOS III

Ainda a tua epiderme acaricio
em que meu tato tantas vezes habitou
e mais calor algures encontrou,
mas no aguardar de ti eu me vicio;

tais resultados eu tão somente crio:
melancolia total te conquistou,
a depressão tua alma dominou,
justificando tão apenas casto cio;

assim flutuo sempre a teu redor
e nem sequer bordejo-te a epiderme:
um manto te recobre em solidão

e sobre ele escorre o meu amor,
sem jamais alcançar de novo o cerne,
no suave desespero da paixão.

AFAGOS IV

As minhas mãos te percorrem sem tocar
e nem tampouco sinto um toque espiritual
ante a defesa constante e inatural
dos leprechauns que te estão a dominar.

Esses pequenos demônios do magoar
que mais te afagam, de forma imaterial
e como gládios de corte triunfal
não me permitem de ti me aproximar.

Por que insisto, afinal, na tentativa
de restaurar a antanhosa melodia,
quando o vaso de alabastro se quebrou

e do cordão de ouro a recidiva
não mais percebo sequer numa elegia,
já que somente no meu peito é que brotou.

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com




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